Breve estudo comparativo das analogias entre a sociedade religiosa e a sociedade política segundo Bonald e Donoso Cortés

Postado em 07-03-2008

João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Se não me engano, foi Montesquieu o primeiro pensador moderno a chamar a atenção para a necessidade do estudo das relações entre a sociedade religiosa e a sociedade política, analisando o influxo que reciprocamente exercem entre si as instituições eclesiásticas e políticas. No século XIX o tema despertou vivo interesse entre os pensadores e historiadores. Vale recordar o precioso trabalho de Fustel de Coulanges A cidade antiga (1864), que examina o poder das idéias religiosas sobre a organização política da mais remota antigüidade. Diz Fustel de Coulanges sobre as primitivas instituições políticas: “Pouco importa investigar a causa que determinou a união de tribos vizinhas. Quer a união fosse voluntária, quer fosse imposta pela força superior de alguma tribo, ou pela vontade poderosa de algum homem, é certo ter sido ainda o culto quem estabeleceu  este vínculo de nova associação. As tribos agrupadas para formar a cidade nunca deixaram de acender o fogo sagrado e de ter religião comum. (…) Os homens dos tempos antigos estiveram submetidos a uma religião tanto mais poderosa sobre suas almas quanto mais rude; essa religião ditara-lhes o direito, do mesmo modo que lhes dera instituições políticas.(…) A religião fora, durante séculos, a única orientação de governo.”1

Mas foi em ambiente intelectual católico, talvez devido ao abalo causado pelos princípios revolucionários de 1789 que produziram a separação entre Igreja e Estado, que surgiram os mais alentados estudos sobre as analogias entre a sociedade religiosa e a sociedade política. Refiro-me à obra do visconde Luís de Bonald (1754-1830), Theorie du pouvoir politique et religieu, e ao Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo de Juan Donoso Cortés (1809-1853).

Luís de Bonald notabilizou-se pela defesa da tradição com base em seu argumento sobre a origem divina da linguagem. Diz Bonald que o homem não inventou a palavra, que é o vínculo social e político mais importante, mas Deus, criando o homem com uma natureza social, deu-lhe a linguagem. Segundo Bonald, o homem não pôde encontrar a expressão do seu pensamento porque para isso seria necessário ter antes o pensamento dessa expressão: “O homem pensa sua palavra antes de falar seu pensamento” ou “o homem não pode falar seu pensamento sem pensar sua palavra.” (Recherches philosophiques sur les objets des connaissances morales)

Cumpre ter presente essa teoria de Bonald sobre a origem da linguagem para entender seu pensamento político. Afirma Bonald que há duas classes de verdades (verdades que são objeto da linguagem): verdades gerais, morais ou sociais e verdades particulares, individuais ou fatos físicos. As verdades gerais assim se chamam porque nos são ministradas pela sociedade por meio da linguagem, ao passo que as verdades físicas o homem as conhece por si mesmo através dos sentidos. “As verdades gerais só são conhecidas por nosso espírito através das expressões que as fazem presentes e perceptíveis ao homem e as encontramos – diz Bonald – todas e naturalmente na sociedade a que pertencemos, a qual nos transmite o conhecimento delas ao comunicar-nos a linguagem que fala.”2

Como se vê, Bonald foi defensor de uma espécie de sociologismo espiritualista que tenta explicar o problema moral reduzindo-o a um produto do meio social. Neste ponto sua análise deixa muito a desejar, pois uma explicação do conhecimento da norma moral fundamental requer não só um estudo gnosiológico mas também uma investigação metafísica. Quer dizer, não há outra explicação possível do conhecimento da lei moral senão aquela que diz que a consciência moral é inata ao homem dotado de uma razão que exerce uma função não apenas teórica que lhe permite, com base nos primeiros princípios evidentes, avançar no conhecimento da realidade, mas ainda uma função prática que lhe permite, igualmente com base em primeiros princípios, agir retamente.

É certo que o meio social exerce poderosa influência sobre procedimento moral dos indivíduos, sobretudo através da linguagem e da criação artificial de jargões e do lançamento de neologismos “malditos” ou “politicamente corretos”. Por isso mesmo a linguagem é um patrimônio de uma nação a ser cuidadosamente preservado a fim de que se conserve a consciência nacional.

Acresce considerar como, de acordo com a teoria de Bonald sobre a origem das verdades da ordem moral, se poderia explicar  a diversidade de sistemas morais que se encontra em diferentes culturas e períodos da história. Deus teria criado uma única ordem moral juntamente com a faculdade da linguagem e, em conseqüência do pecado original, essa faculdade se teria corrompido originando várias línguas, a par da desintegração da justiça primitiva?3

Em 1791 Bonald emigra para Heidelberg e em 1796, em Constança, publica Theorie du pouvoir politique et religieu, sua obra maior. Seu pensamento político conservador caracteriza-se basicamente pela afirmação de que os fundamentos da prosperidade pública residem na solidez de três instituições: a família, a corporação e a agricultura. Toda sociedade bem constituída exige unidade religiosa, unidade de poder e distinções sociais permanentes. Onde faltam esses elementos não há sociedade constituída. Outra tese de Bonald, que fixa o homem numa posição totalmente passiva na organização social, diz que a sociedade historicamente constituída é que constitui o homem e não contrário.

São notáveis algumas de suas analogias entre sociedade religiosa e sociedade política, conforme se pode verificar através do capítulo X de Theorie du pouvoir que traduzimos abaixo. Cumpre ressaltar sua crítica às opiniões de Montesquieu sobre as relações entre o luteranismo e calvinismo e o poder político, bem como sua análise sobre a afinidade entre a democracia e o despotismo ou militarismo. Fundamentado na afirmação de Montesquieu de que o governo militar é mais republicano que monárquico, Bonald pretende que a democracia tem uma inclinação natural a aliar-se à autoridade militar. Esta opinião leva-nos a recordar não só a página da história do Brasil relativa à proclamação da república mas a considerar a crescente ascendência do Pentágono e do poder militar e policial sobre o poder civil nos rumos da democracia norte-americana a pretexto de combate à ameaça terrorista.

Igualmente dignas de nota são as observações de Bonald a respeito do influxo social das idéias religiosas. Neste ponto as suas considerações parecem antecipar-se um século às finas interpretações sociológicas de A ética protestante e o espírito do capitalismo de Max Weber. A propósito chama ainda mais a atenção uma circunstância talvez significativa, a ser investigada por um estudo ulterior, isto é, o fato de na mesma Heidelberg para onde Bonald emigrou em 1791 e onde provavelmente escreveu Theorie du pouvoir, Max Weber ter feito seus estudos de ciências jurídicas econômicas e sociais. Seria de bom alvitre uma pesquisa com o objetivo de descobrir se, não obstante a preocupação weberiana de colocar o homem no centro da vida social, ao contrário da concepção organicista de Bonald, não seria ele tributário do pensador tradicionalista francês em sua tese sobre o poder das idéias teológicas sobre as instituições sociais.

Quanto às analogias entre a sociedade religiosa e a sociedade política estabelecidas por Donoso Cortés em seu Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo, aparecido em 1851, importa sublinhar que o autor as desenvolve a partir de um comentário às seguintes palavras de Proudhon, que também admitia semelhantes analogias: “É coisa que causa admiração ver de que maneira em todas as nossas questões políticas tropeçamos sempre com a teologia.”

