O culto dos santos na Igreja Católica

Postado em 07-04-2014

Desde seus primórdios a Santa Igreja favoreceu o culto dos santos para benefício dos fiéis. Evolução histórica e questões teológicas relativas a essa temática de atualidade.

José Antonio Ureta

Os precursores de Cristo com Santos e Mártires (detalhe) – Fran Angélico, séc. XV. Retábulo em Fiesole San Domenico (Itália)

Em cada edição Catolicismo propõe, para a edificação dos leitores, a meditação sobre a vida de um santo que pode servir de modelo para os nossos dias. O exemplo dos santos é de molde a afervorar os fiéis na piedade e excitá-los à prática de virtudes que os santos exercitam de modo insigne. A revista pode também cair nas mãos de pessoas afastadas da Religião e que venham a receber graças para iniciar uma vida orientada pelas virtudes. Com efeito, muitas foram ao longo da História as almas que se converteram devido à leitura da vida de santos.

 

Diferença entre santidade e a “justificação pela fé” protestante

Em sentido estrito, só Deus é santo. Porque a santidade é a propriedade de seu Ser que Ele revela nas Sagradas Escrituras e que consiste no fato de que Deus, em sua onipotência, glória e majestade, está infinitamente acima de tudo que não é Ele, requerendo do homem uma atitude de adoração e o desejo de O imitar em suas perfeições.

Mas a santidade é também uma das notas essenciais da Igreja Católica que permitem reconhecê-la como a verdadeira Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. Isso significa que, sendo o Corpo Místico de Cristo, a Igreja Católica tem os meios sobrenaturais para tirar o homem do pecado e uni-lo a Deus. E também significa que nunca faltarão em seu seio almas que testemunhem essa força sobrenatural. Ou seja, santos.

A santidade no homem é o efeito da graça santificante e consiste na participação da santidade de Deus. Ela é inseparável das virtudes teologais — Fé, Esperança e Caridade — e, quando atinge sua plenitude, leva também as virtudes morais a um grau heroico, principalmente as virtudes cardeais da Prudência, Justiça, Temperança e Fortaleza.

Nisso reside uma das grandes diferenças entre a Igreja Católica e as seitas protestantes. A heresia da “justificação só pela fé” leva os adeptos do Protestantismo a supor que o Batismo não lava inteiramente a mancha do pecado original, motivo pelo qual até os atos mais heroicos do homem seriam censuráveis aos olhos de Deus. O homem apenas se salva, segundo eles, porque sua podridão é coberta exteriormente pela fé no caráter salvífico da morte de Jesus, mas no seu interior o fiel batizado permaneceria um pecador.

Os ensinamentos de Nosso Senhor, pelo contrário, afirmam que o “homem velho” é completamente renovado no seu interior pela graça e, embora ainda sujeito ao atrativo do mal — chamado concupiscência —, é capaz de amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. E, por sua união com Deus, capaz de fazer obras boas e até heroicas, ganhando méritos para si e para seus irmãos pela comunhão dos santos.

O estado de união total com Deus a que o homem está chamado só é possível alcançá-lo após a morte, vendo a Deus face a face e sem nenhuma possibilidade de afastar-se d’Ele. Mas esse estado de beatitude já é prefigurado pela união íntima com Deus que possuem as almas que, nesta vida, correspondem generosamente aos apelos da graça divina. É essa santidade que a Igreja reconhece e apresenta como exemplo ao canonizar alguns de seus filhos, para mostrar que a santificação não é apenas uma possibilidade teórica, mas algo ao alcance de todos os que estão em estado de graça ou até dos pecadores que lavam sua alma pelo sacramento da Confissão.

 

Os cultos de dulia e hiperdulia

Em coerência com o que ficou dito, a Igreja não somente nos apresenta os santos como modelos, mas incita os fieis a cultuá-los e pedir sua intercessão junto a Deus, porquanto já gozam da vida eterna e, na corte celeste, são amigos de Deus. A eficácia da intercessão dos santos é fundamentada na intensidade da amizade existente entre eles e Deus e em virtude dos méritos que adquiriram na sua passagem pela Terra.

