Notas sobre uma Filosofia jurídica de Tomás de Aquino

Postado em 30-12-2010

Francisco José de Almeida Prado Ferraz Costa Junior

São Bento do Sapucaí, 2010

 

Notícia Biográfica

Nascido no final de 1224 ou início de 1225, em Roccassecca, perto de Nápoles, no castelo dos Condes de Aquino, Tomás, sobrinho-neto de Frederico Barborossa na linha paterna e, na materna, descendente dos comandantes normandos que libertaram a Sicília dos sarracenos, pertencia a uma das mais importantes famílias da Europa. Ainda com cinco anos de idade, foi enviado a um mosteiro beneditino tomar as primeiras letras e iniciar uma carreira religiosa que, segundo os planos de seus pais, culminaria com a obtenção do título de abade e a adesão da ordem beneditinta à causa  gibelina em sua luta contra o Papado. Contrariando as expectativas, Tomás acabou por ingressar na Ordem Dominicana, onde, já em Paris, foi discípulo de Alberto Magno, o “doctor universalis”, que o iniciou na leitura do recém-redescoberto Aristóteles, cuja obra, à exceção da lógica, então não era bem vista pela autoridade eclesiástica.

Em 1252, iniciou a atividade de docência, que exerceria pelo resto da vida, ganhando fama como professor e polemista, apesar de dizer-se ter sido homem de espírito meditativo. O ativismo não deixou de render-lhe percalços, porque chegou a ser convocado a comparecer perante a Inquisição sob a acusação de heresia, onde apresentou defesa que ao final revelou-se bem sucedida.

Faleceu em 7 de março de 1274, no mosteiro cisterciense de Fossanova, quando viajava para o Segundo Concílio de Lion, por ordem do Papa Gregório X. Foi canonizado em 18 de julho de 1323, em Avignon, pelo Papa João XXII.

Apesar da breve vida, Tomás de Aquino teve significativa produção bibliográfica. Especificamente sobre Aristóteles, escreveu comentários sobre a Física, Metafísica, De Anima, Ética, Política e Analíticos Posteriores. As Sumas Teológica e Contra os Gentios desde logo chamam a atenção pelo volume. É freqüente encontrar comentários de que talvez maior mérito seu tenha sido a estruturação de um pensamento que encontrou já delineado que propriamente a originalidade. Ainda que se conceda ser isso verdadeiro, o fato é de que não se discute ser sua imponente obra a que melhor retrata o pensamento medieval em seu momento culminante, uma vez que o que se vai desenvolver depois dele é algo substancialmente diferente, que prepara o caminho para a modernidade.

 

A Contribuição dos Antecessores

O presente estudo, que toma como objeto uma investigação sobre aquilo que se pode chamar de uma filosofia do direito de Tomás de Aquino, recolhe material substancialmente das questões 90 a 108 da Suma Teológica e o opúsculo De Regno, que concentram a maior parte das reflexões de nosso autor sobre a dimensão política do homem. Nesses textos encontramos uma mescla entre filosofia grega e direito romano, animados de espiritualidade cristã, eterno horizonte de suas meditações.

Curiosamente, ao contrário do que o ditado comum de que Tomás de Aquino teria batizado Aristóteles sugeriria, sua ontologia jurídica deve mais à herança neoplatônica que à aristotélica propriamente dita. A doutrina da participação da lei natural na eterna e da lei humana na natural é, de certa forma, um reavivamento da metafísica de Plotino, em que a alma, sedenta de voltar ao etéreo plano de onde saiu, vai-se elevando, por meio da ascese, rumo à identificação com o princípio primeiro do universo.

De Aristóteles herdou o rigor lógico e a quase aversão ao uso de recursos retóricos, embora não fugisse à, àquela época useira, exposição do argumento na forma de questiones disputatae. Apesar de o discurso apresentar-se sempre formalmente aristotélico, sua substância, um tanto oculta na exposição da natureza ontológica do direito, somente se faz mais presente no ponto em que o amarra à política, culminando num interessante desenvolvimento da idéia de sociabilidade humana.

