Infalibilidade monolítica e divergências entre antimodernistas

Postado em 31-01-2013

Arnaldo Xavier da Silveira

1. O mundo católico deve muito ao povo simples que conserva a fé verdadeira, bem como aos escritores e homens de ação antimodernistas que nos últimos decênios têm desenvolvido amplamente as doutrinas e ações em defesa do depósito sagrado da Tradição. Em variados campos da teologia, especialmente na eclesiologia e na liturgia, o aprofundamento dos princípios tradicionais tem sido notável; e, no terreno prático da vida católica, igualmente, os antimodernistas têm batalhado com denodo heroico que no futuro a História da Igreja registrará com destaque.

 

Divergências nos meios antimodernistas

2. Não são poucos, entretanto, os desacordos que têm surgido, na teoria como na prática, entre os antimodernistas. Alguns aceitam incondicionalmente o Concílio Vaticano II, outros não. Alguns se denominam tradicionalistas, outros rejeitam essa qualificação [1]. Alguns dizem que o Papa Honório foi herege, outros o negam, e análogas divergências existem em relação a numerosos fatos da história da Igreja. Muitos adotam algumas teorias doutrinárias modernistas, a ponto de se afastarem da ortodoxia, embora continuem a dizer-se tradicionalistas. E por aí seguem as diferenças nos modos de ver, chegando com frequência a graves aversões pessoais.

3. No atual momento histórico, não parece possível conciliar posicionamentos tão diversos e mesmo opostos entre si. É de esperar que, com o tempo, com o amadurecimento das ideias, com o influxo da graça que não pode abandonar a Igreja, as orientações dos fiéis verdadeiros caminhem para convicções convergentes e sólidas, de modo que, submissos ao Magistério como manda a lei da Igreja, os antimodernistas acabem por harmonizar melhor suas posições, respeitado sempre o velho princípio: in necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas.

 

Uma infalibilidade monolítica?

4. Existe um ponto doutrinário fundamental ao qual não se vê que os doutrinadores mais eminentes do antimodernismo, bem como seus seguidores, deem a importância devida. Trata-se do princípio de que pode haver erros e heresias em documentos do Magistério pontifício e conciliar não garantidos pela infalibilidade [2].  Com efeito, esse princípio está em geral ausente dos arrazoados antimodernistas, que nos últimos decênios têm alimentado e sustentado o orbe católico com a boa doutrina.

5. Negar de modo absoluto a possibilidade de erro ou mesmo de heresia em documento pontifício ou conciliar não garantido pela infalibilidade, é atribuir a esta um caráter monolítico, que não corresponde ao que Nosso Senhor quis e fez ao instituí-la. As prefiguras neotestamentárias são claras: a barca de Pedro quase soçobrou, só sendo salva por um milagre; Pedro renegou a Jesus Cristo, e não esteve ao pé da Cruz. Para o episódio da resistência de São Paulo a São Pedro na questão dos ritos judaicos, busquem-se as explicações mais subtis que possam ser excogitadas, mas é incontroverso que São Pedro era “digno de repreensão” (“reprehensibilis erat”) [3].

 

Dos ensinamentos não infalíveis

6. Na história da infalibilidade pontifícia prevalece até nossos dias, infelizmente, mesmo em autores tradicionais dos mais consagrados, a divisão simplista e dicotômica, segundo a qual o Papa só pode falar, em matéria doutrinária: (1) como doutor privado, ou (2) numa definição infalível do Magistério extraordinário. Para tais autores, “non datur tertium”, isto é, não há outro modo pelo qual o Papa possa falar, não há como fugir a essas duas alternativas. Nessa linha, fica na sombra a terceira possibilidade, que é a de um pronunciamento magisterial público mas não infalível. Com efeito, foi apenas a partir do século XIX que se explicitou melhor e se cristalizou a noção do Magistério ordinário não infalível, e que os Papas e os grandes doutores aprofundaram a doutrina preciosa e riquíssima segundo a qual o Magistério Ordinário pode gozar da infalibilidade, quando universal no tempo e no espaço, preenchendo ainda as demais condições da infalibilidade.

7. Grandes autores da neoescolástica, preocupados em combater o liberalismo, o modernismo e heresias afins, ressaltaram sempre a autoridade doutrinária papal, parecendo insinuar às vezes uma infalibilidade monolítica, que subsistiria de modo absoluto em todas as circunstâncias, como se não dependesse de condições, nem mesmo das que foram expressamente declaradas no Concílio Vaticano I. Na neoescolástica encontra-se entretanto, com frequência, maior precisão nesses conceitos, tornando-se assim claro que, ocasionalmente, ou em períodos de crise, ou quiçá em outras circunstâncias extraordinárias, são possíveis pronunciamentos papais que não exprimam a verdade. E, nesta matéria, o que vale para o Papa vale também, mutatis mutandis, para o Concílio [4].