A análise de Donoso Cortés acerca da influência social das idéias religiosas é mais profunda que a de Bonald. Não obstante o seu estilo apologético, a explicação de Donoso Cortés sobre a força das idéias religiosas é de natureza altamente metafísica. Diz Donoso Cortés a propósito do pensamento de Proudhon: “A teologia, por isso mesmo que é a ciência de Deus, é o oceano que contém e abarca todas as ciências, assim como Deus é o oceano que contém e abarca todas as coisas.”4 E logo mais adiante tira a conclusão política do seu raciocínio: “Possui a verdade política quem conhece as leis a que estão sujeitos os governos; possui a verdade social quem conhece as leis a que estão sujeitas as sociedade humanas; conhece estas leis quem conhece a Deus; conhece a Deus quem ouve o que Ele afirma de si e crê o que ouve. A teologia é a ciência que tem por objeto essas afirmações. De onde se segue que toda afirmação relativa a Deus, ou, o que significa dizer a mesma coisa, que toda verdade política ou social se converte forçosamente em uma verdade teológica.”5

Ao contrário, Bonald, para demonstrar a importância sociológica das idéias religiosas, limita-se a responder, aos que objetam que no mundo moderno os governantes são homens arreligiosos, que os governantes, mesmo não professando nenhum credo, são obrigados a governar levando em conta as idéias religiosas.

Assentadas as referidas premissas, Donoso Cortés examina as idéias políticas predominantes em seu tempo, fazendo uma crítica ao liberalismo e ao socialismo, cotejando ambos sistemas e mostrando os erros teológicos de que derivam. A análise de Donoso Cortés assume efetivamente um grande valor metafísico, pois o autor se preocupa em resolver a questão a partir do problema do mal, considerando a solução que tanto o liberalismo quanto o socialismo pretendem dar à transcendente questão.

Donoso Cortés tem a convicção de que a escola socialista, ainda que falsa, tem uma superioridade teórica sobre a liberal, que se perde em contradições insolúveis devido ao seu pragmatismo. Assim, a respeito do suposto secularismo da escola liberal diz : “No que concerne à escola liberal, direi somente que em sua soberba ignorância despreza a teologia, e não porque não seja teológica à sua maneira, mas porque, apesar de o ser, não sabe que o é. Esta escola ainda não chegou a compreender, e provavelmente não compreenderá jamais, o estreito vínculo que une entre si as coisas divinas e humanas, o grande parentesco que têm as questões políticas com as sociais e com as religiosas, e a dependência em que estão todos os problemas relativos ao governo das nações, daqueles que se referem a Deus, legislador supremo de todas as associais humanas.”6

Aprofundando sua reflexão sobre a origem dos problemas políticos e sociais, Donoso Cortés evidencia as inconsistência dos sistemas impugnados que ignoram a natureza moral do homem em suas especulações filosóficas:

A escola liberal tem por certo que não há outro mal senão o que está nas instituições políticas que herdamos dos tempos pretéritos, e que o supremo bem consiste em abater essas instituições. A maioria dos socialistas tem por certo que não há outro mal senão o que está na sociedade e que o grande remédio está na completa destruição das instituições sociais. Todos convêm em que o mal nos vem dos tempos passados: os liberais afirmam que o bem pode realizar-se já em tempos presentes, e os socialistas que a idade de ouro só pode começar em tempos futuros.

Consistindo, assim para uns e outros, o supremo bem em uma convulsão suprema, que, segundo a escola liberal, deve realizar-se nas regiões políticas, e segundo as escolas socialistas nas regiões sociais, umas e outras convêm na bondade substancial e intrínseca do homem, que há de ser o agente inteligente e livre de uma e outra convulsão. Esta conclusão foi enunciada explicitamente  pelas escolas socialistas e está implicitamente envolta na teoria que sustentam as escolas liberais. De tal maneira procede aquela conclusão desta teoria, que, sendo negada a conclusão, a teoria mesma vem a baixo. Com efeito: a teoria segundo a qual o mal está no homem e procede do homem é contraditória daquela outra segundo a qual o mal está nas instituições sociais ou políticas e procede das instituições políticas e sociais. Suposta a primeira, o que procede em boa lógica é extirpar o mal no homem, com o que se conseguirá sua extirpação na sociedade e no governo necessariamente. Suposta a segunda, o que procede em boa lógica é extirpar o mal diretamente na sociedade ou no governo, que é o lugar onde está seu centro e sua origem. Por onde se vê que a teoria católica e as racionalistas  são entre si não somente incompatíveis, mas também contraditórias. Pela teoria católica condena-se toda revolução, seja política ou social, como insensata e inútil. As teorias racionalistas condenam toda reforma moral do homem como inútil e como insensata. E assim uma e outras são conseqüentes em suas condenações; porque se mal não está nem no governo nem na sociedade, para que e por que a revolução da sociedade e do governo? E, ao contrário, se o mal não está nos indivíduos nem procede dos indivíduos, para que e por que a reforma interior do homem?7

Um aspecto de grande relevância das analogias estabelecidas por Donoso Cortés é o referente ao tema da liberdade individual. Nesta questão de capital importância o autor prova que a raiz  do totalitarismo se encontra na concepção panteísta : “A sociedade pode ser considerada de pontos de vista diferentes: o católico e o panteísta. Considerada do ponto de vista católico, não é outra coisa senão a reunião de uma multidão de homens que vivem todos sob obediência e ao amparo de umas mesmas leis e de umas mesmas instituições; considerada do ponto de vista panteísta, é um organismo que existe com uma existência individual, concreta e necessária. Na primeira suposição, é claro que não existindo a sociedade independentemente dos indivíduos que a constituem, nada pode estar na sociedade que não esteja antes nos indivíduos; de onde se segue, por conseqüência de força, que o mal e o bem que nela há vêm do homem. Considerado desse ponto de vista, é coisa absurda o intento de extirpar o mal na sociedade, na qual existe por incidência, e não tocar nos indivíduos, nos quais está originária e essencialmente.”8

E desenvolvendo uma reflexão teológica sobre o dogma da criação do homem, Donoso Cortés faz ver como a luz da fé auxilia a compreender bem as relações entre indivíduo e sociedade, questão de suma importância que nem o socialismo nem o liberalismo são aptos a resolver satisfatoriamente. O liberalismo, afirmando que o indivíduo é anterior à sociedade, nega todo vínculo real de solidariedade entre os homens na sociedade. Os homens, livres e iguais, guardariam entre si apenas um vago sentimento de filantropia. O socialismo, sob o influxo panteísta, leva à absorção dos indivíduos pelo Estado. De maneira que a única explicação racional da natureza da sociedade, que aliás decorre das verdades enunciadas por Donoso Cortés, é aquela que afirma ser o indivíduo dotado naturalmente de vínculos sociais desde a sua origem no seio de uma família a causa material da sociedade.  Diz Donoso Cortés:

Do dogma da concentração da natureza humana em Adão, unido ao dogma da transmissão dessa mesma natureza a todos os homens, procede, como uma conseqüência de seu princípio, o dogma da unidade substancial do gênero humano. Sendo o gênero humano uno, deve ser ao mesmo tempo vário, segundo aquela lei, a mais universal de todas as leis, a um mesmo tempo física e moral, humana e divina, em virtude da qual tudo o que é uno se decompõe no que é vário, e tudo o que é vário se resolve no que é uno. O gênero humano é uno pela substância que o constitui, e é vário pelas pessoas que o compõem; de onde se segue que é uno e vário ao mesmo tempo. Da mesma maneira, cada um dos indivíduos que compõem a humanidade, estando separado dos demais  pelo que o constitui indivíduo, e junto com eles pelo que o constitui indivíduo da espécie, isto é, pela substância, vem a ser, como o gênero humano, uno e vário ao mesmo tempo. O dogma do pecado atual é correlativo  ao dogma da variedade na espécie; o do pecado original e o da imputação é correlativo ao que ensina a unidade substancial do gênero humano; e como conseqüência de um e de outro vem o dogma segundo o qual o homem está sujeito a uma responsabilidade que lhe é própria e a outra responsabilidade que lhe é comum com os demais homens.