Por outro lado, o estoicismo bem trata a noção de natureza, conceito-chave da filosofia jurídica tomásica, que a toma de empréstimo e desenvolve. É bem verdade que a filosofia antiga como um todo, por desconhecer a postura individualista que marca o pensamento moderno, encara o sujeito mais como uma peça integrante de uma totalidade cósmica que em sua singularidade. Entretanto, é a partir da formulação estóica dentro da obra dos jurisconsultos romanos (também em seu espírito resignado), que se desenvolve, acrescida de substrato metafísico realista (e realista aqui na acepção que se lhe dá no contexto da Querela dos Universais), uma tentativa de formação de uma filosofia da cultura.

Do Cristianismo vêm-lhe as inclinações de espírito, os valores que presidem a toda a edificação de seu edifício filosófico, bem como um severo limite às conclusões (ne plus ultra), porque a filosofia é a serva que fornece à teologia as ferramentas para melhor conhecer as verdades da fé; vêm-lhe também, embora num universo que somente naquela época, depois de quase mil anos, soerguia-se de um largo período de involução cultural iniciado no final da Antigüidade, com nítida inspiração na fé, o reconhecimento de que o homem, sendo filho de Deus, é por só portador de uma especial dignidade.

 

O Direito numa Perspectiva Ontológico/ Metafísica

Embora não lhe feche as portas, Aristóteles não parece ter-se preocupado em dar fundamento metafísico às questões de filosofia prática. Reconhecendo sempre uma conatural incerteza na solução dos problemas que se propõe em sua singularidade, satisfaz-se com identificar a orthós logos com o prudente juízo do homem sábio.

Tomás de Aquino busca no universo movediço das coisas humanas um elemento imutável que as tornasse passíveis de um juízo mais sólido e objetivo. Partindo da hipótese levantada pelos estóicos de que haveria um intenso entrelaçamento entre moral e natureza, nosso autor, desenvolvendo-a à luz da Revelação, elabora aquilo que, numa interpretação extensiva, pode alcançar o status de verdadeira filosofia global da cultura, alicerçada sobre base metafísica.

Para Tomás de Aquino, o mundo, enquanto ato de criação de Deus, é reflexo de uma anterior idéia que o Criador fez, se não cronológica, ao menos logicamente, em sua inteligência daquilo que seria criado. Essa idéia, impregnada do logos divino, ao realizar-se, realiza-se por um ato de vontade do Criador, havendo assim um entrelaçamento entre razão e vontade, porque a razão tira a sua potência de mover da vontade[1], a que nosso autor chama lei eterna, desígnios de Deus relativos à sua Criação.

Entretanto, muito embora o Deus cristão não seja o mesmo de Aristóteles, motor imóvel absorto em auto-contemplação, é bem verdade que Tomás de Aquino reconhece haver um certo distanciamento entre criador e criatura, que decorre da diferença mesma que há entre o ser perfeito e o imperfeito, o contingente e o necessário, não sendo dado ao homem apreender por seu limitado intelecto aquilo que foi concebido na inteligência divina. A lei natural, assim, é uma participação da lei eterna na criatura racional, (…) impressão da luz divina em nós, (…)participação da lei eterna na criatura racional [2].

Em outras palavras, sendo a lei natural a lei eterna no momento de sua manifestação ao ser imperfeito, está ela intrinsecamente presa e entranhada à idéia da criação em seu plano ontológico, ao mesmo tempo que se também se dirige a um logos tão perfeito quanto mais elevado. Nessa ligação entre uma idéia concebida por uma inteligência perfeita em ato de vontade que se ordena a um fim – e é próprio da vontade que se ordene a um fim-, tem-se que o mundo, como atualização dessa vontade, está igualmente sujeita a ela, e a essa certa imanência da providência divina na matéria criada dá o nome de lei natural.

A lei natural, difusa na natureza, rege-a desde o plano físico, passando pelo biológico, instintos animais inclusive, oferecendo as linhas mestras de nossa inteligência, porque a inteligência humana é também um fenômeno natural, de modo que não existe ruptura, mas sim continuidade entre os planos do dado e o construído, o físico e o cultural, a ontologia como fundamento da deontologia, a construção do Sollen a partir do Sein. A moral, assim, tem seu nascedouro no próprio ser, como exigência de atualização de suas potências, e não numa relação de dependência de mandamentos externos, originários de uma razão transcendente.