8. Há quem diga que, embora nem sempre garantido pela infalibilidade, um pronunciamento doutrinário papal ou conciliar não pode conter erro. Essa posição se enuncia melhor da seguinte forma: dizer que um ensinamento não é infalível, não significa que nele possa haver erro, significa apenas que tal ensinamento não está formalmente garantido pelo carisma da infalibilidade; para esse ensinamento, no entanto, mesmo não assegurado pela infalibilidade, permanece a assistência do Espírito Santo, e portanto vale o princípio de que não pode conter erro. ― A boa doutrina, contudo, é outra. Essa assistência prometida à Igreja pode ser absoluta, assegurando a verdade do ensinamento, e o é quando estão preenchidas as condições da infalibilidade. Quando, entretanto, não estão preenchidas tais condições, é possível a recusa da graça pelo homem. E aplica-se então a regra enunciada por Santo Tomás: “quod potest esse et non esse, quandoque non est (“o que pode ser e não ser, às vezes não é”). Em sã lógica, não se vê como acolher a noção inflacionada e monolítica da infalibilidade, que levaria ao absurdo de um “falível infalível[5].

 

Distinguindo o herético do  “heretizante”

9. Se pode haver erro ou mesmo heresia em documentos papais e conciliares, a fortiori pode haver neles proposições merecedoras de censuras menos graves. Aplicado esse princípio ao Concílio Vaticano II, vê-se que o problema  não é só saber se nele haveria heresias formais, mas é também verificar se, em confronto com a Tradição, há nos seus documentos finais proposições favorecedoras do erro ou da heresia, com sabor de erro ou de heresia, ofensivas aos ouvidos pios, escandalosas, ou merecedoras de outras censuras teológicas. Numa palavra, não se trata apenas de saber se no Concilio há erros ou heresias, mas também de verificar se nele há proposições heretizantes [6].

10. Manifestamente, uma proposição conciliar errônea, herética ou heretizante não se incorporaria ao patrimônio das verdades de fé, por não estarem aí preenchidas as condições da infalibilidade do Magistério ordinário. Tal proposição seria uma declaração falha do Concílio, o qual não goza de uma infalibilidade monolítica. Ademais, caso ocorram várias proposições heretizantes, articuladas entre si num mesmo sistema, este, igualmente, não se incorporaria à doutrina da Igreja.

 

Em conclusão

11. Entendo que são apodíticos os argumentos escriturísticos e da Tradição que fundamentam a doutrina da possibilidade de erro e heresia em documento papal e conciliar não infalível. Por outro lado, a noção da infalibilidade monolítica inspira a maior parte, tanto dos sedevacantistas, quanto dos neoconciliares que atribuem força dogmática ao Vaticano II; e está na raiz de dúvidas, perplexidades e angústias que atormentam numerosos espíritos fiéis. Um amplo esclarecimento dessa matéria seria um fator de convergência, apto a eliminar mal-entendidos e a reduzir diferenças de visão que há, na doutrina e na prática, entre pensadores e movimentos antimodernistas.

 

________________________

[1]  Para indicar o gênero daqueles que abraçam a fé verdadeira, seguindo a Tradição católica, emprego de preferência o termo “antimodernistas”, que parece mais abarcativo do que os demais que são correntes, como ”tradicionalistas” e “antiprogressistas”.

[2]  Ver “La Nouvelle Messe de Paul VI: Qu’en Penser?”, que publiquei em 1975, Diffusion de la Pensée Française, Chiré-en-Montreuil, parte II, caps. IX et X, e trabalhos ali citados.

[3]  Gal. 2, 11.

[4]   “(…) o problema do critério da infalibilidade não se põe de maneira essencialmente diferente no caso do papa e no do concílio ecumênico. Um e outro, com efeito, podem ter a intenção de envolver sua autoridade de maneira apenas parcial, ou de maneira irrevogável. Somente esta última vontade é critério certo de infalibilidade” (Charles Journet, “L’Eglise du Verbe Incarné”, Desclée de Brouwer, 3ª ed. aumentada, 1962, t. I, p. 578, nº 1)].

[5]  A expressão é de Jean Madiran, in Le faillible infaillible : l’analyse de Jean Madiran, La Riposte Catholique, 27.11.2012.

[6]  Pode-se perguntar se o que aqui escrevo não se chocaria com o apelo de Bento XVI, em discurso à Cúria Romana de 22-12-2005, para que o Concílio seja interpretado segundo uma “hermenêutica da reforma na continuidade”. ― Na mesma ocasião, o Papa declarou que a aceitação do Vaticano II, “em grande parte da Igreja”, isto é, entre os antimodernistas, depende de uma “justa chave de leitura e de aplicação”. Em espírito filial e de religiosa submissão ao Magistério vivo em toda a medida que a doutrina católica a impõe, digo que as dúvidas e polêmicas sobre o Vaticano II, que há décadas enchem de perplexidade os católicos fieis, certamente se reduzirão, ou talvez mesmo desaparecerão, se Sua Santidade declarar, de modo mais específico do que até agora o fez, e absolutamente preciso, qual é essa “chave” da interpretação do Concílio como “reforma na continuidade”. Por sua natureza, essa declaração não pode deixar de esclarecer se é teologicamente possível que haja proposições errôneas, heréticas ou heretizantes em ensinamentos conciliares de caráter doutrinário que não preencham os requisitos da infalibilidade.