Essa responsabilidade em comum, a que se chama solidariedade, é uma das mais belas e augustas revelações do dogma católico. Pela solidariedade o homem, elevado à maior dignidade e às mais altas esferas, deixa de ser um átomo  no espaço e um minuto no tempo, e antevivendo-se  e sobrevivendo-se a si mesmo, prolonga-se até onde os tempos se prolongam e dilata-se  até onde se dilatam os espaços. Por ela afirma-se  e até certo ponto cria-se a humanidade, com cuja palavra, que carecia de sentido nas sociedades antigas, se significa a unidade substancial da natureza humana e o estreito parentesco que têm entre si uns com outros todos os homens.9 

Diria que, feito um cotejo entre o trabalho de Bonald e o de Donoso Cortes, a impressão que se tem é que este último se valeu com mais felicidade e proficiência  das verdades bíblicas na interpretação e análise da crise política dos seus dias. À luz das verdades eternas, pôde aprofundar-se mais em sua reflexão, de modo que sua obra conserva um valor perene e se lê ainda hoje com grande proveito. Ao contrário, a obra de Luís de Bonald, em muitos aspectos, nos parece mais circunstancial, tendo-se o autor limitado a examinar a evolução das instituições políticas em meio às contingências e vicissitudes históricas normais sem apontar as conseqüências escatológicas que interessam a uma reflexão filosófica ou teológica da história numa perspectiva cristã. Não obstante, a leitura de Bonald é igualmente útil, pois adverte o leitor para uma realidade que às vezes passa despercebida ou mesmo ignorada na análise de uma sociedade política: a presença da religião.

Para remate destas considerações diria que os nossos dias estão a exigir um esforço renovado na mesma direção das especulações de Bonald e Donoso Cortés para descobri as atuais analogias entre a sociedade religiosa e a sociedade política. A despeito da crescente secularização e laicização da cultura ocidental que se expande por todos os quadrantes através da geopolítica  americana de combate à ameaça terrorista, não há dúvida que por trás das ações de líderes de governo há uma visão de mundo perpassada de valores religiosos. Bush e Blair dizem-se homens religiosos e o são, de fato, à sua maneira. A isto acresce que, se examinarmos o problema do mundialismo, com meridiana clareza se nos manifesta a moderna analogia entre sociedade religiosa e sociedade política. A globalização pode, com efeito, ser fruto da moderna tecnologia e das exigências do sistema capitalista na hora atual em busca de novos mercados, levando tudo isto à queda de barreiras e à extinção de toda forma de isolamento e particularismo. Mas, se considerarmos que até recentemente havia na Europa e na América do Sul Estados nacionais soberanos e confessionais e que referidos Estados se laicizaram exclusivamente em decorrência das novas orientações doutrinárias emanadas do Concílio Vaticano II; se considerarmos que estas orientações modernas fomentam também um diálogo ecumênico humanista que faz soçobrar as barreiras entre os credos religiosos e se expressa até nas assembléias da ONU sobre os diversos problemas da paz e da segurança do mundo gerando um relativismo religioso que tende a conduzir a humanidade inteira à prática de uma vaga religiosidade sem dogmas e sem fronteiras definidas; se considerarmos tudo isto, veremos quão acertadas foram as intuições de Bonald, Donoso Cortés e, por que, não as de Proudhon.

 

 

Teoria do poder político e religioso

Visconde Luís de Bonald

Livro VI

As relações entre as sociedades religiosas e as sociedades políticas

Capítulo I

Analogias das sociedades religiosas e das sociedades políticas

 

Há na Europa cristã quatro formas diferentes de governo, a cada uma das quais corresponde uma religião absolutamente semelhante em seus princípios constitutivos e nas suas formas exteriores.

1º O governo ou constituição monárquica, com seu poder geral exterior, que é o monarca, sua força pública permanente ou profissão social, que é a nobreza, seus órgão encarregados do depósito e da interpretação das leis, seus estados gerais ou assembléias da sociedade. Tal é o governo da França; tal era outrora o governo de quase todos os reinos da Europa.

A esse governo corresponde a religião católica, com o seu poder geral que se manifesta no sacrifício, sua força pública ou profissão sacerdotal, seu órgão encarregado do depósito da doutrina e da interpretação das Escrituras, seus concílios gerais ou assembléias  gerais da sociedade. Por isso, o padre Fleury dá à religião cristã o nome de monarquia (Cf. o seu XII Discurso sobre a história eclesiástica).

2º O governo aristocrático hereditário, como de Veneza, de Gênova, da Holanda e de alguns cantões suíços. Há uma representação de poder geral na do doge, do avoyer e do stathouder, mas a autoridade está nas mãos de certo número de famílias, que detêm igualmente o depósito e a interpretação das leis, e constituem uma distinção hereditária.

A esse governo corresponde o luteranismo puro. Com efeito, o luteranismo originário conservou uma representação de poder geral, porquanto admitiu momentaneamente a presença real de Jesus Cristo, poder conservador da sociedade religiosa10; a autoridade eclesiástica está nas mãos de superintendentes, e, em alguns lugares, nas mãos de bispos que constituem uma distinção permanente, mas não reconhecem absolutamente um chefe.

3º O governo democrático, tal como o de Genebra e de alguns cantões suíços. O poder geral, nesses países, não existe nem sequer como representação. De acordo com os verdadeiros princípios desse governo, o poder deveria estar nas mãos de todos, o que quer dizer que cada um deveria exercer o seu poder particular: entretanto, como a democracia pura, segundo o próprio Rousseau, é impossível, e como um governo não poderia manter-se com tantos poderes particulares, restringiu-se o número desses poderes particulares e há apenas certo número de cidadãos que, sob o nome de conselho, de senado etc, podem exercer o próprio poder e o poder de outros. Nesse governo não há absolutamente distinções hereditárias; só há funções vitalícias.

A esse governo corresponde o calvinismo, o puritanismo ou o presbiterianismo. Esta religião não tem nenhum poder geral, nem sequer de forma transitória, pois não admite nenhuma presença real do poder conservador da sociedade cristã. Não há uma autoridade com poder de magistério que tenha o depósito da doutrina e cada um tem o direito de fazer uso da sua inteligência para interpretar as Sagradas Escrituras ou as leis da sociedade. No entanto, o calvinismo puro é tal impraticável quanto a democracia pura. O governo da sociedade religiosa não poderia manter-se com uma multidão indefinida de interpretações particulares. Por esse motivo restringiu-se o número de intérpretes e de inspirados a um conselho ou consistório que decide, ou melhor, que aconselha em matéria de dogmas ou de disciplina, e dá interpretações particulares para a vontade geral. Não há nenhuma sucessão espiritual, nenhum caráter11. Os ministros são meros funcionários amovíveis, sem nenhuma hierarquia entre eles.

