As perguntas de um teólogo

Postado em 19-04-2012

Apresentamos nossa tradução do artigo do teólogo John R. T. Lamont escrito para www.chiesa, a página do vaticanista Sandro Magister no portal do L’Espresso. Licenciado em Filosofia em Oxford e em Teologia em Ottawa com o teólogo dominicano Jean-Marie Tillard, Lamont vive na Austrália e leciona em Sydney, no Instituto Católico e na Universidade de Notre Dame, com o mandato canônico da arquidiocese para o ensino da teologia. Publicou vários livros e ensaios, também em revistas não especializadas, como a americana “First Things”. Contribuiu recentemente, também, para a revista internacional “Divinitas”, dirigida por Monsenhor Brunero Gherardini.

As perguntas de um teólogo
Por John R.T. Lamont

Descrição: Missa de abertura do Concílio Vaticano II.
Missa de abertura do Concílio Vaticano II.

Em um comunicado de 16 de março de 2012, a Santa Sé anunciou que o bispo Bernard Fellay, superior geral da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, FSSPX, foi informado de que a resposta da Fraternidade ao preâmbulo doutrinal apresentado pela Congregação para a Doutrina da Fé foi considerada “insuficiente para superior os problemas doutrinais que estão na base da fratura entre a Santa Sé e a Fraternidade”. O comunicado não esclarece se este juízo foi emitido pela CDF e aprovado pelo Papa, ou se é um juízo do próprio Papa. Este juízo é o último, até o momento, de um processo de discussão sobre as questões de doutrina entre a CDF e a FSSPX. A natureza e a seriedade deste juízo propõem importantes interrogações para um teólogo católico. O dever deste artigo é responder a tais perguntas.

A discrição dos colóquios doutrinais em curso dificulta expressar um comentário sobre o juízo. A razão desta reserva é difícil de compreender, pois os argumentos da discussão não se referem a detalhes práticos de uma enumeração de ordem canônica – que se beneficiaria claramente da discrição –, mas de matérias de fé e de doutrina, que concernem não só às partes implicadas, mas a todos os fiéis católicos. Todavia, já se falou bastante em público sobre a posição da FSSPX para permitir uma avaliação da situação. Há duas coisas que devem ser consideradas aqui: a fratura entre a Santa Sé e a FSSPX produzida pelos problemas doutrinais em discussão, e a natureza destes mesmos problemas doutrinais.

Em uma réplica a um estudo de Fernando Ocáriz sobre a autoridade doutrinal do Concílio Vaticano II, o Padre Jean-Michel Gleize, da FSSPX, enumerou os elementos deste Concílio que a FSSPX considera inaceitáveis:

“Ao menos sobre quatro pontos, os ensinamentos do Concílio Vaticano II estão de tal maneira em contradição lógica com as declarações do precedente magistério tradicional, que é impossível interpretá-los na linha dos outros ensinamentos já contidos nos documentos precedentes do Magistério da Igreja. O Vaticano II rompeu, portanto, a unidade do magistério, na medida em que rompeu com a unidade de seu objeto”.

“Os quatro pontos são os seguintes. A doutrina da liberdade religiosa, tal como se expressa no número 2 da declaração ‘Dignitatis Humanae’, contradiz os ensinamentos de Gregório XVI na ‘Mirari vos’ e de Pio IX na ‘Quanta cura’, assim como os de Leão XIII na ‘Immortale Dei’ e os de Pio XI na ‘Quas primas’.

“A doutrina da Igreja, tal como expressa no número 8 da Constituição ‘Lumen gentium’ contradiz os ensinamentos de Pio XII na ‘Mystici corporis’ e na ‘Humani generis’.

“A doutrina sobre o ecumenismo, tal como expressa o número 8 da ‘Lumen gentium’ e o número 3 do decreto ‘Unitatis redintegratio’, contradiz os ensinamentos de Pio IX nas proposições 16 e 17 do ‘Syllabus’, os de Leão XIII na ‘Satis cognitum’ e os de Pio XI na ‘Mortalium animos’.