Dita veneração aos santos é chamada “culto de dulia”. Este é distinto do “culto de latria” ou de adoração, reservado somente a Deus. O “culto de dulia” é uma forma indireta de O louvar pela obra de santificação que Ele operou nesses santos e pelos exemplos de virtude que estes ostentaram quando residiam entre nós. No culto prestado às criaturas, sobressai o que é tributado a Nossa Senhora, por ser Ela a Mãe de Deus, ter uma relação ainda mais íntima com seu divino Filho e ser a Medianeira Universal entre Ele e nós, merecendo por isso de nossa parte um culto de “hiperdulia”.

Mas nossas relações com os santos não se esgotam no fato de admirarmos seus exemplos e pedirmos a sua intercessão. Pela comunhão dos santos, formamos com eles um só Corpo Místico e tendemos, todos juntos, a um mesmo fim, que é o de conhecer, amar e servir a Deus e participar plenamente da vida divina no Céu.

 

A evolução do culto aos santos na História

Além dos Apóstolos, os primeiros santos venerados foram os mártires, cujos corpos o povo recolhia nas catacumbas e dispunha de maneira a transformar seus túmulos em altares sobre os quais era celebrada a Santa Missa. Os bispos os colocavam então no catálogo oficial dos mártires. A partir do século IV, começou-se a incluir nessa veneração também aqueles cristãos, figuras ímpares, que não tendo vertido o sangue por Jesus Cristo, haviam entretanto “confessado” seu Nome diante dos homens e passado por múltiplas provas. A pedido dos fiéis, os bispos autorizavam que suas figuras também fossem colocadas nos dísticos.

Embora todo fiel tenha o direito de rezar para pessoas que conheceu e admirou, mortos em “odor de santidade”, a Igreja percebeu que deveria reservar o culto institucional apenas para aquelas pessoas a respeito das quais havia fundadas razões para acreditar estarem no Céu e terem oferecido verdadeiro exemplo aos fiéis aqui na Terra. Por volta do ano mil, os Papas se empenharam em fazer com que as virtudes e os milagres dos servos de Deus — isto é, fiéis que praticaram virtudes insignes — e cujo culto tinha ultrapassado os limites de uma diocese, fossem analisados em sínodos regionais, e seu culto aprovado coletivamente.

Uma constituição do Papa Alexandre III (1159-1181) retirou o direito dos bispos de autorizar o culto de um servo de Deus em suas dioceses. Entretanto, tal decisão tornou-se efetiva somente nas primeiras décadas do século XVII mediante um decreto do Papa Urbano VIII (1623-1644), que reservou o processo das causas de beatificação e canonização à Santa Sé.

A partir dessa época introduziu-se uma distinção mais precisa entre “beatos” e “santos”. Os primeiros são representados com um halo de luz em torno da cabeça, para significar que seu culto é apenas permitido num conjunto determinado de dioceses ou numa Ordem religiosa. A beatificação é a etapa prévia à canonização. Os santos canonizados, pelo contrário, são representados com uma auréola definida e seu culto é de preceito para toda a Igreja em todos os países.

Dois tipos de causas de canonização passaram, na mesma época, a serem instruídas pelos Papas. Primeiro, as “canonizações formais”, assim chamadas por serem objeto de uma sentença formal, após um longo processo de estudo da vida do candidato, com a intervenção do assim denominado “advogado do diabo”, ou seja, de um perito encarregado de levantar as objeções à canonização, procedendo-se a uma análise detida dos milagres que certificariam ser da vontade de Deus que tal pessoa fosse canonizada. E também as “canonizações equipolentes”, ou equivalentes, cuja sentença limita-se a confirmar o caráter imemorial do culto prestado pelo povo fiel a um servo de Deus e a preceituá-lo para toda a Igreja.

