Joaquim Nabuco revisitado

Postado em 02-05-2013

Quando completei 21 anos, meu pai me presenteou com uma bela edição da Minha Formação, obra de Joaquim Nabuco, o grande escritor abolicionista, a qual me encantou sob vários aspectos e aumentou  o meu interesse pelas coisas do Brasil, principalmente por sua história.

Hoje, passados trinta anos da leitura de Minha Formação, releio algumas páginas de Nabuco e fico admirado do valor moral de sua obra e lamento que tão poucos jovens brasileiros a conheçam. A Minha Formação e O Abolicionista, se no Brasil houvesse realmente  um programa de educação pública,  seriam leituras obrigatórias em todas as escolas do País.

Embora influenciado pelas ideias maçônicas do seu tempo, percebe-se, através de suas páginas de um estilo tão elegante e ameno, que Nabuco foi um homem de rara  generosidade. Percebe-se também a sinceridade e humildade com que expõe suas ideias e seus erros de juventude. Deploravelmente, tinha ficado contra D. Vital e D. Macedo Costa, na chamada Questão Religiosa que abalou a monarquia. Fora adepto das idéias do Regente Feijó em defesa de uma igreja nacional independente de Roma. Entretanto, apesar desses graves erros, parece-me lícito ver certas analogias, guardadas as devidas proporções, entre A minha Formação e as Confissões de Santo Agostinho, seja pela beleza literária seja pela nobreza de alma de ambos autores. Por exemplo, Nabuco diz que na idade adulta reconheceu a importância das palavras proferidas por seu pai no Senado em 1860: “Há duas necessidades, a meu ver, muito importantes na situação moral do nosso país: – a difusão do princípio religioso no interesse da família e da sociedade…” Com efeito, isto me faz pensar em Santo Agostinho e sua mãe Santa Mônica.

 Em Minha Formação diz, com muito humor, que, além dos autores liberais, lia também Donoso Cortez e Joseph de Maistre e que escreveu um pequeno ensaio, com a infalibilidade dos dezessete anos, sobre a infalibilidade do Papa! Diz que não tinha ideia alguma, porque tinha todas. E conta que, quando entrou para a Academia, levava sua fé católica virgem: “sempre me recordarei do espanto, do desprezo, da comoção com que ouvi pela primeira vez tratar a Virgem Maria em tom libertino; em pouco tempo, porém, não me restava daquela imagem senão o pó dourado da saudade…Ao catolicismo só vinte  e tantos anos mais tarde me será dado voltar…”

Joaquim Nabuco suscitou-me vivo interesse sobretudo no campo do estudo das instituições políticas e sociais. Sua crítica ao republicanismo francês, cujos vícios tão bem dissecou (a demagogia, o fanatismo, a intolerância e o igualitarismo) e sua análise serena da monarquia parlamentar britânica mostraram-me que desastroso erro foi o golpe republicano de 15 de novembro de 1889. Nabuco faz ver também como a monarquia parlamentar é melhor que o sistema republicano norte-americano: “Comparados os dois governos, o norte-americano ficou-me parecendo um relógio que marca as horas da opinião, o inglês, um relógio que marca até os segundos.” Deve-se dizer, porém, que a sua recusa da adoção da república pelo Brasil não se baseava numa simples comparação de formas de governos, mas em um argumento muito mais sólido, próprio da prudência política de um verdadeiro estadista: “Desde que não tínhamos no Brasil os elementos históricos, que a liberdade inglesa supõe, a não querer eu cometer o maior erro que se pode cometer em política – o de copiar de sociedades diferentes instituições que cresceram – eu não podia repelir a República no Brasil somente por admirar a Monarquia inglesa de preferência à Constituição americana. Era preciso alguma coisa a mais, no que respeita à forma de governo, para eu não me deixar arrastar.” E a razão é muito simples: a grande vantagem de a suprema magistratura do país ficar fora de competição.

Hoje, com maior maturidade, diante da crise moral do mundo contemporâneo,  vejo que, infelizmente, Nabuco não compreendou a malícia do sistema democrático moderno. Pelo contrário, ele saudou em Leão XIII, por quem foi recebido em longa audiência privada, a aliança da Igreja com a democracia. Talvez se possa  dizer que Nabuco foi entre nós uma espécie de representante do modernismo católico. Contudo, não é, absolutamente, um autor a ser rejeitado por este senão. É preciso vê-lo e estudá-lo em seu contexto.

A grandeza moral de Nabuco revela-se em seus escritos referentes à campanha abolicionista. Confessa que sentiu uma atração pelos ambientes mais refinados da alta sociedade européia que chegou a frequentar. Mas viu a frivolidade de todas essas glórias mundanas e preferiu ser o defensor dos escravos: “Não posso negar que sofri o magnetismo da realeza, da aristocracia, da fortuna, da beleza, como senti o da inteligência e o da glória; felizmente, porém, nunca os senti sem a reação correspondente; não os senti mesmo perdendo de todo a consciência de alguma coisa superior, o sofrimento humano, e foi graças a isso que não fiz mais do que passar pela sociedade que me fascinava e troquei a vida diplomática pela advocacia dos escravos.”