4º O governo misto de monarquia, de aristocracia e de democracia como existe na Inglaterra, isto é, mesclado de poder geral e de poderes particulares. Há um poder geral, mas negativo, que pode impedir, mas que não pode fazer. Não é poder geral para conservar, mas para impedir que se destrua. O poder positivo ou o poder de fazer é o poder particular dos pares e dos comuns: esse poder não é um poder conservador; pois, se o fosse, não seria necessário um poder que tivesse veto absoluto sobre suas resoluções. Há uma nobreza hereditária ou distinções sociais permanentes, que não são uma força ou ação de poder, pois são elas mesmas um poder. A semelhante governo, único nas sociedades políticas, corresponde uma religião única nas sociedades religiosas: refiro-me à religião anglicana ou episcopal, que é, evidentemente, um misto de catolicismo, de luteranismo e de calvinismo. O dogma da presença real, ou o poder conservador da religião cristã, aí é puramente negativo. Escutemos Burnet, o historiador da reforma da Inglaterra: “A Igreja Anglicana tem uma tal moderação sobre esse ponto (da presença real) que não havendo nenhuma definição positiva a respeito da maneira como o corpo de Cristo é presente no sacramento, as pessoas de diferente sentimento podem praticar o mesmo culto sem estarem obrigadas a declarar-se, e sem que se possa presumir que elas contradigam a fé umas das outras.”

Se o poder geral conservador da sociedade religiosa aí é negativo e equívoco, a força geral dessa sociedade ou a profissão sacerdotal é negativa e equívoca como o poder; quer dizer, ela não tem autoridade em si mesma e é dependente da autoridade civil. Com efeito o rei que não tem a plenitude da autoridade política tem, ao menos, pelos termos, a plenitude da autoridade religiosa. Assim, a profissão sacerdotal tem um chefe na religião anglicana, que ela não tem na religião luterana. Mas essa supremacia do rei, em matéria religiosa,  constitui um vínculo não necessário e contrário à natureza das coisas; porquanto submete a força de uma sociedade religiosa à direção do poder de uma sociedade política. A faculdade de interpretar a Escritura não é deixada completamente, sem restrição, aos fiéis, como na religião calvinista, de sorte que o poder particular é limitado na sociedade religiosa, como o poder particular é contrabalançado na sociedade política. Assim, sem entrar nas discussões teológicas estranhas ao assunto que trato, ou melhor, ao aspecto sob o qual o considero, é evidente que a religião anglicana apresenta, sob um exterior de culto católico, os dogmas das igrejas reformadas, como o governo político da Inglaterra apresenta, sob o exterior de uma constituição monárquica, os princípios das sociedades republicanas.

O exemplo da França regenerada corrobora os meus princípios. Ao mesmo tempo que ela estabelecia uma constituição presumidamente monárquica, a que se denominou uma democracia real, ela fundava uma religião bizarra que se poderia chamar um catolicismo presbiteriano. Essa religião tornou-se um puro calvinismo, quando o governo se tornou puramente democrático; e, finalmente, degenerou em ateísmo público ou social, quando a anarquia se constituiu como governo revolucionário. É necessário que não se esqueça de assinalar que essa última religião se propagou, como todas as religiões de opinião, pelos meios ordinários do interesse, do prazer e do terror, isto é, por tudo o que pode encadear o espírito, o coração e os sentidos do homem; e a pilhagem, o divórcio e a guilhotina foram os piedosos artifícios dos quais se serviram os novos apóstolos para propagar sua doutrina.

Entre os turcos e tártaros encontra-se essa secreta conformidade entre a religião e o governo. O mufita exerce na religião seu poder particular, como o sultão o exerce no governo, e o lama é absoluto como o kan.

Montesquieu percebeu essa conformidade secreta entre as religiões e os governos: “A religião católica convém melhor, diz ele, a uma monarquia, e a protestante adapta-se melhor a uma república.” Mas, conforme seu hábito, ele enuncia porém não aprofunda. “Nos países, continua o mesmo autor, onde a religião protestante se estabeleceu, as revoluções fizeram-se sobre o plano do estado político. Lutero, tendo a seu favor grandes príncipes, não poderia fazê-los experimentar uma autoridade eclesiástica que não tivesse preeminência exterior; e Calvino, tendo a seu favor povos que viviam em repúblicas ou burgueses obscuros vivendo em monarquias, não podia estabelecer preeminências e dignidades.” Vê-se que Montesquieu faz de Lutero e Calvino dois astutos que acomodaram aos gostos particulares de seus sequazes a religião que se gabavam de haver reconduzido à sua pureza primitiva. Mas essa censura não é justa; pois se Calvino, ou ao menos Lutero, sabia fazer curvar a moral às paixões dos grandes ou às necessidades das circunstâncias, como o fez no caso do landegrave de Hesse, eles eram, ambos, muito teimosos e orgulhosos para fazer inclinar o dogma, isto é, suas opiniões, às vontades de quem quer que fosse; e aliás, quando eles começaram a vender sua doutrina, não podiam saber ainda de que classe seriam seus prosélitos. É necessário buscar outras causas para essa diferença nas instituições desses dois famigerados reformadores.

1º A conservação de preeminências exteriores, ou seja, de uma hierarquia eclesiástica no luteranismo, a abolição de toda hierarquia no calvinismo resultou necessariamente de princípios opostos, adotados por Calvino e Lutero e não de gostos particulares dos seus sectários. A partir do momento em que Lutero conserva um poder geral exterior na presença real, ele deve necessariamente conservar uma força púbica exterior na profissão episcopal e sacerdotal; Calvino não podia conservar nenhuma força pública, exterior e visível, pois que ele abolia todo poder geral exterior. Não era necessário haver sacerdotes numa religião que não tinha Deus, como não é necessário haver nobreza em um Estado que não tem rei.

2º O luteranismo ou a reforma em geral não tem autoridade eclesiástica ou preeminências exteriores, isto é, ela é episcopal só na Suécia, na Dinamarca e na Inglaterra, onde ela se aproxima da constituição monárquica, e isto é uma prova nova e forte da tendência que tem a religião de constituir-se como o governo. Nos outros Estados, que abraçaram a reforma de Lutero, o luteranismo não conhece outra preeminência exterior afora os superintendentes  que, sendo pastores de uma igreja particular, são deões e não bispos, e distinguem-se de seus confrades pelas funções mais gerais, sem serem seus superiores por uma dignidade mais eminente.

Ora a revolução política se fez sobre o plano de uma revolução religiosa, como na Holanda e em Genebra, onde o calvinismo precedeu à forma de república que elas tem hoje. Ora a revolução religiosa se fez sobre o plano do estado político, como na Suíça, onde a reforma política havia precedido a reforma religiosa: outra prova da atração mútua que exercem um sobre o outro o calvinismo e a democracia, uma sociedade política sem poder geral ou sem monarca e uma sociedade religiosa sem poder geral ou sem Deus.

As únicas monarquias nas quais o calvinismo desde o princípio teve partidários declarados são a França e Navarra ( que se pode considerar, então, como uma só monarquia): e certamente havia outros sectários apenas entre burgueses obscuros; já que contava, entre seus prosélitos, um rei, algumas rainhas e príncipes de sangue, a mais alta nobreza, magistrados etc.