A sentença de canonização envolve três realidades derivadas logicamente uma da outra: a) que o servo de Deus goza da visão beatífica no Céu; b) que ele mereceu alcançar essa glória por sua união com Deus e pelas virtudes heroicas que praticou, as quais são um exemplo para os fiéis; c) que a Igreja deve prestar culto ao santo e pedir sua intercessão, agradecendo a Deus pelo benefício de sua vida.


No retábulo, além dos Apóstolos aos pés da Virgem, os primeiros santos venerados foram os mártires. Altar de Maria está em el centro de la nave de la Iglesia de Dios de Creglimgen, Alemanha 

 

 

 

 

Processos simplificados e  aumento exponencial das canonizações: novidades pós-conciliares

Em vista de todo o acima exposto, compreende-se que a Igreja tenha sido no passado muito parcimoniosa em autorizar a inscrição no catálogo dos santos dos servos de Deus mortos em odor de santidade e venerados pelos fiéis.

Considerava-se, com Santo Tomás de Aquino,(1) que embora todos os batizados sejam chamados à santidade, havia poucos santos de altar, devido à fraqueza introduzida em nossa natureza pelo pecado original e pelo caráter soberano da misericórdia de Deus, que escolhe quem quer para exceder o estado comum. Por sua vez, a exemplaridade dos santos, para atrair a atenção, pressupunha algo extraordinário, realmente fora do comum. E era por essa razão que, não obstante o Céu estar povoado por servos de Deus, apenas alguns eram elevados à glória dos altares. Multiplicar os santos — pensava-se — acabaria por diminuir no espírito do comum dos fiéis a sua exemplaridade.

Pelo contrário, os Papas posteriores ao Concílio Vaticano II decidiram, por assim dizer, colocar a santidade ao alcance de todo o mundo, em conformidade com a insistência do referido concílio quanto ao chamado universal à santidade. Dessa maneira, só S.S. João Paulo II elevou 482 santos à honra dos altares, ou seja, um número superior ao que fizeram todos seus predecessores somados, desde São Pedro até Paulo VI. E Francisco I, já na primeira cerimônia, canonizou os 800 mártires da cidade de Otranto, trucidados pelos muçulmanos em 1480, e mais duas religiosas latino-americanas, praticamente dobrando o número de santos.

Para facilitar esse aumento exponencial do número de servos de Deus beatificados e canonizados, João Paulo II realizou uma reforma radical das regras dos processos de canonização: reduziu de 50 para cinco os anos de espera para a abertura dos processos; reduziu de dois para um os milagres requeridos para a beatificação e, depois, para a canonização; eliminou o “advogado do diabo” e atribuiu ao próprio Promotor da causa o encargo de evocar as objeções; permitiu ao citado Promotor fazer uma seleção das testemunhas, com a faculdade de descartar as pessoas que desejassem relatar eventos negativos para a personalidade em questão. Muitos especialistas e inumeráveis fiéis ficaram muito perplexos com essa simplificação dos procedimentos, que não oferecem as mesmas garantias de rigor científico e religioso de outrora.

 

Falibilidade ou infalibilidade das canonizações: discussões teológicas

O referido abrandamento do rigor dos processos propiciou um debate teológico muito antigo, mas que havia diminuído consideravelmente de intensidade no decurso do século XX: a sentença solene de canonização é um ato infalível do Papa? Sim ou não?

Há consenso geral de que as beatificações podem acabar por concernir pessoas que não estão no Céu ou que não merecem ser veneradas. O argumento é que os decretos de beatificação são permissivos, e não impositivos, além de a autorização de culto ser restrita a uma área definida, e não universal.

Mas no que se refere às canonizações, elas são julgadas infalíveis pela maioria dos teólogos. Porém, o Magistério da Igreja nunca se pronunciou de modo definitivo. Trata-se, portanto — é importante frisar —, de matéria em que um teólogo, tendo razões de peso, pode dissentir da opinião comum — favorável à tese da infalibilidade das canonizações — e, por isso, nunca deixou de existir uma corrente minoritária que nega essa tese ou levanta sérias dúvidas a respeito dela.