“A doutrina da colegialidade, tal como expressa no número 22 da constituição ‘Lumen gentium, inclusive no número 3 da ‘Nota praevia’, contradiz os ensinamentos do Concílio Vaticano I sobre a unicidade do sujeito do supremo poder na Igreja, e a constituição ‘Pastor aeternus’”.

Padre Gleize tomou parte na discussão doutrinal entre a FSSPX e as autoridades romanas, assim como o fez também Ocáriz. Podemos assumir de forma razoável as afirmações citadas como uma descrição dos pontos doutrinais sobre os quais a FSSPX não quer transigir e que foram considerados pela Santa Sé como inevitável origem da fratura.

O Vaticano II como razão da fratura?

A primeira pergunta com a qual tropeça um teólogo em relação à posição da FSSPX diz respeito à questão da autoridade do Concílio Vaticano II. O artigo de Ocáriz, ao qual respondeu o Padre Gleize, publicado na edição de 2 de dezembro do L’Osservatore Romano, parece sustentar que uma recusa à autoridade do Vaticano II seja a base da fratura verificada pela Santa Sé. Mas para quem está a par tanto da posição teológica da FSSPX como do ambiente de opinião teológica na Igreja Católica, esta tese é difícil de entender. Os pontos mencionados pelo Padre Gleize são apenas quatro do volumoso magistério do Vaticano II. A FSSPX não rechaça o Vaticano em sua globalidade: pelo contrário, Dom Fellay afirmou que a Fraternidade aceita 95 por cento de seus ensinamentos. Isso significa que a Fraternidade é mais fiel aos ensinamentos do Vaticano II que boa parte do clero e da hierarquia da Igreja Católica.

Consideremos as seguintes afirmações deste Concílio:

“Dei Verbum” 11:
“A santa mãe Igreja, segundo a fé apostólica, considera como santos e canônicos os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, porque, escritos por inspiração do Espírito Santo (cfr. Jo. 20,31; 2 Tim. 3,16; 2 Ped. 1, 19-21; 3, 15-16), têm Deus por autor, e como tais foram confiados à própria Igreja. Todavia, para escrever os livros sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens na posse das suas faculdades e capacidades, para que, agindo Ele neles e por eles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que Ele queria

“Dei Verbum” 19:
“Os quatro Evangelhos, cuja historicidade afirma sem hesitação, transmitem fielmente as coisas que Jesus, Filho de Deus. durante a sua vida terrena, realmente operou e ensinou para salvação eterna dos homens, até ao dia em que subiu ao céu”

“Lumen gentium” 3:
“Sempre que no altar se celebra o sacrifício da cruz, na qual «Cristo, nossa Páscoa, foi imolado» (1 Cor. 5,7), realiza-se também a obra da nossa redenção”

“Lumen gentium” 8:
“A sociedade organizada hierarquicamente, e o Corpo místico de Cristo, o agrupamento visível e a comunidade espiritual, a Igreja terrestre e a Igreja ornada com os dons celestes não se devem considerar como duas entidades, mas como uma única realidade complexa, formada pelo duplo elemento humano e divino

“Lumen gentium” 10:
“O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, embora se diferenciem essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se mutuamente um ao outro; pois um e outro participam, a seu modo, do único sacerdócio de Cristo. Com efeito, o sacerdote ministerial, pelo seu poder sagrado, forma e conduz o povo sacerdotal, realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo e oferece-o a Deus em nome de todo o povo; os fiéis, por sua parte, concorrem para a oblação da Eucaristia em virtude do seu sacerdócio real, que eles exercem na recepção dos sacramentos, na oração e acção de graças, no testemunho da santidade de vida, na abnegação e na caridade operosa”

“Lumen gentium” 14:
“ Fundado na Escritura e Tradição, [o concílio] ensina que esta Igreja, peregrina sobre a terra, é necessária para a salvação. Com efeito, só Cristo é mediador e caminho de salvação e Ele torna-Se-nos presente no Seu corpo, que é a Igreja; ao inculcar expressamente a necessidade da fé e do Baptismo (cfr. Mc. 16,16; Jo. 3,15), confirmou simultaneamente a necessidade da Igreja, para a qual os homens entram pela porta do Biptismo”.