É que o homem, filho de Deus a quem foram atribuídos razão e livre arbítrio, não se limita a ser mero autômato na Criação, mas é chamado a acabá-la e ser partícipe da atividade criadora, muito embora dentro das limitações de um ser sobre o qual pesa também o fardo de carregar o pecado original, signo de imperfeição e atávica inclinação à tomada de escolhas as mais desastrosas (meliora video proboque deteriora sequor).

A lei humana, portanto, é um esforço de explicitação da lei natural, captada pelo intelecto humano como princípios primeiros da razão prática que, em virtude de se apresentarem demasiado nuançadas (v.g. é melhor fazer o bem que o mau, não fazer ao próximo o que não gostaríamos que nos fosse feito), reclamam expressão mais minudente, que, ao contrário do que pensará o racionalista de depois, não se mostrava para nosso autor como uma atividade mecânica de dedução more geometrico desses princípios primeiros, mas sim como uma operação poiética que conta com a concorrência da vontade humana, adestrada ao longo de toda a vida pelas virtudes, desenvolvidas num outro tratado da Suma Teológica.

Assim, a diversidade de culturas, ao contrário de um certo relativismo, deve inspirar o reconhecimento da existência de diversos esforços, todos perfectíveis, retrato da eterna perfectibilidade do homem em si mesmo considerado, de alcançar justiça e felicidade na terra.

Fica já bastante claro, por meio dessa curta exposição, quão distante está o jusnaturalismo tomista, que, acompanhado de seus antecessores, ancora-o numa natureza humana universal que trava contato com as contingências de cada ser e suas circunstâncias, o que dá margem ao reconhecimento de um potencial criativo humano que não encontra limite algum senão o da própria natureza humana, do jusnaturalismo moderno, escorado numa razão atemporal e descompromissada com o acabamento perfectivo do homem, que repercutiu até mesmo em certa teologia pós-tridentina, que substituiu Criação em si mesmo considerada como origem próxima da moralidade pela atividade iluminadora do Espírito Santo sobre ela incidente.

 

O Entrelaçamento entre o Moral e o Político

A teoria propriamente política de nosso autor parte da obra aristotélica, em especial a pronta aceitação da afirmação de nossa substancial gregariedade, muito afinada ao pensamento anterior à modernidade, quando se via no homem, mais do que uma unidade autônoma, um componente de uma totalidade a que está indissociavelmente preso.

A imersão do zoon politikon na vida comunitária parece ser a explicação filosófica dos pensadores daquela época para a formatação política de então, que nos parece bastante absorvedora do indivíduo, ao identificar o bom homem com o bom cidadão, como se extrai da leitura de autores como Fustel de Coulanges ou de uma utopia como a de Platão. Penso residir nessa relação de profunda dependência do sujeito para com a comunidade a raiz do lugar-comum filosófico daqueles pensadores de entender a moral como tendo sempre um pano de fundo político e vice-versa, assim como não fazer distinção alguma entre moral pública e privada, o que somente se vai ensaiar nos autores renascentistas.

É importante frisar ser incorreto dizer que a moral privada fosse mera reprodução de uma moral pública ou mesmo o contrário. As comunidades antigas mediterrâneas, onde foram desenvolvidas essas teorias, têm nascedouro em pequenos grupos familiares, ligados pela religião de culto aos antepassados, que, ao dilatar-se, criam a Pólis e imprime-lhe sua feição, ao mesmo tempo que também se modifica e  adapta a um universo mais complexo.

De qualquer forma, Tomás de Aquino conjuga sua ética de realização ontológica do ser com o postulado da precedência da comunidade sobre o indivíduo, que, ao dela depender, nela também tem, ao menos em parte, sua finalidade. Assim, muitos daqueles institutos jurídicos que posteriormente seriam vistos como direitos subjetivos anteriores à sociedade política, artificiosamente criada para melhor defendê-los, mostram-se no Aquinate como técnicas de uma boa arquitetura social, prudencialmente construída e mantida.