 

 

 

 

Capítulo II

 

Efeito da analogia que têm entre si as sociedades religiosas e as sociedades políticas

 

 

 

Se cada religião ou seita diferente de religião corresponde a uma forma particular de governo, é evidente que, em cada sociedade, o governo deve fazer um secreto esforço para estabelecer a religião que tem mais analogia com seus princípios, ou a religião a tender a estabelecer o governo que lhe corresponde, porque a sociedade civil, sendo a reunião da sociedade religiosa e da sociedade política, só pode, assim parece, estar tranqüila quando reinar um perfeito equilíbrio entre as duas partes que a compõem. Este efeito pode não ser sensível, ao menos em longo tempo, nas sociedades políticas não constituídas que não existem por si mesmas, e dependem de fato ou de direito de qualquer outra sociedade; mas será facilmente perceptível nas sociedades mais constituídas, que têm em si mesmas o princípio da sua existência.12

Para se convencer desta verdade, basta ler a história e olhar  os Estados do Norte que formavam uma confederação aristocrática; a Boêmia, a Polônia, onde o poder geral não estava constituído, pois que eletivo, adotaram uma religião onde o poder geral não era constituído; porque, como o fiz notar, o luteranismo admite apenas instantaneamente a presença real do Homem-Deus. Não somente a sociedade política na Alemanha não estava constituída, mas a sociedade religiosa ou a religião cristã jamais se havia constituído perfeitamente aí, pois o corpo episcopal, primeiro grau da força pública conservadora da sociedade religiosa, depositária do magistério da doutrina, estava e ainda está na Alemanha desviada do seu verdadeiro fim, e representava um poder da sociedade política, fosse nas sociedades parciais onde os bispos são soberanos, fosse na sociedade ou confederação geral, representada na dieta, onde o clero é poder, como os outros príncipes. Ora, lá onde o clero é poder da sociedade política, ele não pode ser força pública conservadora da sociedade religiosa. Tanto isso é verdade que os bispos, na Alemanha, não podem exercer em suas dioceses as funções espirituais e episcopais e estão obrigados a ter sufragâneos. Mas uma sociedade religiosa sem força pública conservadora, ou cuja força pública não pode cumprir suas funções, não poderá conservar-se. A doutrina de Lutero propagou-se assim com mais facilidade na Alemanha aristocrática  e tornou-se mais aristocrática. A guerra dos 30 anos, que estourou  por motivos religiosos, terminou por um tratado, que se pode considerar como a constituição da aristocracia alemã; porque, no referido diploma legal, os direitos dos membros da confederação e o exercício dos diversos poderes que a compõem foram definidos e garantidos. A religião havia agido sobre o governo; o governo, por sua vez, reagiu sobre a religião. À medida que o governo se afastou da unidade monárquica, a religião católica se afastou da unidade religiosa. É no seio da Alemanha católica que, em nossos dias, numa obra célebre, levantou-se a questão: Quid est Papa?13 e o respeito pela Santa Sé aí arrefeceu extremamente. O bom observador nota, no clero católico de várias partes da Alemanha, uma secreta inclinação para os dogmas ou disciplina das igrejas reformadas: inclinação que se trai pela admiração servil que o maior número dos seus membros manifesta altamente pelos escritos, pelos discursos dos ministros reformados, aos quais procuram imitar até em seu modo exterior, pela alteração da disciplina e excessivo relaxamento da lei de abstinência14 e dos hábitos eclesiásticos, introdução nas igrejas do canto em língua vulgar e sobretudo pela desaprovação que, em muitos lugares, o clero da Alemanha manifestou à recusa feita pelo clero da França de aderir às leis que lhe conferiam uma constituição civil. Vou mais longe; e fundado em meus princípios, ouso afirmar que, se a sociedade política alemã não se constituir, a sociedade religiosa se afastará cada vez mais de sua constituição natural, isto é, da religião católica. Mas a sociedade política tende a constituir-se. Já se vê cambalear este antigo edifício da confederação alemã; o clero e  a nobreza serão reconduzidos, cedo ou tarde, ao seu destino natural de força pública conservadora da sociedade religiosa e da sociedade política; os poderes políticos constituir-se-ão, quer dizer, as monarquias estabelecer-se-ão sobre as ruínas da Reforma; porque a sociedade religiosa, como a sociedade política, tende necessariamente, infalivelmente, a constituir-se, e a constituição está na natureza da sociedade, porque a sociedade está na natureza do homem. Pode-se prever que a queda da Reforma, na Alemanha, será acelerada pela própria Reforma, e resultará das vistas políticas dos chefes do corpo evangélico que não podem constituir seu governo sem destruir sua religião. Confio essas reflexões às meditações mais profundas do leitor instruído; ele as aproximará dos acontecimentos presentes e dos possíveis fatos subseqüentes, dos atentados perpetrados recentemente contra a constituição alemã e dos efeitos que podem ter.15

A reforma de Calvino, que aboliu todo poder geral, toda autoridade única na sociedade religiosa, tende necessariamente a estabelecer a democracia nas sociedades constituídas, onde ela penetrou, abolindo todo poder geral e desencadeando os poderes particulares. Essa mudança foi projetada na França, a qual queriam os calvinistas dividir em repúblicas federativas sob o nome de círculos, subdivididos em cantões16; ele teve êxito em Genebra, da qual se queria fazer um modelo dessas repúblicas. Teve êxito na Holanda; e sem dúvida teria tido sucesso na Inglaterra, sem a oposição que encontrou da parte da religião anglicana que, mais constituída (pois que ela não rejeitava formalmente o dogma da presença real, do poder geral da sociedade religiosa e conservava na ordem episcopal uma espécie de força pública, ainda que dependente do poder político), lhe opôs sua força de resistência. A sociedade religiosa defendeu ao mesmo tempo a sociedade política, de modo que, apenas o rei sucumbiu, a realeza foi salva. Abaixo os bispos, abaixo o rei, dizia Tiago I; o que, em outros termos, quer dizer não à constituição religiosa, não à constituição política.

Sugere-se aqui uma reflexão importante: viu-se, na primeira parte desta obra, a afinidade existente entre a democracia e o despotismo. Ora, o despotismo não é propriamente senão a autoridade militar mais absoluta. A democracia aliar-se-á então naturalmente à autoridade militar. Ouvi Montesquieu: “Uma regra bastante geral é que o governo militar (ele refere-se ao despotismo dos imperadores romanos) é, sob certos aspectos, mais republicano que monárquico.” Mas se o calvinismo apela para a democracia; se a democracia se alia naturalmente ao despotismo ou à autoridade militar, o calvinismo aliar-se-á, então, à autoridade militar absoluta. A prova disto está diante dos nossos olhos. Os estados monárquicos da Europa onde o calvinismo é dominante, seja porque é a religião do príncipe, seja porque é a do Estado ou do maior número dos seus membros, são os Estados da casa de Brandeburg e os da casa de Hesse. Ora, o governo, nesses dois Estados, é mais militar que em todos outros do império alemão ou mesmo da Europa cristã; ele teria de fato uma forte tendência ao governo militar o mais absoluto, se a autoridade do chefe não fosse aí temperada pelas virtudes do príncipe. A história oferece provas decisivas da tendência do calvinismo a aliar-se ao governo despótico: na Inglaterra, o calvinismo chegou ao despotismo de Cromwel; na França, culminou pela tirania de Robespierre.