Com efeito, o que é admirável e edificante em Joaquim Nabuco é o seu profundo sentimento de justiça. Isto fica patente tanto em Minha Formação (sobretudo as suas recordações de Massangana, a propriedade rual de sua madrinha) quanto em O Abolicionismo, em suas considerações sobre as diversas leis que marcaram o longo processo de abolição da escravatura no Brasil. Hoje, releio com emoção essas linhas de Nabuco que tanto me impressionaram aos 21 anos: “quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida…Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava.” E descrevendo o cemitério dos escravos em Massangana: “Eram essas as ideias que me vinham entre aqueles túmulos, para mim, todos eles sagrados, e então ali mesmo, aos vinte anos, formei a resolução de votar a minha vida, se assim me fosse dado, ao serviço da raça generosa entre todas que a desigualdade da sua condição enternecia em vez de azedar e que por sua doçura no sofrimento emprestava até mesmo à oprressão de que era vítima um reflexo de bondade…”

Em O Abolicionismo são notáveis as reflexões de Nabuco sobre a presença da raça negra no Brasil, bem como sobre o problema da escravatura e a Guerra do Paraguai. Nabuco observa que, apesar de tantos anos de opressão de que era vítima, a raça negra estava integrada no Brasil: “A raça negra não é tampouco, para nós, uma raça inferior, alheia à comunhão ou isolada desta e cujo bem-estar nos afete como o de qualquer tribo indígena maltratada pelos invasores europeus. Para nós, a raça negra é um elemento de considerável importância nacional, estreitamente ligada por infinitas relações orgânicas à nossa constituição, parte integrante do povo brasileiro. (…) Por esses sacrifícios sem número, por esses sofrimentos, cuja terrível concatenação com o progresso lento do país faz da história do Brasil um dos mais tristes episódios  do povoamento da América, a raça negra fundou, para outros, uma pátria que ela pode, com muito mais direito, chamar sua. Suprima-se mentalmente essa raça e o seu trabalho, e o Brasil não será, na sua maior parte, senão um território deserto, quando muito um segundo Paraguai, guarani e jesuítico.”

A propósito dessas considerações de Nabuco, creio que se pode replicar que a recíproca também é verdadeira: houvesse sido supressa a raça branca, o Brasil se teria tornado um Haiti. É preciso distinguir nas referidas palavras de Nabuco o ardor da retórica abolicionista e o essencial da sua arguta observação, isto é, a feliz integração da raça negra no Brasil. Integração (não só da raça negra) hoje ameaçada por uma política demagógica do governo na reserva de cotas nas universidades.

Igualmente muito esclarecedoras as reflexões de Nabuco sobre a participação dos negros na Guerra do Paraguai. Ao contrário do que se pensa, a participação dos escravos nos combates não foi, como parece, uma crueldade, mas representou a oportunidade, se bem que dolorosa, de a raça negra ainda mais se integrar na sociedade brasileira por meio das tropas do exército do Império: “Essa cooperação dos escravos com o Exército era o enobrecimento legal e social daquela classe. Nenhum povo, a menos que haja perdido o sentimento da própria dignidade, pode  intencionalmente rebaixar os que estão encarregados de defendê-lo, os que fazem profissão de manter a integridade, a independência e a honra nacional. Por isso, não era o Exército que o governo humilhava indo buscar soldados nas fileiras ínfimas dos escravos; eram os escravos todos que ele elevava. Entre o senhor que ele fazia titular, e o escravo que fazia soldado, a maior honra era para este. A significação de tais fatos não podia ser outra para a massa dos escravos brasileiros senão que o Estado, por sua própria dignidade, procuraria no futuro fazer cidadãos os companheiros daqueles que tinham ido morrer pela pátria no mesmo dia em que tiveram uma. (…) Desde esse dia pelo menos o governo deu aos escravos uma classe social aliada: o Exército.”

Joaquim Nabuco ressalta também a colaboração da família imperial na luta contra a escravidão. Recorda o papel do conde D’Eu na Guerra do Paraguai, quando, à frente do Exército brasileiro, impôs ao Paraguai o fim da escravidão. Foram estas as eloquentes palavras do príncipe: “Se vós lhes concederdes (aos escravos) a liberdade que eles pedem, tereis rompido solenemente com uma instituição que foi infelizmente legada a muitos povos da livre América por séculos de despotismo e de deplorável ignorância.” Quanto a dom Pedro II, embora dizendo que o imperador poderia ter feito muito mais pela causa da abolição, Nabuco reconhece que o monarca sempre foi contrário ao regime escravocrata e recusou aos exploradores do tráfico negreiro os títulos de nobreza do Império.

Muitas outras lições úteis ainda se poderiam tirar da vida e da obra de Joaquim Nabuco. Por exemplo, sua humildade intelectual é um exemplo para os jovens de hoje que não aceitam nenhuma correção dos seus professores e orientadores na falida universidade brasileira. Diz ele, citando São Filipe Neri, “quem se não pode conformar à perda da própria honra nunca avançará na vida espiritual. O escritor juvenil que não se resignar ao sacrifício da sua honra literária não fará progressos em literatura.”

No Brasil dos nossos dias, quando nos vemos completamente desprovidos de homens públicos dignos de respeito e admiração, ler Joaquim Nabuco é alimentar nossa esperança de que a Terra de Santa Cruz, que foi berço do grande abolicionista e objeto dos sonhos generosos do patriarca José Bonifácio, venha no futuro reencontrar o caminho da grandeza que a Providência lhe reserva.

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Anápolis, 1º de maio de 2013

Solenidade de São José Operário