Futuríveis acerca dos Santos Inocentes e dos nascituros abortados

Postado em 28-12-2017

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

 

Sub throno Dei omnes sancti clamant: Vindica sanguinem nostrum, Deus noster.

 

Em sua meditação sobre a festa dos Santos Inocentes, Santo Afonso Maria de Ligório desenvolve uma reflexão ao molde dos futuríveis levantando a instigante questão por que Deus permitiu que às alegrias do Santo Natal se seguisse a trágica matança dos Santos Inocentes nos arredores de Belém, por ordem de Herodes.

É claro que Deus queria condicionalmente, não eficazmente, a preservação daquelas criancinhas inocentes, mas permitiu o mal oposto, a matança, porque daí poderia tirar um bem maior. Por exemplo, Santo Afonso diz que muitas daquelas criancinhas massacradas por ordem de Herodes, se não tivessem sido mortas, poderiam mais tarde estar entre os judeus criminosos que pediram a condenação do Salvador. E Santo Tomás de Aquino diz que, embora os Santos Inocentes não tivessem um uso milagroso do livre arbítrio para morrer livremente por Cristo (como alguns disseram), mereceram entretanto a graça e a glória do martírio: “Pois a efusão do sangue por causa de Cristo supriu o batismo” (Cf. II IIªe q. 124. a. 1 ad. 1).

Hoje, festa dos Santos Inocentes, em várias partes do mundo, as valorosas associações pró-vida promovem   grandes manifestações públicas, procurando sensibilizar a consciência moral da população para a gravidade do nefando crime do aborto.

Sem dúvida, é uma iniciativa louvável, mas encerra o perigo de uma confusão, que deve ser afasto com toda energia. Talvez se possa comparar a hecatombe  do aborto em nossos dias, legalizada pelos parlamentos das democracias seculares modernas e incentivadas pelas diversas organizações feministas e outros órgãos interessados no controle demográfico das nações, com a matança ordenada por Herodes.

Contudo, não se podem equiparar os nascituros abortados com os Santos Inocentes. Estes, como se viu, foram mortos por ódio a Cristo Rei. Herodes (e o diabo em sua alma), explica Santo Tomás, temiam chegada de um rei que os destronaria, fosse de um trono temporal, fosse de um trono no coração dos homens. Ao passo que os nascituros abortados nas sociedades modernas em estado de putrefação pelo vírus do materialismo não são mortos por ódio a Cristo Rei, porque, infelizmente, a imensa maioria dos católicos modernos nem sequer cogita no Reinado Social de Cristo e, pior, abraçou um naturalismo, um pelagianismo, que os leva a pensar que todos os nascituros abortados estão na glória do céu e não no limbo dos párvulos. Porque acham que o homem, pelas suas próprias forças, é capaz de Deus, esquecidos de que Deus habita uma luz inacessível (I Tim. 6, 16), esquecidos também da distinção entre a ordem natural e a ordem da graça, como se a alma racional fosse por si mesma uma participação da natureza divina.

Com efeito, hoje em dia, a doutrina católica tradicional sobre o limbo está esquecida senão negada. Quem se lembra ainda do que ensinou, por exemplo, o papa Inocêncio III: “A pena do pecado original é a carência da visão de Deus; a pena do pecado atual é o tormento do inferno eterno” (Dz. 410). Ou quem ainda leva a sério o ensinamento do Catecismo de São Pio X na questão nº 100 : “As crianças mortas sem o batismo vão para o limbo, onde não gozam de Deus como os bem-aventurados, mas não sofrem.”

De modo que, no plano dos futuríveis e parodiando Santo Afonso Maria de Ligório, me pergunto por que hoje Deus permite que tantos nascituros sejam cruelmente abortados no ventre materno, sob a aprovação dos parlamentos modernos, sob o aplauso de tantas organizações feministas, sob o incentivo da ONU (que Paulo VI saudou como a última esperança de paz para a humanidade), ouvindo-se apenas um lamento e um protesto insuficientes de uma parcela de católicos que ainda guardam a consciência dos princípios da lei natural? Por que?

Sinceramente ocorre-me uma resposta que me causa calafrio. É para  permitir que esses nascituros destinados ao limbo sejam poupados do fogo do inferno. Com efeito, se chegassem à idade adulta e se tornassem uns hereges modernistas e liberais, que vivem a exaltar a democracia, a cultuar a ideologia dos direitos humanos  (agora apadrinhada por um D. Helder Câmara), o falso ecumenismo, o diálogo inter-religioso, a falsa misericórdia, a autonomia das realidades temporais, imersos na religião naturalista do Vaticano II, seriam condenados ao fogo do inferno. Sim, acho que é por isso que Deus permite a tragédia do aborto em nossos dias.

 

Anápolis, 28 de dezembro de 2017.

Festa dos Santos Inocentes