O caráter totalitário da República de Platão

Postado em 12-03-2008

Universidade Federal de Goiás

Mestrado em Filosofia Política

Aluno: João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa

O caráter totalitário da República de Platão

Goiânia, 2002

Ao escrever sobre os clássicos é desnecessário tecer elogios e temerário aventar críticas. Todavia, a leitura da República de Platão suscita ambas atitudes. Com efeito, se as intuições geniais do filósofo sobre o problema da justiça causam admiração e são sempre atuais e proveitosas, suas idéias sobre a organização da cidade geram perplexidade, sendo fonte perene de instituições políticas incompatíveis com a dignidade da pessoa humana.

Neste artigo pretendo demonstrar como graves lacunas do pensamento platônico sobre a constituição natural da sociedade têm o condão de conduzir à edificação de um Estado totalitário.

Na verdade, por um lado, as idéias platônicas sobre a justiça representaram a solução do problema relativo à unidade da ação humana, constituindo uma refutação cabal da sofística de então que pretendia haver uma dicotomia entre teoria e prática; e o filósofo demonstra que toda atividade humana encerra uma harmonia entre theoresis, poiesis e praxis. Mas, por outro lado, Platão não explica satisfatoriamente a relação entre pessoa e sociedade.

Para ser justo com o filósofo, deve-se inicialmente reconhecer que muitos dos erros em que incorre talvez fossem para ele inevitáveis, porquanto à sua reflexão sobre a organização social faltavam noções claras quanto à pessoa humana e à liberdade, conceitos desenvolvidos pela tradição judeu-cristã. Mas, ao contrário, parece que o filósofo não levou em devida consideração a constituição orgânica natural da sociedade, isto é, não atentou para o fato de a sociedade ser realmente uma sociedade de sociedades, e por isso laborou em erro ao dissertar sobre a relação entre pessoa e sociedade. Defender a organicidade da sociedade significa dizer que a sociedade não é uma mera soma de indivíduos soltos, mas está constituída por grupos naturais, instituições intermediárias autônomas, nas quais se inserem os indivíduos dotados de subsistência própria.

Platão, na estrutura do seu mundo das idéias, ignora a analogia do ser na medida em que cada idéia, para ser realmente idéia, deve ser diferente de todas as outras. De modo que, comparando  a sociedade com um corpo vivo, não percebe as diferenças essenciais entre ambas realidades, pois que se inspira na mesma idéia de corpo. Ao passo que, se se tem presente a analogia, é possível distinguir com clareza entre uma concepção orgânica de sociedade e uma teoria “organicista”.

Ora, o filósofo, em sua especulação sobre a melhor organização política que poria fim às mazelas do seu tempo, vê apenas um binômio: de um lado, os indivíduos soltos e, de outro lado, o Estado com autoridade competente para regular tudo. Quer dizer, os indivíduos não têm existência própria, dependem intrinsecamente da República, a qual é comparável a um organismo vivo capaz de assimilar toda matéria em benefício próprio.

Cito algumas passagens da República que ilustram o caráter totalitário e organicista do regime político preconizado por Platão.

Diz o filósofo pela boca do seu interlocutor Sócrates:

É preciso, de acordo com o que estabelecemos, que os homens superiores se encontrem com as mulheres superiores o maior número de vezes possível, e inversamente, os inferiores com as inferiores, e que  se crie a descendência daqueles, e a destes não, se queremos que o rebanho se eleve ás alturas, e que tudo isto se faça na ignorância de todos, exceto dos próprios chefes, a fim de a grei dos guardiões estar, tanto quanto possível, isenta de dissensões.1

Diz igualmente:

Mas, na verdade, nós assentamos em que era esse o maior bem para a cidade, comparando uma cidade bem administrada com o corpo e seu comportamento relativamente a uma das suas partes, no que toca ao prazer e à dor.2

 De fato, a comparação da cidade com o corpo é legítima e aceite pelas mais diversas culturas, como, por exemplo, pelo cristianismo que define a Igreja como corpo místico de Cristo. Contudo, trata-se de uma analogia que apresenta um aspecto semelhante e um aspecto diferente. Não se pode, sem graves conseqüências, identificar a relação entre indivíduos e sociedade com a relação entre corpo e suas partes dependentes inteiramente do todo. A sociedade não é uma substância, não tem uma unidade essencial. A sociedade é uma união moral em que os indivíduos livres, vivendo em grupos naturais, são seres subsistentes.

Ao contrário, a concepção platônica representa uma atomização da sociedade. Nesta concepção, os indivíduos, separados de suas instituições naturais, mas simplesmente pulverizados, são objeto de manipulação para a arquitetura de um Estado ideal conforme o modelo preconcebido por um suposto rei filósofo.

 

Do individualismo ao totalitarismo

É preciso reconhecer que a tese fundamental da República, o individualismo frente ao Estado, suscita uma questão de ética social de transcendental importância: as conseqüências práticas da atomização social

Vê-se, com clareza, que a concepção individualista de sociedade não é antagônica ao Estado totalitário, mas antes a ele conduz, não reconhecendo as autoridades sociais dos grupos intermediários em que nascem  e se desenvolvem os homens.

De maneira que a única alternativa ao Estado centralizador é reconhecer a competência e legitimidade das instituições sociais autônomas, impedindo sejam açambarcadas pelo Estado burocrático. Com efeito, o problema da liberdade só encontra solução satisfatória através das instituições naturais e históricas respeitadas em sua integridade pelo poder estatal, pelo que se deve falar em liberdades concretas e não apenas em liberdade abstrata. Isto é, a liberdade não se assegura por um mero artigo de uma constituição positiva,  mas se concretiza por meio de instituições sociais autônomas em sua origem e vida.

Outro elemento de capital importância para obviar aos males do Estado totalitário é o conceito de lei natural. Ora, Platão não desenvolveu plenamente o conceito de lei natural, identificada, na República, com a idéia de função. Sem uma noção precisa de lei natural como fundamento da lei positiva, não se pode falar, com boa razão, de Estado de Direito, mas apenas de observância de um formalismo legal por parte do Estado, sempre suscetível de aprovar uma legislação em desarmonia com as exigências da natureza humana em busca da sua enteléquia.

Na República de Platão, a ausência de um conceito claro de lei natural reflete-se diretamente em suas especulações acerca do problema da educação. Para o filósofo, a educação enfeuda ao Estado o ser humano a ser construído conforme um protótipo, mas não se limita a ser um auxílio para que a pessoa tire de dentro de si sua virtualidade e venha a ser ela mesma.

Conclui-se, pois, que, se por um lado a República de Platão encerra riquíssimos subsídios para uma boa reflexão no campo da ética social, sobretudo em sua demonstração da unidade da ação humana (capítulo I, referente à justiça e à injustiça), por outro, a obra do imortal filósofo fornece muito material para a construção do Estado totalitário. Isto porque, como dissemos, o filósofo não levou em conta a constituição natural da sociedade, não teve a seu alcance a noção de pessoa humana e liberdade, nem elaborou um conceito preciso de direito natural.

Após a leitura da República de Platão, solidificou-se-me a convicção de que a boa política será sempre a combinação dos primeiros princípios com a experiência histórica. Todo abstracionismo e devaneio na arte de governar a cidade só conduz à edificação de um poder absoluto que esmaga as liberdades reais do homem concreto.


1 PLATÃO, A República. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1949, 459 e.

2 O. c. 464 b.