Se o calvinismo tende a estabelecer a democracia, se a democracia tende a apelar para o calvinismo, um estado calvinista e democrático ao mesmo tempo será, pois, perfeitamente tranqüilo, porquanto haverá uma relação perfeita entre seu governo religioso e seu governo político: alguém se equivocaria  se assim o cresse. Chamo a atenção para os fatos. Na Europa há um só Estado, o de Genebra, onde o puro calvinismo se acha unido à democracia tão pura quanto possa existir; e entretanto a exigüidade do território, o pequeno número de cidadãos, seus costumes, a vantagem da sua situação geográfica, a garantia de três potências não puderam garantir por quinze anos seguidos uma situação aceitável de tranqüilidade. E Rousseau diz que Calvino foi um grande político! Digo mais: o próprio Deus não poderia, sem um milagre contínuo, manter a paz em uma sociedade sem poder religioso e sem poder político, na qual não exista nenhum freio, nem para as vontades depravadas, nem para os atos exteriores dessas mesmas vontades.

Disse que Genebra era o único Estado calvinista e democrático ao mesmo tempo. Com efeito, todas as outras democracias da Europa são católicas, ou todas as aristocracias são reformadas. E observai a diferença política entre as duas religiões. As repúblicas católicas, italianas ou suíças, são mais tranqüilas que as repúblicas reformadas da Suíça ou da Holanda.17 A religião católica se presta à democracia de Zug, como à aristocracia burguesa de Lucerna, como a aristocracia patrícia de Veneza, como a aristocracia real da Polônia, como à monarquia austríaca ou espanhola. É correto dizer que a religião católica convém melhor que outra a um governo democrático: “Menos repressiva é a religião, diz Montesquieu, mais devem as leis civis reprimir.” Portanto, quanto menos as leis civis ou o governo for repressivo, tanto mais o deve ser a religião.

O calvinismo, inquieto e turbulento na Holanda, em Zurique, em Genebra, como na Inglaterra, como na França, não pode conciliar-se com nenhum governo, menos ainda com um governo que se lhe assemelhe pela conformidade dos seus princípios: e se a sociedade civil, aquela que assegura melhor a conservação do homem moral e do homem físico, se compõe da sociedade religiosa constituída e da sociedade política constituída, a espécie de sociedade que resultará da reunião de uma sociedade religiosa não constituída e de uma sociedade política não constituída, não poderá conservar nem o homem moral nem o homem físico; ela oferecerá, se ouso dizê-lo, o maximum, o nec plus ultra da desorganização religiosa e política, da destruição física e moral dos seres que compõem a sociedade. A França calvinista e democrática oferece a prova disto.

Ainda que o calvinismo não possa simpatizar com a democracia, ele tende, entretanto, sem cessar, a estabelecê-la. Não há ninguém que não observe na seita calvinista uma clara inclinação para a Revolução Francesa e disposições inequívocas a favorecer-lhe o progresso.18 Esta disposição não é um mistério, e não passou despercebida aos chefes dos governos reformados.

Se cada religião tende a estabelecer o governo que é análogo a ela, ou o governo a introduzir a religião que lhe convém, a religião católica ou constituída tende então a estabelecer o governo monárquico, e o governo monárquico a estabelecer a religião católica. Esta observação, verdadeira em geral, só poderia ser aplicável às sociedades sólidas, que têm em si mesmas o princípio de sua existência, as únicas que merecem o nome de sociedade.

Se o catolicismo tende a estabelecer a monarquia, a monarquia, por sua vez, tende a introduzir a religião católica, ou a dela aproximar-se. Assim, a Reforma é episcopal na Suíça, na Inglaterra e na Dinamarca, onde ela, efetivamente, conservou muitas práticas do culto católico, inclusive a confissão auricular. Pode-se observar nos Estados do rei da Prússia a secreta tendência que arrasta a monarquia em direção do catolicismo, na proteção declarada que esse príncipe concede aos seus súditos católicos, proteção que se deve, ao mesmo tempo,  ao seu cultivado espírito humanista e aos princípios constitucionais do Estado.19 Nos Estados monárquicos onde o calvinismo é dominante e muito propagado, há então uma oposição secreta entre a religião reformada e o governo monárquico; e essa oposição não deixaria de existir ainda que todos os calvinistas fossem súditos fiéis, apegados ao seu príncipe e à sua constituição; porque essa oposição deriva da natureza das coisas, ela deita sua raiz nos princípios opostos de ambas sociedades religiosa e política. “Se o rei quer destruir a monarquia”, dizia Strozzi a Coligny, “não há melhor meio que mudar de religião.” Essa oposição fomenta no Estado uma agitação intestina que deve durar até que a religião seja constituída como governo; porque, se o governo se desconstituisse como a religião, provaria que a desordem iria sempre crescendo e que a tirania, como na Inglaterra e na França, se elevaria infalivelmente sobre as ruínas da realeza.

Não há, absolutamente, Estado onde essa agitação, produzida pelo conflito de princípios opostos das sociedades política e religiosa, se tenha manifestado por sinais mais claros e efeitos mais semelhantes e mais funestos que na Inglaterra e na França. Seria um paralelo muito interessante um cotejo entre as revoluções desses dois Estados. Na Inglaterra houve duas revoluções: a que derrubou a religião sob Henrique VIII, Eduardo VI e Elizabeth, e aquela que, sob Carlos I, destituiu a realeza. Não há dúvida que na Inglaterra a revolução religiosa não teria sido imediatamente seguida pela revolução política, se a Inglaterra, abandonando a religião católica, se tivesse limitado a uma religião mista, que tivesse ainda algo do catolicismo pelos seus dogmas, e muito mais pela sua hierarquia e por seus ritos exteriores. Na França houve só uma revolução que derrubou de uma só vez a religião e a realeza; ela foi mais violenta, porque lhe foi necessária uma redobrada intensidade para operar esse duplo efeito. Ela teve conseqüências mais vastas sobre a tranqüilidade das outras sociedades, seja porque a França estava mais ligada ao sistema geral da Europa do que a Inglaterra à época das suas revoluções, seja porque a posição insular da Inglaterra não permite às potências vizinhas tomar parte nas perturbações que a agitam, seja, enfim, porque hoje a Europa é um só corpo, o que ela não era então. Malgrado isso, viram-se as mesmas cenas, e, sob outras máscaras, foi possível reconhecer os mesmos atores. O observador pôde descobrir um impressionante caráter de identidade na arte com a qual supuseram-se conspirações, para atribuí-las ao partido que se queria derrotar e a facilidade com a qual se cometeram crimes encomendados. O próprio Hume deixa transparecer, a propósito, uma opinião pouco favorável aos puritanos; e os acontecimentos de que fomos testemunhas só o cobriram de razão.

