A fábula do paraíso de Al-Andaluz – o Islão na Espanha.

Postado em 13-05-2019

A excelente revista francesa Valeurs Actuelles publicou uma notável resenha de um livro sobre a presença do Islão na Idade Média que desmonta o mito tão em voga do multiculturalismo. Considerando o grande interesse e atualidade do assunto, publicamos a seguir uma tradução do texto. Uma boa leitura!

Sete séculos de dominação muçulmana na Espanha não foram nem tolerantes nem harmoniosos, mas uma longa seqüência de conquista e violências. Seja contra os cristãos, seja contra os judeus. Até o célebre Averróis foi um rigoroso servidor da Sharia.

 

Em Toledo, uma noite do ano de 797 passou para a história. Doze séculos mais tarde, seus habitantes a comemoraram ainda. Decidido a livrar-se dos notáveis da cidade, de cristãos apesar de convertidos ao Islão, o emir Al-Hakam I convida-os a um banquete em seu palácio. O cronista árabe Ibn Hayyan reconstituiu a seqüência dos fatos: “Ele ordenou que os convidados entrassem por uma porta e saíssem por outra, sob o pretexto de evitar um tumulto (…). Desde que um habitante de Toledo entrasse e atravessasse a porta, era conduzido à borda de um fosso profundo que o governante tinha feito preparar e sua cabeça era decepada. Os corpos eram em seguida atirados no precipício.” Setecentos dignitários da cidade de Andaluzia foram assim assassinados antes que os outros compreendessem o que se passava e fugissem.

A longa história da dominação árabe na Espanha, iniciada pelo primeiro desembarque em Gilbraltar, em 711, e encerrada em 1492, com a queda de Granada, está cheia de outros episódios de terror de uma violência comparável. Entretanto, a civilização islâmica que se arraiga, durante sete séculos, sobre essa margem norte do Mediterrâneo é largamente vista, ainda hoje, como um modelo de coabitação e desenvolvimento. Em um ensaio notável, Cristãos, judeus e muçulmanos em Andaluzia (Jean-Cyrille Godefroy), o universitário americano Dario Fernández-Morera desmonta o mito de um multiculturalismo precursor, tolerante e harmonioso.

Ora, a conquista e a ocupação da Península Ibérica pelos árabes não deixaram jamais de reivindicar a djihad, a guerra santa que acompanha o nascimento da religião de Maomé. Desde 639, os guerreiros muçulmanos saem da Península Arábica e avançam sobre a África do Norte, amplamente cristianizada três séculos mais cedo. Esses cristãos do Egito e do Magrebe são massacrados ou convertidos ao Islão. Trata-se, pois, de estender a lei de Alá a todo o mundo conhecido: morrer com as armas nas mãos em nome desse nobre ideal é assegurar-se um lugar no paraíso. Como o resume o historiador medieval Ibn Khaldoun, a djihad é um estado permanente decretado pela lei islâmica: é dever religioso de todos os califas lançá-la ao menos uma vez por ano”.

Os teólogos do Islão malekita (uma das quatro escolas jurídicas do sunismo), que se impõem em Andaluzia, fixaram o quadro. A destruição das cidades dos infiéis é autorizada, bem como cortar-lhes as árvores e seus frutos, abater-lhes os animais e destruir tudo que estiver ao alcance”. Em nome da djihad, o chefe de guerra Almanzor faz também queimar as bibliotecas de filosofia e de lógica de Córdoba. Antes dele, o emir Abd al-Rahman I, fundador da dinastia omeyyade da mesma cidade, ordena, no final do VIII século, a demolição da prestigiosa basílica de São Vicente Martir de Córdoba.

 

Cristãos e judeus têm um estatuto de súditos de segunda categoria

 

Aqui, como em outras cidades conquistadas, os materiais das igrejas destruídas servirão para a edificação das mesquitas. Trabalhos recentes confirmaram igualmente tudo o que devia a esplêndida grande mesquita de Córdoba à basílica cristã destruída (colunas, capitéis, mármore…). É todo um rico patrimônio, o do reino visigodo da Espanha impregnado da dupla cultura latina e cristã, que foi estiolado pelos conquistadores árabes. Ora, a corte visigótica de Toledo dos séculos VI e VII foi um dos centros do renovado mundo ocidental, como o atestam as recentes descobertas arqueológicas pouco conhecidas fora da Espanha.

A partir dos vestígios dessa civilização, a edificação de Al-Andaluz permitirá difundir a fábula de uma Espanha pré-islâmica lúgubre e inculta e de um impulso da cultura islâmica andaluz surgido ex nihilo.