A par disso, e curiosamente, essa política que dá importância à moral não faz o mesmo com a força. Cínica ou sinceramente, os autores daquela época preferem ao bruto kratos o suave princípio condutor da arché.Mesmo a idéia de ordenação, usada por nosso autor em sua definição de lei[3], ganha neles outra acepção, já não mais de ordem ou mandamento, mas sim como um processo dinâmico, um caminhar da coisa rumo à sua plenitude ontológica. Dentro desse quadro teórico, o direito se apresenta como uma reprodução, na expressão coletiva, da experiência moral individual, esta igualmente uma ordenação, mas referida a uma única pessoa (sua beatitude). A redução do direito à categoria de capítulo da moral e não um fenômeno autônomo que tenha ponto de contatos com a moral apresenta ao leitor de hoje grandes dificuldades de aceitação, porque a negação de uma diferença substancial do direito em relação à moral implica considerar ser ao primeiro a violência um dado meramente acidental. Já de longa data vêm-se desenvolvendo estudos esclarecedores que apontam uma íntima e substancial conexão entre direito e força, de modo que a adaptação da filosofia de nosso autor aos avanços posteriores, dados a que talvez não tenha dado suficiente atenção até mesmo em razão das contingências históricas (sistema feudal e sobreposição caótica de diversas instâncias mais ou menos autônomas), é desafio que dificilmente se levará a cabo sem prejudicar a estrutura de todo o edifício.

Em Aristóteles, tanto quanto Tomás, existe um convite à vida contemplativa. Entretanto, no Estagirita essa vida encontra-se indissociavelmente presa ao bom ordenamento civil, instância última da plenitude antropológica, uma vez que não se cuida de outra vida senão esta e aqui o homem é por definição um ser gregário. Na obra do Aquinate, impregnada da doutrina cristã, como não poderia deixar de ser, agrega-se à eudaimonia da ética nicomaquéia um chamado a uma vida sobrenatural, desdobramento sem ruptura da boa ordem natural. Assim, em sendo a salvação uma experiência individual, assim como substancialmente o é a experiência religiosa, ainda que haja a mediação institucional da Igreja, abre-se espaço ao reconhecimento de uma esfera individual insindicável pelo Poder Público, que aqui e ali se entremostram: a) a lei só pode imiscuir-se em assuntos privados havendo interesse público (1-2, q. 96 a.3); b) o Estado só pune a imoralidade ou exige virtudes pessoais havendo interesse da comunidade a respeito, porque não lhe cabe fazer os homens santos (1-2, 1.96, a.3); c) o homem é algo que de certa forma subsiste em si mesmo, independentemente dos demais (2-2 q. 57, a. 4); d) o direito de resistência é reconhecido, embora com temperamentos (1-2 q. 92, a. 1).

Numa síntese, o Poder Público é encarado como um universal, forma natural de organização humana estruturada como expediente à realização plenária da natureza de seus membros, sendo-lhe estranha quaisquer outras finalidades, no que se pode arriscar ser a elevação ao plano filosófico de uma doutrina política das relações independentes entre o Estado e a Igreja que remonta aos tempos de Santo Ambrósio, bispo de Milão, onde estava a sede do Império Ocidental, que conquistou a definitiva autonomia eclesiástica em face do poder temporal.

Afinado à teleologia aristotélica, dá especial atenção a uma dimensão finalística do direito que entende ser-lhe imanente na forma universal, de ordenação ao bem comum, não sendo lei, por carência de predicado substancial, mas apenas arbítrio revestido das aparências exteriores de lei, aquela que assim não estiver orientada, o que justifica até mesmo a desobediência civil, se um juízo prudencial indicar ser essa a medida que melhor concorra para o aprimoramento da comunidade política.

Nessa linha de raciocínio, a lei direciona o homem à sua plenitude, sendo um preceito diretivo a um fim bom, e, sendo bom, também útil, porque o bom e o útil se identificam nessa filosofia, haja vista que a moral entendida como a forma de realização do ser nada guarda em comum com as posteriores formulações mandamentais, fundadas numa razão que apenas acidentalmente trava contato com a matéria, e ainda assim a mais das vezes por estreitas vias, tais como a glândula pineal de Descartes.