A Inglaterra é sempre teatro dessa agitação surda, produzida pela oposição secreta entre princípios presbiterianos ou puritanos e os princípios monárquicos, pelo acordo desses princípios religiosos com os elementos democráticos que entram na composição dessa sociedade singular, na qual o anglicanismo e a monarquia lutam contra o presbiterianismo e a república.20 Os wigs  e os torys designam antes seitas religiosas que facções políticas. A filosofia acreditava ou dizia que a religião não entrava hoje absolutamente no governo interior dos Estados, porque ela influi muito pouco a conduta dos governantes. O verdadeiro estadista sabe perfeitamente que a religião é o princípio oculto de todos os acontecimentos da sociedade porque ela é a alma da sociedade. Na Inglaterra, onde os puritanos são numerosos, verificam-se disposições inequívocas de uma reforma da representação parlamentar que seria um largo passo rumo à democracia e que seria, sem dúvida, o pretexto de muitas outras reivindicações, a ocasião de muitas outras reformas e talvez o primeiro pródromo de uma revolução. Os anglicanos defendem a constituição monárquica; os católicos, necessariamente partidários da monarquia, farão causa comum com eles; essa aliança política, à qual doravante nada poderá fazer obstáculo, determinaria, sem dúvida, o governo a revogar até os últimos traços das vigorosas leis sancionadas contra os católicos, se não for igualmente necessário conceder os mesmos favores aos puritanos, cujo fanatismo é objeto de temor.21

Talvez se objete que o país sob domínio inglês mais agitado é a Irlanda onde os católicos são mais numerosos. Esses movimentos, em seu interior, se devem à dominação um tanto deplorável que a Inglaterra, na qualidade de república, exerce sobre a Irlanda; porque se sabe que uma república não pode governar seus Estados-súditos senão despoticamente. Esses distúrbios têm seu princípio secreto na expropriação forçada de um grande número de famílias feita por Cromwell, causa necessária e indestrutível da agitação e inquietude , justo castigo de um governo opressor. Em uma sociedade política, uma só família despojada injustamente de sua propriedade é um elemento perpétuo de desordem, porque a família legitimamente proprietária é o elemento primordial da sociedade política constituída. Essas causas de distúrbio recebem na Irlanda uma nova força do caráter guerreiro da nação e dos vícios de sua constituição política; mas eles estão em contradição formal com a religião católica, que, por um lado, defende a reivindicação das honras da sociedade e, por outro, proíbe a revolta contra um senhor mesmo que seja díscolo. Não se diz que as seitas reformadas não preguem a mesma moral, mas elas não dão ao homem nenhum meio eficaz de a pôr em prática dominando suas paixões.

Seria desejável que a união religiosa dos anglicanos e católicos pudesse opor um contrapeso suficiente à secreta tendência do presbiterianismo para o governo popular, e que pelas revoluções, que tantas causas podem produzir na Inglaterra, cuja constituição será o princípio, bem longe de ser o remédio, o povo inglês pudesse chegar à constituição natural das sociedades sem passar pelos pântanos fétidos e sangrentos da democracia! Mas essa união, que a natureza e o tempo trarão, porque a natureza e o tempo trabalham sem interrupção para constituir tanto a sociedade religiosa como a sociedade política, essa união pode ser obra dos homens. Os puritanos, agudos em suas vistas, indiferentes quanto aos meios, têm, para torná-la impossível, embriagado o povo com suas declamações fogosas contra o papismo22; e a inflexibilidade necessária da religião católica, que os filósofos consideram intolerância não lhe permite nenhuma variação em seus dogmas e não sofre tantas mudanças em sua disciplina senão aqueles desenvolvimentos necessários que o tempo e a natureza das coisas, sem os homens ou apesar dos homens, produzem.

Os legisladores modernos, que perceberam essa oposição secreta entre certas religiões e certos governos, ou antes entre uma só religião dominante e as religiões rivais, creram remediá-la permitindo o livre exercício de todos os cultos. Agiram como os legisladores que, para fazer cessar as facções em um Estado, permitiriam o exercício de todos os governos. Eles não viram que a oposição era necessária entre a constituição necessária da sociedade religiosa e as instituições religiosas absurdas, imorais, não necessárias do homem: como ela o é entre a constituição necessária da sociedade política e as instituições políticas não necessárias ou absurdas do homem. Eles não viram que o indiferentismo do cidadão era uma conseqüência necessária do indiferentismo do governo, e que o ateísmo social devia produzir o ateísmo individual. Eles creram que a sociedade estava tranqüila quando estava, na verdade, morta, eles disseram que não havia mais agitação quando não havia mais atividade. Não é com cânticos e frases patéticas, com frases que se concluem com um ponto, pois que não se podem terminar de outro modo; não é com interjeições, discursos, exclamações, invocações sentimentais ao Ser Supremo, ao Ser dos seres, ao grande Ser, que se produz o amor de Deus na sociedade: como não é com hábitos negros com golas bem engomadas, perucas bem polvilhadas, com passo grave e voz melosa que se conserva o amor de Deus. É necessário um sacrifício, é necessário que haja vítima e sacerdotes. Não é gritando: “Senhor, Senhor, diz-nos o conservador da sociedade religiosa, que se é membro da minha sociedade e súdito do meu reino, mas fazendo a vontade de meu Pai.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


1 COULANGES, Fustel. A cidade antiga.  Martin Clare, São Paulo, 2002, p. 138, 330 e 343.

2 Apud EULOGIO PALACIOS, Leopoldo. Estudos sobre De Bonald. Revista Verbo, Madri, 1987, maio-junho, nº 255-56.

3 Convém assinalar que o argumento da linguagem como prova da sociabilidade natural do homem foi amplamente desenvolvido também por Joseph de Maistre em sua obra Essai sur le principe generateur des constitutions politiques e por São Tomás de Aquino em seu Comentário à política de Aristóteles, como recorda Alexandre Correa em  sua tese de doutorado A política de Joseph de Maistre. O autor oferece uma boa exposição da teoria. Cf. Ensaios políticos e filosóficos de Alexandre Correa, Convívio,  São Paulo, 1984, p. 258-259.

4 DONOSO CORTÉS, Juan. Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo. Biblioteca de Autores Cristianos, Madri, 1970, p.499.

5 O. c. p.501.

6 O. c. p. 592-593.

7 O. c. p.609-610.

8 O. c. p.613.

9 O. c. p. 638.

10 A propósito, sublinhe-se o que diz João Paulo II em sua encíclica De Ecclesia Eucaristia. Diz o papa que a Sagrada Eucaristia edifica a Igreja.

11 O autor refere-se à doutrina dos sacramentos da Igreja segundo a qual os sacramentos do batismo, da confirmação e da ordem imprimem na alma de quem os recebe um caráter, isto é, um sinal indelével, que o consagra para sempre como cristão, soldado de Cristo e ministro sagrado.

12 No capítulo III do livro I da mesma obra Bonald estabelece a distinção entre sociedades constituídas e não constituídas, com base na sua definição de sociedade política como uma reunião de seres semelhantes cujo fim é a sua conservação mútua. Estes indivíduos vivem conforme certas maneiras de conduta que se chamam relações. Estas relações devem ser necessárias e derivadas da natureza das coisas. Estas relações necessárias constituem leis. Se, numa sociedade política, as relações entre os indivíduos que a compõem fossem todas necessárias, todas as leis seriam perfeitas; essa sociedade seria perfeitamente constituída, pois que atingiria perfeitamente seu fim, que é conservação dos seres sociais. Esse estado de perfeição não é, entretanto, o quinhão da sociedade política, o qual é o mesmo que toca ao homem; de maneira que à               sociedade mais constituída falta alguma lei ou relação necessária, como o homem mais justo peca contra alguma lei ou relação necessária da sociedade religiosa. Se numa sociedade política os seres vivem entre si conforme relações não necessárias, ou contrárias à sua natureza, as leis, longe de ser fixas e fundamentais, serão variáveis e defeituosas; essa sociedade será imperfeita ou não constituída, pois que atingirá só imperfeitamente seu fim, a conservação dos indivíduos; essa sociedade produzirá os seres, mas não os conservará.