Tratadistas medievais de grande autoridade, como o Papa Inocêncio IV e o Cardeal de Susa (conhecido como Ostiensis), ou o canonista Joannes Andrae, de Bolonha, admitiam a possibilidade de erro nas canonizações.

No século XVI, o maior e melhor comentador de Santo Tomás de Aquino, o famoso Cardeal Cajetano, era da mesma opinião, assim como seus confrades na Ordem dominicana, o Cardeal Tommasso Badia (que fora um dos contraditores de Lutero na Dieta de Worms) e o provincial da Toscana, Frei Niccolò Michelozzi.

São três as principais objeções teológicas dessa corrente à infalibilidade das canonizações:

·        uma vez que a Revelação pública(2) encerrou-se com a morte do último Apóstolo e que a Igreja não goza do carisma da inspiração, ela não pode agregar novas verdades ao depósito da fé;

·        é dogma de fé que ninguém pode saber com certeza, sem uma revelação privada, se está ou não em estado de graça, e menos ainda pode fazê-lo um terceiro que observa de fora a vida de uma pessoa; e

·        a Igreja funda seu julgamento sobre testemunhas humanas falíveis, logo sua conclusão pode ser equivocada.

A corrente majoritária que defende a tese da infalibilidade das canonizações não discute os três argumentos acima, mas afirma que o auxílio do Espírito Santo prometido por Nosso Senhor à Igreja supre as deficiências de um exame meramente humano. E acrescenta que, se a Igreja propusesse à devoção dos fiéis um santo falso, ela estaria oferecendo um modelo errôneo de vida moral e, portanto, uma aplicação equivocada das verdades da fé.


Lutero diante ao Cardeal Cajetano, Gravura do século XVI 

 

 

 

 

Aparecimento do conceito de “objeto secundário” da infalibilidade durante a polêmica jansenista

Essa argumentação viu-se indiretamente reforçada em razão dos debates suscitados pela condenação, no século XVII, na França, pelo Papa Inocêncio X (1644-1655), de cinco teses heréticas do livro Augustinus,de Jansênio, falecido alguns anos antes. Os seguidores deste último, convidados a retratar-se, disseram que não tinham problema em rejeitar essas heresias, mas apenas que, contrariamente ao que dizia o Papa, tais erros não se encontravam no livro incriminado. Diante dessa recusa, três anos mais tarde, o Papa Alexandre VII (1655-1667), sucessor do anterior, declarou solenemente que as cinco teses figuravam nos escritos de Jansênio, e pediu ao Arcebispo de Paris que exigisse dos jansenistas uma aceitação formal dessa decisão. Estes últimos perguntaram se deviam dar à mesma um assentimento de fé divina, ou apenas de fé humana (se fosse um assentimento de fé humana, pensavam eles poder subscrever a fórmula, mas continuar a considerar que o livro não continha as heresias apontadas). Assistido pelo célebre Fénélon, o arcebispo declarou que o assentimento devido não era nem de fé divina, nem de fé humana, mas um assentimento intermediário que ele chamou de “fé eclesiástica”, por causa da assistência do Espírito Santo à Igreja.

Como resultado, nos tratados de teologia apareceu o conceito do “objeto secundário da infalibilidade”, ou seja, que a Igreja é infalível não apenas naquilo que foi formalmente ou virtualmente revelado por Deus (objeto primário da infalibilidade), mas também naquelas verdades não reveladas necessárias para que o depósito da fé revelado possa ser preservado na sua integridade, explicado convenientemente e defendido eficazmente. Por exemplo, verdades filosóficas como a de que a razão é capaz de conhecer a verdade (sem a qual a ideia de “verdade revelada” perde sentido), ou o fato de o Papa apontar as heresias contidas numa obra cuja leitura seria corrosiva para a fé dos fiéis (como no caso do Augustinus).