 

Epistemologia

O saber jurídico é voltado para a ação, mas nem por isso é um obrar puro ou mesmo mera técnica. Há de existir no labor do jurista a marca de uma qualidade sua pessoal no trato do problema, que se lhe propõe em sua singularidade, que permita a obtenção in concreto de um resultado apropriado, o que não se alcançaria por meio de uma especulação somente teórica, mas sim por uma reflexão sobre o objeto voltada à deliberação do bem agir dentro das circunstâncias impostas. Ao buscar resultados concretos mais que conhecer uma verdade, a razão invoca o auxílio de predisposições de espírito do ser pensante, obtidas não por meio de uma atividade puramente intelectiva, mas antes por meio de seu adestramento ao longo de toda a vida. Essas qualidades, chamadas virtudes, hábitos operativos orientados ao bem agir que nos inclinam à perfeição, não constituem propriamente um conhecimento, nem tampouco são um valor, algo que deva ser alcançado por ser um fim em si, mas sim na medida que concorrem para a eudaimonia do indivíduo.

Bem por isso os jurisconsultos romanos eram chamados prudentes, porque portadores da aptidão de, antecipando mentalmente os resultados de sua conduta, agir de maneira reta e ordenar as coisas a seu fim. O direito, objeto de consideração pela razão prática, diz respeitos às coisas da vida, ao hic et nunc. Na obra de Tomás de Aquino encontramos a tradução filosófica de uma postura epistemológica consolidada, herdada dos romanos, avessa (por vezes até demais) a problematizações estritamente teóricas, o que somente no século XIX se vai transformar, em razão de uma reviravolta cientificista que buscava transportar para as humanidades os métodos das ciências naturais.

A atividade do jurista, ao contrário de um silogismo lógico de subsunção de fato a norma, consiste num esforço de decodificar e apreender a exigência do logos difuso na natureza imanente em cada caso, extraindo a justa proporção. O método indutivo de Tomás de Aquino chega às normas gerais através de um esforço de generalização que parte do cotejo entre as regras de direito pronunciadas na consideração de casos similares, porque é do próprio fato que nasce o direito, e não de uma norma geral e abstrata que sozinha contenha de antemão a resposta para todos os casos futuros. O direito, portanto, não era considerado uma ciência, no sentido que lhe dava Aristóteles, de conhecimento pelas causas de validade universal (não existe ciência do contingente mas tão-só do universal), mas sim uma arte, conhecimento ético e pragmático, muito embora passível de sistematização teórica, que, por meio do raciocínio dialético (na acepção dos antigos), julga e orienta concretamente o comportamento humano.

 

Conclusão

Para estudar a obra de Tomás de Aquino, é preciso uma isenção de ânimo que parece escassear. De um lado, está quem não esqueceu o adágio da philosofia ancilla theologiae. De outro, autores como Russel, que, no capítulo em que sobre ele trata, se restringe a elencar extravagâncias, tais como sua justificativa para a indissolubilidade do matrimônio, calcada no argumento de que o pai é necessário à educação dos filhos, por ser mais racional que a mãe e possuir mais força física quando é necessário castigar, ou então a proibição do incesto entre irmãos, justificada pelo fato de que, se o amor de marido e mulher estivesse combinado com o de irmão e irmã, a atração mútua seria tão forte que tornaria as relações íntimas indevidamente freqüentes[4]. Ter igual predisposição acerca de qualquer pensador não contribui para o progresso da filosofia, bastando imaginar a utilidade de uma história da filosofia que dedique todo o espaço destinado a Aristóteles a esmiuçar sua biologia.

Antes de ser um pensador propriamente original, Tomás de Aquino é um sistematizador da produção filosófica anterior, no que talvez resida o erro daqueles que, confundindo substância e forma, dizem ter sido ele o conversor de Aristóteles ao cristianismo, quando o Aquinatense mais convincentemente se amolda à figura daquele que se apropriou de vocabulário aristotélico para transmitir um discurso de conteúdo frequentemente mais afinado a outras escolas filosóficas do que um genuíno continuador de suas teses. Talvez em razão do caráter sintetizador de sua obra, pouco de novo foi feito na mesma linha de raciocínio depois de Tomás de Aquino; a produção escolástica realmente criativa posterior, embora dissesse também aspirar a uma correta inteligência de Aristóteles, acabou por enfatizar a veia platônica de tal modo que pavimentou a via da filosofia moderna.