13 Assegura-se que o autor dessa obra é um bispo sufragâneo. (Eybel, que a compôs, era professor de direito canônico em Viena, sob o reinado de José II.) Nota do editor.

14 Ainda que o conhecimento da língua latina seja mais difuso  talvez na Alemanha que na França, não há na Alemanha o costume de os leigos acompanharem os ofícios litúrgicos, e não se acham nas livrarias livros em alemão ou em latim semelhantes àqueles conhecidos na França como paroissiens (missal dos fiéis, nota do tradutor). Em geral, os leigos lêem  as preces em língua vulgar. Uma dessas obras recentes e muito difundidas na Alemanha intitula-se Deus é o amor mais puro. É uma coletânea de preces sentimentais, ou seja, numa efusão de puro amor, o autor ataca o dogma das penas eternas e o preceito da mortificação cristã. Ele faz Deus tão bom que lhe tira toda a justiça; há ladainhas do gênero mais epicurista e bizarro nas quais agradece a Deus haver-lhe dado órgãos para o prazer, o sentido agradável de tocar, a voluptuosidade  do gosto, o prazer da vida, a doçura do repouso, o bem estar etc, etc, e creio que o faz também conselheiro áulico.

Li uma obra manuscrita, intitulada Sobre a situação da religião na Alemanha, por um eclesiástico de grande talento e muito instruído, morto há pouco, superior de uma congregação na Alemanha; nela se encontram pormenores curiosos e preocupantes.

Nota do tradutor: estas observações de Bonald têm grande valor e fundamento. Pode-se dizer que foram plenamente confirmadas por ocasião do Concílio Vaticano II, quando o episcopado alemão logrou desviar os rumos da Igreja na direção do ecumenismo e da abertura ao mundo, recusando os esquemas prévios redigidos pela comissão preparatória do concílio. Essa comissão era composta por teólogos romanos ligados à tradição da Igreja e empenhados no combate aos erros modernistas condenados por São Pio X (Pascendi) e por Pio XII (Humani generis).

15Nota do tradutor: Bonald parece prever a unificação da Alemanha realizada por Bismarck em torno da Prússia a partir de 1866 e consumada em 1871 com o nascimento do Império Alemão. Com base na sua analogia entre sociedade religiosa e sociedade política, Bonald pretende que o trono alemão só se consolidaria aliado a uma sociedade religiosa plenamente constituída, tal como a Igreja Romana. A propósito, recorde-se que o Czar Alexandre I da Rússia, 1777-1825, copartícipe da Santa Aliança em 1815 e que se converteu secretamente ao catolicismo, defendia a mesma tese: os tronos só se consolidariam mediante a unidade religiosa sob a autoridade suprema do Romano Pontífice.

16 Esse projeto foi engavetado na Assembléia dos calvinistas, realizada em Privas em Vivarais em 1621. Reapareceu na Revolução, sob o nome de federalismo. Muitos ministros reformados, membros das diferentes assembléias que oprimiam a França, e Rabaut-Saint-Etienne, entre outros, foram seus zelosos promotores. A divisão da França em departamentos devia conduzir à sua divisão em repúblicas federativas, cada uma das quais deveria ser composta de um número igual de departamentos. Mas a ambição atroz e firme de Robespierre destruiu esses sonhos políticos de alguns espíritos pedantes. Não creio que esse projeto tenha sido abandonado; ele representa a quimera do partido protestante, e talvez o desejo secreto dos inimigos da França. (cf. Hénault, 1621).

17 Nota do tradutor: Reino da Holanda foi criado pelo Congresso de Viena em 1814-15, que tentou restabelecer a ordem na Europa depois das guerras napoleônicas. Esse concerto político, também conhecido como a Santa Aliança, teve como figura de proa  o príncipe Metternich. No século XVIII, a Holanda, parte dos chamados Países-Baixos, foi governada por um regime militar hereditário.

18 Uma observação importante, e que prova que a nobreza é essencialmente força conservadora da sociedade política, é que em geral a parcela da nobreza reformada que existia na França mostrou o mesmo zelo que a nobreza católica na defesa da constituição monárquica e abraçou com a mesma coragem as privações e perigos ligados à mais bela das causas. Pode-se dizer que a Revolução Francesa foi uma armadilha montada para a Reforma, a que se deixou prender. Também a Reforma sobreviverá um pouco à Revolução Francesa; e não há nessa facção nenhum homem esclarecido e virtuoso que não haja percebido o perigo com que ameaça a sociedade uma seita que tira a presença de Deus à sociedade dos homens exteriores, e que, não fundando a crença de sua existência sobre o sentimento ou amor, pois que não lhe rende o culto, reduz a crença a uma opinião, a um sistema, como a física reduz a presença  de Deus a um turbilhão e à matéria sutil. Não se deve crer que os calvinistas tenham um culto porque se reúnem para cantar ou para ouvir um discurso. Isto não passa de um concerto espiritual, de um exercício de oratória, mas não é um culto. É, bem ou mal, apenas música e eloqüência, mas não é religião, pois os sons não são atos. Nota do tradutor: a crítica de Bonald à teodicéia calvinista é confusa. O fundamento da crença na existência de Deus não é o sentimento ou o amor, como pretende o pensador tradicionalista, mas um dado da razão, que, a partir da observação da contingência das coisas criadas e da participação do ser, remonta à distinção entre ser e essência e à conclusão da existência do Ser Absoluto e necessário, a que se chama Deus. Com efeito, diz Santo Tomás de Aquino: “A existência de Deus e outras noções semelhantes que, pela razão natural, podem ser conhecidas de Deus, não artigos de fé, como diz a Escritura, mas preâmbulos a eles; pois como a fé pressupõe o conhecimento natural, a graça pressupõe a natureza, e a perfeição o perfectível. Nada, entretanto, impede ser aquilo, que em si é demonstrável e cognoscível aceito como crível por alguém que não compreende a demonstração.” (Cf. S. Th. Iª. q. 2, a. 2) Paradoxalmente, a tese bonaldiana que funda a crença em Deus no sentimento poderia ser subscrita por um protestante, visto que um dos princípios fundamentais da Reforma é a afirmação da total corrupção da natureza humana, do que se segue o corolário do obscurecimento da razão que a impede de conhecer a Deus naturalmente.

 

19 Se fosse necessário crer na asserção contida na obra de um homem famoso por seus infortúnios, morto na flor da idade pela mão do partido a que se havia aliado, e que ele começava a conhecer e a desmascarar (Mirabeau), o catolicismo teria, nos países da Reforma, partidários que, em razão de suas posições e funções, não podem declarar-se, e o autor chega a nomear alguns deles.

20 Nota do tradutor: vale a pena registrar que a tese weberiana que estabelece uma correlação entre as idéias religiosas como forças efetivas que atuaram ao longo da história e o desenvolvimento do espírito do capitalismo aponta justamente a influência das seitas presbiterianas e puritanas como fomentadoras de uma nova ética. Com efeito, quem lê as obras de Weber e Bonald, em várias passagens, não pode deixar de observar a semelhança de análise.

21 Esta observação já foi feita por Mallet du Pau, no Mercúrio de França.

22 Ignoro se se conserva ainda em Londres o uso, indigno de um povo civilizado, de queimar todos os anos publicamente a imagem do papa. É um meio dos puritanos.