“Gaudium et spes” 48:
“Por sua própria índole, a instituição matrimonial e o amor conjugal estão ordenados para a procriação e educação da prole, que constituem como que a sua coroa.”

“Gaudium et spes” 51:
A vida “deve, pois, ser salvaguardada, com extrema solicitude, desde o primeiro momento da concepção; o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis”.

A grande maioria dos teólogos nas instituições católicas da Europa, América do Norte, Ásia e Austrália tendem a rechaçar todos ou a maior parte destes ensinamentos. Estes teólogos são seguidos nessas áreas pela maior parte das ordens religiosas e por uma parte considerável dos bispos. Seria difícil, por exemplo, encontrar um jesuíta que ensine teologia em qualquer instituição jesuíta e que aceite um só destes textos. Os textos citados são apenas uma seleção dos ensinamentos do Vaticano II que são rechaçados por estes grupos; e poderiam ser aumentados muito em número.

Pois bem, tais ensinamentos fazem parte justamente desses 95% do Vaticano II que a FSSPX aceita. E, diferentemente dos 5% rechaçados deste Concílio pela FSSPX, os ensinamentos referidos mais acima são centrais para a fé e a moral católica e incluem alguns dos ensinamentos fundamentais do próprio Cristo.

A primeira interrogação que o comunicado da Santa Sé apresenta a um teólogo é: por que a recusa pela FSSPX de uma pequena parte dos ensinamentos do Vaticano II origina uma fratura entre a Fraternidade e a Santa Sé, enquanto a recusa mais numerosa e importante dos ensinamentos do Vaticano II por parte de outros grupos os deixa tranquilos em seu lugar e em posse de uma plena condição canônica? A recusa da autoridade do Vaticano II pela FSSPX não pode ser a resposta a esta questão. Na realidade, a FSSPX mostra maior respeito pela autoridade do Vaticano II que a maior parte das ordens religiosas na Igreja.

É interessante observar que os textos do Vaticano II rechaçados pela FSSPX são aceitos por esses grupos dentro da Igreja que recusam outros ensinamentos deste Concílio. Alguém poderia supor, portanto, que são justamente estes textos específicos – sobre a liberdade religiosa, a Igreja, o ecumenismo, a colegialidade – que causam o problema. A fratura entre a Santa Sé e a FSSPX nasce porque ela rechaça estes elementos particulares. Mas se é este o caso, a primeira pergunta se reapresenta, simplesmente, com maior força.

Problemas com a doutrina católica?

Se a fratura entre a Santa Sé e a FSSPX não nascesse da recusa da autoridade do Concílio Vaticano II pela Fraternidade, poderia ser o caso de a fratura nascer da posição doutrinal da mesma FSSPX. Depois de tudo, há dois aspectos da posição da FSSPX sobre o Vaticano II. O primeiro é a tese segundo a qual algumas afirmações do Vaticano II são falsas e não devem ser aceitas; este é o aspecto que rechaça a autoridade do Concílio. O outro aspecto é a descrição positiva da doutrina que deveria ser aceita no lugar das alegadas falsas afirmações. Este segundo aspecto é o mais importante da discussão entre a FSSPX e as autoridades romanas. Afinal de contas, a finalidade da existência dos ensinamentos magisteriais é comunicar a verdadeira doutrina aos católicos, e sua autoridade sobre os católicos deriva desta finalidade. Este aspecto da posição da FSSPX consiste em afirmações sobre as doutrinas que os católicos deveriam crer, afirmações que em si mesmas não dizem nada sobre os conteúdos ou a autoridade do Vaticano II. Devemos, portanto, considerar se estas afirmações podem originar uma fratura entre a Santa Sé e a FSSPX.

