No rescaldo de Charlie Hebdo

Postado em 31-01-2015

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

No rescaldo do atentado terrorista contra o jornaleco sórdido Charlie Hebdo, reuniram-se na Suíça as lideranças mundiais para tratar dos diversos desafios econômicos, políticos e sociais dos nossos dias.

Foi lamentável comprovar mais uma vez a cegueira e a irresponsabilidade da maioria dos nossos governantes diante do problema do terrorismo islâmico. Na avaliação de vários chefes de Estado e ministros, o problema se reduz a eliminar o caldo de cultura que favorece o desenvolvimento do fundamentalismo islâmico no continente europeu. Isto e, o fundamentalismo resulta da crise econômica que assola a Europa há vários anos, excluindo amplos setores da sociedade, principalmente os imigrantes árabes e magrebinos, dos benefícios do Estado de bem-estar social, tal como concebido pela ideologia laicista da União Européia. A solução, portanto, consistiria apenas em retomar o crescimento econômico, com o Estado distribuindo riquezas, ampliando as oportunidades para que os imigrantes muçulmanos e seus filhos não fiquem vulneráveis à doutrinação radical de pregadores do fundamentalismo islâmico. Fundamentalismo este que seria uma corrupção dos verdadeiros ensinamentos do Corão.

Semelhante avaliação do problema do terrorismo islâmico, que o reduz a uma consequência da crise econômica e das injustiças sociais que impedem que os mais pobres desfrutem dos prazeres da sociedade de consumo, é um grande equívoco. Equivale ao erro cometido pelos políticos e juristas tacanhos e populistas que dizem que a delinquência no Brasil só é fruto da desigualdade social. Nossos jovens consumiriam drogas ou cairiam na prostituição só por falta da igualdade de oportunidades. Quando as delícias e divertimentos dos shopping centers forem acessíveis a todos os jovens, não haverá mais problema!

Não defendo a tese de que o islamismo seja um bloco monolítico sempre ameaçador e violento. A história da Idade Média, particularmente a das cruzadas, mostra que isso não corresponde à realidade. Apesar dos confrontos e batalhas que houve então, os cruzados, como o demonstra muito bem a historiadora Régine Pernoud em Les hommes de la croisade (Paris, 2013), houve momentos de diálogo e até de convivência pacífica entre católicos e muçulmanos, em parte, justamente, por causa das divisões entre os islâmicos que às vezes preferiam estabelecer negociações com os cristãos a ficar do lado de muçulmanos de outras correntes. O famoso episódio de Damieta no Egito, que contou com a participação de São Francisco de Assis, confirma o que se diz aqui. Na ocasião, quem tomou uma atitude errada foi o cardeal português, Pelágio (que já tinha sido desastroso nos colóquios com os bizantinos), quando recusou a proposta do sultão do Egito que queria ceder aos católicos Jerusalém em troca da paz em Damieta.

Na verdade, temos muito mais em comum com os muçulmanos do que com o mundo liberal do Ocidente de hoje, fruto dos erros filosóficos da tradição empirista da Inglaterra e do iluminismo racionalista francês. Os árabes muçulmanos, ao menos, apreciam a tradição metafísica dos antigos filósofos da Grécia, estudam Platão, Aristóteles e outros. Ao contrário, o Ocidente de hoje é um esgoto a céu aberto onde se refestelam os degenerados filhos espirituais de um David Hume, de um Kant, de um Rousseau, de um Marx, de um Freud, de um Marcuse. Se não estou enganado, em Constantinopla há uma estátua em honra do papa Bento XV com a inscrição “Ao diplomata da caridade. em sinal de gratidão. Hoje, no Ocidente, só se for em honra de Francisco I!

É  claro que um mundo fundado num terreno pantanoso como esse de falsos mestres (que certamente viveram em permanentes alucinações luciferinas – de outro modo não se explica o que disseram) não pode gozar de paz. O terrorismo fundamentalista surge, de fato, como uma reação a uma sociedade sem valores, uma sociedade que preferiu as trevas à luz, uma sociedade que, endeusando a razão, chegou a destruí-la porquanto nega que o homem possa conhecer a verdade.

O que quero dizer é que a sociedade relativista em que se baseia a democracia laica dos nossos dias estará sempre vulnerável aos ataques de grupos radicais fundamentalistas que resistem a uma ideologia niilista e materialista que as lideranças políticas querem impingir-lhes. A reação do terrorismo fundamentalista explica-se, mas não se justifica, bem entendido.

A solução do problema não se limita a gerar e distribuir mais riqueza econômica. Pelo contrário, o economicismo é que está arruinando nossa civilização, como se vê pelo que ocorre na Grécia, onde a União Européia primeiro consentiu na irresponsabilidade financeira para obter mais vantagens e depois a esfolou com a política de “austeridade”. A solução está em redescobrir a grande tradição cultural religiosa e filosófica do Ocidente, em fomentar o surgimento de verdadeiras lideranças políticas. Quando tivermos homens chefes de famílias numerosas, homens responsáveis e prudentes com senso do  dever moral, homens tementes a Deus, quando afastarmos da vida pública essas  mulheres feministas ruins defensoras do aborto e da destruição da família, quando houver uma sociedade com senso de ordem e justiça e não mais a democracia da trilogia revolucionária liberdade, igualdade e fraternidade, em que cada indivíduo se acha um deus, teremos homens competentes para tratar, com respeito à verdade e à justiça, as diferenças entre nós e os muçulmanos e estes não se sentirão mais injuriados e insultados não apenas por cartunistas mas também pelos chefes de Estado canalhas que os incensam, chefes de Estado estes dignos de toda repulsa e merecedores de ser eliminados da vida pública de qualquer nação consciente do seu destino histórico.

Como se vê, a Idade Média lança luzes sobre as trevas do mundo moderno. Como se vê, sem a tradição só nos restam a brutalidade e a morte.

Anápolis, 31 de janeiro de 2015.

Festa de São João Bosco, confessor. Verdadeiro educador, um dos maiores benfeitores da humanidade. Este ano comemora-se o segundo centenário do seu nascimento.