Na Andaluzia submetida à lei islâmica (Sharia), os dhimmis – as nações do Livro, cristãos e judeus – têm um estatuto de súditos de segunda categoria. Submetidos a um imposto anual particular, a djizia, explicitamente concebido para humilhá-los, são considerados como impuros. Uma estrita  codificação interdiz com pormenores toda aproximação. Contrariamente à legenda, a Espanha islâmica não foi uma exceção à regra comum em vigor no mundo muçulmano. Em diversas ocasiões ao longo do século XI os dhimmis cristãos foram expulsos para a África do Norte. Os califas andaluzes (Abd al-Rahman III é o primeiro no X século a cingir-se desse prestigioso título) vão manter seu poder por um sistema de terror: seus inimigos, cristãos ou heréticos muçulmanos, são decapitados ou crucificados em público.

Seus espiões vasculham os territórios sob seu controle. Um corpo de funcionários religiosos, o muhtasib, é encarregado da preservação da ordem. Segundo os manuais de direito malekita, a mulher não pode sair em público salvo por necessidade, mas deve portar o véu e viver separada dos homens. A excisão é considerada “honorável”. Seu testemunho diante do juiz não é acolhível quando o sangue foi derramado e não vale, em outros casos, senão a metade do testemunho de um homem. Vive-se bem longe da liberdade excepcional – um legado da cultura visigótica – de gozava a cristandade dos reinos espanhóis da mesma época.

 

Uma idade de ouro fantasmagórica

 

Outro mito deve ser desmontado, o de uma Andaluzia bastião da tolerância para os judeus. Estes são igualmente submetidos a um regime mesquinho. É-lhes interdito andar a cavalo, portar armas, trajar-se com elegância a fim de não ofender os muçulmanos mais pobres; devem portar uma cintura amarela em torno do ventre a fim de serem reconhecidos. A prosperidade econômica dessa comunidade, urbana e educada, conduz aos progrons e às expulsões do. Nos séculos XIV e XV, como o demonstrou o historiador americano Bernardo Lewis, o essencial da população judia da Espanha preferiu achar refúgio nos reinos cristãos da península a continuar sob o domínio muçulmano. Até os muladis (cristãos convertidos ao Islão) ficam confinados em um regime de inferioridade. De onde resultam seus numerosos levantes, no IX século, justamente na presumida “idade de ouro” da dinastia omeyyada, todos reprimidos com sangue e terror.

Um destino sintetiza a extraordinária mistificação da realidade andaluza, o do faqih (juiz islâmico) Ibn Rushd (XII século), que pronuncia suas fátuas em Córdoba e Sevilha. Conhecido no Ocidente como o “filósofo Averróis”, a figura mais brilhante de Al-Andalous, por seus comentários a Aristóteles, Ibn Rushd é também autor de um manual de instruções para os juízes da Sharia, a Bidâyat ul-mudjatahid wa nihâyat ul-Muqtasid, até hoje estudada em Medina, uma das cidades santas da Arábia Saudita wahhabita. No manual, Averróis examina diferentes questões disputadas como, por exemplo, a melhor maneira de lapidar uma mulher (que não é necessário jogar antes dentro de uma cova), a maneira de castigar um larápio (é necessário cortar-lhe a mão direita, depois, em caso de reincidência, por ordem, o pé esquerdo, a mão esquerda, o pé direito) ou um bebedor de vinho (80 chibatadas!). Estamos muito longe do portador da obra de Aristóteles celebrado no Ocidente!

A obra do filósofo grego foi, na realidade, transmitida mais cedo por intermédio de Bizâncio e difundida notoriamente pelos monges do Monte São Miguel, como o demonstrou, em 2008, o medievalista Sylvain Gouguenheim. “Raros são os períodos que foram tão mal interpretados ou deformados como o da Espanha muçulmana”, sublinha Dario Fernández-Morera. Como explicar o douramento desse período histórico em particular?

Na introdução que ele redigiu para a obra do universitário americano, Rémi Brague, membro da Academia de ciências morais e políticas, grande estudioso do Islão, nota a necessidade para o mundo arábico-muçulmano atual, sacudido por suas contradições, de projetar a esperança de um retorno à idade de ouro ilusória, a idade de Al-Andaluz. Se a isso se acrescenta o ódio de si desenvolvido por um Ocidente tomado pela dúvida e sua utopia de uma sociedade mundial livre de toda confrontação (aí compreendida a confrontação religiosa), pode entender-se por que  a fábula do “paraíso de Al-Andaluz é tão frequentemente reativada. Face a uma história trágica, o mito tranquiliza pelo encanto sedutor das suas utopias.

Jean-Michel Demetz

Valeurs Actuelles , nº 4279 (novembro-dezembro 2018)

 

Oxalá o bispo de Roma lesse este texto e o assimilasse e o pusesse em prática em todas as suas “pastorais”.