Ao julgar a posição doutrinal da FSSPX, devemos ter em conta que há uma diferença essencial entre a posição da FSSPX sobre o Vaticano II e a posição desses setores dentro da Igreja que rejeitam os ensinamentos acima citados, tanto de “Dei Verbum” como de “Lumen gentium” e “Gaudium et spes”. Estes setores simplesmente afirmam que certas doutrinas da Igreja Católica não são verdadeiras: eles rechaçam o ensinamento católico e ponto. Pelo contrário, a FSSPX não defende que ensinamento da Igreja Católica seja falso: defende que algumas afirmações do Vaticano II contradizem os ensinamentos magisteriais que têm maior autoridade e, portanto, aceitar as doutrinas da Igreja Católica exige aceitar estes ensinamentos mais autorizados, rejeitando a pequena porção de erros presentes no Vaticano II. Ela sustenta que o ensinamento verdadeiro da Igreja Católica deve ser encontrado nas afirmações precedentes e mais autorizadas.

Positivamente, portanto, a posição doutrinal da FSSPX consiste em defender os ensinamentos de uma parte dos pronunciamentos magisteriais. O Padre Gleize enumera os mais importantes pronunciamentos em questão: a encíclica de Gregorio XVI “Mirari vos”,  a encíclica de Pio IX “Quanta cura” com o respectivo “Syllabus”, as encíclicas de León XIII “Immortale Dei” e “Satis cognitum”, as encíclicas de Pio XI “Quas primas” e “Mortalium animos”, as encíclicas de Pio XII “Mystici corporis” e “Humani generis”, e a constituição do Concílio Vaticano I “Pastor aeternus”. Todos estes são pronunciamentos magisteriais de grande autoridade e, em algum caso, incluem definições dogmáticas infalíveis, o que não ocorre com o Concílio Vaticano II.

Isso apresenta a segunda questão a respeito da posição da Santa Sé sobre a FSSPX, que induz um teólogo a se perguntar: como pode haver objeções à FSSPX quando ela defende a verdade de pronunciamentos magisteriais de grande autoridade?

É uma interrogação que tem em si mesma a resposta: não pode haver tais objeções. Se a posição da FSSPX sobre a doutrina pode ser julgada objetável, deve ser sustentado que sua posição não coincide com a que realmente ensinam os pronunciamentos magisteriais e, portanto, a FSSPX falsificaria o significado de tais pronunciamentos. Esta tese não é fácil de ser defendida, pois quando esses pronunciamentos precedentes foram promulgados, deram origem a um considerável corpo de estudos teológicos cujo fim era a sua interpretação. O significado que a FSSPX lhes atribui deriva deste conjunto de estudos e corresponde a como esses pronunciamentos foram entendidos no tempo em que se produziram.

Isso faz com que a terceira questão que surge em um teólogo seja ainda mais precisa e urgente: o que ensinam, na realidade, estes pronunciamentos, se não é o que a FSSPX diz que ensinam?

A resposta que muitos dão é que os significados efetivos destes pronunciamentos são dados por, ou ao menos estão em harmonia com, os textos do Concílio Vaticano II que a FSSPX rejeita. Podemos admitir esta resposta como verdadeira, mas isso não ajudará a responder a pergunta. Os textos do Vaticano II não oferecem muitas explicações sobre o significado destes pronunciamentos precedentes. Por exemplo, a “Dignitatis humanae” diz simplesmente que seu ensinamento “deixa íntegra a doutrina tradicional católica sobre o dever moral dos homens e das sociedades para com a religião verdadeira e a única Igreja de Cristo”. Com isso, não oferece nenhuma explicação desta doutrina.
A insuficiência desta resposta conduz à quarta questão, que é a segiunte: qual é o ensinamento autorizado da Igreja Católica sobre os pontos disputados entre a FSSPX e a Santa Sé?

Não há nenhuma dúvida de que as discussões doutrinais entre ambas as partes implicam um exame da questão, mas a reserva de tais discussões deixa o resto da Igreja às escuras sobre esta matéria. Sem uma resposta à quarta questão, não há possibilidade de resposta a esta quinta pergunta: por que as posições doutrinais da FSSPX dão origem a uma fratura entre a Fraternidade e a Santa Sé?

Mas esta quinta pergunta, embora significativa, não tem a importância da quarta. A natureza do ensinamento da Igreja Católica sobre a liberdade religiosa, o ecumenismo, a Igreja e a colegialidade é de grande importância para todos os católicos. As perguntas suscitadas pelas discussões entre a Santa Sé e a FSSPX dizem respeito a toda a Igreja, não só às partes empenhadas na discussão.