Eleições e aborto

Postado em 16-10-2010

(irracionalidade, mentira e traição)

Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa

As eleições deste ano nos oferecem um espetáculo particularmente deplorável: o aborto reduzido pela mídia a uma questiúncula religiosa das várias seitas que disputam o mercado da fé. Mas uma questiúncula a ser levada a sério pelos candidatos se não quiserem ter prejuízo eleitoral.

É uma prova cabal da tremenda decadência intelectual e moral da nossa sociedade.

Embora, tradicionalmente, moral e religião tenham sido sempre coisas ligadas entre si, são realidades distintas. E a questão do aborto, antes de ser uma questão teológica, é um problema filosófico e ético.

Por que se reduz a questão do aborto a uma questão de fé? Simplesmente porque não se reconhece mais o feto como um ser vivo dotado de uma alma. Porque não se admite mais o conceito metafísico da alma, como a forma do ser vivo. Porque não se conhece mais a explicação filosófica do conceito de vida. A vida é considerada um fenômeno resultante da própria matéria inerte. E, evidentemente, porque já não se concebe mais a existência de Deus como um dado da razão.

Essa terrível banalização da vida decorre da irracionalidade da nossa cultura. A razão humana, a faculdade mais nobre do homem, tão idolatrada e tão corrompida pelo iluminismo, está destronada. Aquilo que o discurso da razão pode aferir e demonstrar por meio do silogismo já não tem foros de verdade se não puder ser verificado empiricamente.

É claro que os sentidos jamais poderão chegar  por si mesmos à conclusão existência da alma. Mas a inteligência humana é capaz de concluir que necessariamente há algo, a que se denomina alma, responsável pela coordenação de todas as atividades de um ser vivo, pelo desenvolvimento de um organismo, sem o qual ele se desintegraria até chegar à morte.

Já na antiguidade Platão tinha chegado à descoberta de uma “segunda navegação” para explicar o universo. O conhecimento sensível das coisas materiais não explica toda a realidade. A “primeira navegação” não explica porque Sócrates está na prisão. As causas materiais não explicam completamente a realidade. Sócrates não está no cárcere porque tem pernas e para lá se dirigiu. A causa de sua prisão é de ordem superior, é de ordem moral ou espiritual. Diz Platão no Fedon: “Tive medo de que minha alma se tornasse completamente cega olhando as coisas com os olhos e buscando captá-las com cada um dos sentidos. Por isso, achei necessário refugiar-me nos raciocínios para neles considerar a veracidade das coisas.”

Aqui não é o lugar para falar da teoria do conhecimento de Platão (aliás, falsa). Apenas o cito para estabelecer um contraste com o absurdo do cientificismo.

Se o homem moderno  usasse corretamente a sua razão, se não a tivesse rebaixado a mero instrumento de investigação do mundo material para satisfazer sua cobiça e concupiscência, mas a utilizasse como a nobre faculdade apta a conhecer as causas primeiras, o aborto não seria discutido de uma forma tão vulgar. A cultura da nossa sociedade estaria informada pelos princípios metafísicos e a vida humana salvaguardada da brutalidade dessas bestas-feras do cientificismo que acham que o feto não passa de um pedaço de carne que se movimenta devido às reações químicas da matéria.

Destruída a metafísica, a religião igualmente degenera. Passa a ser uma religiosidade inconsistente, contraditória, esfacelada em várias seitas fanáticas, que têm opiniões diferentes sobre a questão do aborto. De modo que os políticos, os parlamentos, se julgam no direito de legislar sobre o aborto e disciplinar sua prática, quando o certo é que o tema deveria estar acima de qualquer discussão.

Dessa irracionalidade em torno de um tema de tanta magnitude só pode decorrer a mentira e a demagogia. Torna-se fácil para os políticos negociarem com os religiosos um problema que ainda toca a consciência das pessoas simples que não perderam  totalmente a noção da lei natural e da sacralidade da vida.

Como se vê, não é de surpreender que pessoas de formação marxista e atéia sejam a favor do aborto. São coerentes com seus princípios falsos. O contrário é que seria surpreendente. Jacques Mitterrand, grão-mestre do Grande Oriente da França, disse que o aborto tinha de ser legalizado no mundo inteiro, para que o homem se convencesse de que realmente é livre, de que a vida não passa de um capricho a ser desfrutado a seu bel prazer.

Será que os nossos pastores não sabem disso? Serão idiotas úteis apoiando o PT? Não saberão que, hoje, muitos dos comunistas, após a queda do muro de Berlim, aderiram a uma vaga espiritualidade panteísta mas não crêem em Deus criador do céu e da terra. Não saberão que  esses ditos ex-comunistas vivem uma espiritualidade evolucionista à Teilhard de Chardin, mas não admitem uma distinção entre o espírito e a matéria, de maneira que muito provavelmente, assim que possam, passarão novamente dessa espiritualidade panteísta ao terror do totalitarismo marxista? Tudo isso foi muito bem explicado por Donoso Cortés em sua obra A civilização católica e os erros modernos.

Se Deus não existe, tudo está permitido, disse Dostoievski. O aborto está sendo legalizado, porque vivemos num mundo ateu. E muitos dos crentes são hipócritas fingindo ter fé para não espantar seus vizinhos ou não perder votos.

Por isso, a minha suspeita de traição é grande. Os bispos correligionários da comendadora Dilma sabem, sim, que ela e o PT são abortistas.

Vivemos, pois, no mundo da irracionalidade, da mentira e da traição.

Anápolis, 16 de outubro de 2010.

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