O íntimo entrelaçamento, quase uma relação de identidade, entre moral e política, também não deixa de oferecer sérias dificuldades, quando se considera o direito um capítulo da moral, logo também ramo da política. Já há alguns séculos, as Cartas Políticas fazem as vezes de mecanismo de acoplamento estrutural entre o jurídico e o político, justamente para preservar a autonomia (que não se confunde com indiferença ou ensimesmamento descompromissado) do primeiro e frear os ímpetos destemperados do segundo. A submissão do direito à moral, ao menos dentro dessa perspectiva filosófico-política, representa ponto crítico à sua adequação a uma realidade história que trilhou um caminho que conferiu ao direito uma conformação ontológica absolutamente incompatível com a proposta pelo nosso autor.

Na verdade, a filosofia tomista repousa sobre um alicerce metafísico que confere à sua obra elegância e unidade. Entretanto, sua metafísica/ontologia está umbilicalmente ligada a um período da história do pensamento com o qual os autores posteriores romperam definitivamente. O pensamento moderno, gestado no nominalismo franciscano, parte de pressupostos diametralmente opostos àqueles admitidos por S. Tomás e foi sobre esses pressupostos que se desenvolveram todos os estudos posteriores e se forjou um novo paradigma de racionalidade de que todos hoje são tributários, de modo que para entender Tomás de Aquino é preciso primeiro aprender a pensar como as pessoas do tempo de Tomás de Aquino. Assim, a metafísica que dá tamanha coesão interna à obra somente permite sua aceitação ou recusa em bloco, o que acaba por representar um sério obstáculo ao desenvolvimento de suas teses, a não ser que se retorne ao modelo medieval de racionalidade, o que não parece ser fenômeno iminente.

Contrapor o zoon politikon de antanho ao contratualismo subjacente à política moderna permite que se trate com a necessária profundidade da dimensão social e difusa do direito, superando a perspectiva individualista que ainda permeia nosso direito positivo, estruturado em categorias de direito privado, e de que somente aos poucos superamos pela via dos estudos constitucionalistas. Toda teoria jurídica propositiva que se pretenda séria há de arrostar a questão, hoje novamente candente, e a obra do Doutor Angélico, embora não como uma corrente a ser desenvolvida, mas como um modelo paralelo a ser seriamente considerado para a criação de algo realmente novo, pode trazer uma viva contribuição e não simplesmente figurar, quando muito, como uma mera menção num breve retrospecto histórico introdutório.

 

BIBLIOGRAFIA

AQUINAS, Thomas.  The Summa Theologica. 2 vol. Tradução para o inglês dos Padres da Ordem Donimicana. Encycloplaedia Britannica, Inc.: University of Chicago, 1952.

BARRERA, Jorge Martínez. A Política em Aristóteles e Santo Tomás. Tradução e prefácio de Carlos Ancêde Nougué. Rio de Janeiro: Editora Sétimo Selo, 2007.

BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Tradução de Raimundi Vier, O.F.M.. 10ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.

COSTA JUNIOR, Francisco José de Almeida Prado Ferraz. Moral e Direito em Tomás de Aquino. 2008. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção do título em bacharel em direito – Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo.

RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. 3 volumes. Tradução de Brenno Silveira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.

 


[1] Suma Teológica, 1-2 q. 90, a.1

[2] op. cit. 1-2 q. 91 a. 2

[3] Op. cit. 1-2 q.90 a.4:  definitio legis, quae nihil est aliud quam quaedam rationis ordinatio ad bonum comune, ab eo qui curam communitatis habet, promulgata (lei é uma ordenação racional ao bem comum, promulgada por aquele a quem toca o governo da comunidade)

[4] História da Filosofia Ocidental. Tradução de Brenno Silveira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957, 2. v., p. 180