Em vista do aparecimento desse conceito de “objeto secundário da infalibilidade”, os tratadistas passaram logo a incluir, de modo quase sistemático, as sentenças de canonização no objeto secundário da infalibilidade da Igreja. Tanto mais quanto o Papa Bento XIV (1740-1758) — que fora anteriormente um renomado canonista e “advogado do diabo” de várias causas — havia escrito, antes de subir ao trono pontifício, um livro no qual afirmava, nem mais nem menos, o seguinte: “Quem ousasse sustentar que o Papa errou nesta ou naquela canonização ou que este ou aquele santo canonizado não deve ser cultuado, se não for herege, pelo menos deve ser chamado de temerário, que escandaliza toda a Igreja, injuria os santos, favorece os hereges que negam a autoridade da Igreja na canonização dos santos e ao mesmo tempo abre caminho para os infiéis zombarem dos fiéis, sustenta uma proposição errônea e merece as mais graves censuras”!

 

O objeto da infalibilidade: deixado em suspenso no Concílio Vaticano I

Durante o Concílio Vaticano I, que definiu a infalibilidade pontifícia como dogma da fé católica, houve desacordo entre os padres conciliares quanto à extensão do objeto da infalibilidade. Enquanto para alguns ele se limitava à Revelação stricto sensu (ou seja, às verdades formalmente ou virtualmente reveladas e susceptíveis de serem proclamadas dogmas de fé e impostas aos fiéis para serem cridas com fé divina), para outros, influenciados pelo debate levantado em torno do Augustinus de Jansênio, o objeto da infalibilidade estendia-se também às verdades não reveladas, mas necessárias para a preservação, explicação e defesa do depósito da fé.

No decurso do debate, chegou-se a propor fosse declarado explicitamente que o Papa é infalível nas canonizações e na aprovação das leis universais e das regras das Ordens religiosas; mas a proposta foi rejeitada pela maioria.(3) De qualquer forma, por sugestão do Papa Pio IX — que via com preocupação aproximar-se a guerra franco-prussiana de 1870 e o consequente risco de o Concílio vir a ser adiado sem a proclamação do dogma da infalibilidade pontifícia —, o Secretariado do Concílio, chamado Deputação da Fé, suspendeu o debate em torno do objeto da infalibilidade e redigiu uma fórmula que não dirimia a questão. Tal fórmula diz que o Papa é infalível “nas questões de fides et mores”, expressão consagrada na Teologia para indicar o depositum fidei, mas acrescentando que suas definições infalíveis devem ser aceitas pelos fiéis como irreformáveis. Se a fórmula tivesse dito que deviam ser cridas (termo empregado na teologia católica exclusivamente para o assentimento devido às verdades divinamente reveladas), ela teria de fato limitado a extensão da infalibilidade exclusivamente ao seu objeto primário, a Revelação.(4)

O secretário da Deputação da Fé, Mons. Gasser, explicando esse detalhe, declarou na aula conciliar: “É de fé que o Papa é infalível no objeto primário; a infalibilidade no objeto secundário permanece no nível de certeza teológica”, ou seja, no nível daquelas doutrinas nas quais o Magistério não se tem pronunciado de maneira explícita nem definitiva, mas que, segundo parecer mais ou menos unânime dos teólogos, não se pode negar sem pôr em risco uma verdade revelada.

Não sendo de fé que o chamado objeto secundário seja coberto pelo carisma da infalibilidade da Igreja, menos ainda é de fé a tese de que as canonizações sejam infalíveis. Nem sequer o Magistério definiu ainda qual o grau de conexão que deve haver entre o depósito da fé e uma verdade não revelada (como uma canonização), para que esta última faça parte do objeto secundário da infalibilidade.

Existe unanimidade apenas em que o nexo entre o depósito da fé e uma verdade não revelada deve ser íntimo e necessário para que o depósito da fé possa ser apropriadamente preservado, explicado e defendido. Mas não há nenhum consenso quanto ao fato de que esse nexo orgânico realmente existe no caso das canonizações. Em outros termos, é certo ser dogma de fé que os homens vão para o Céu se morrerem em estado de graça; o problema está em saber se, para crer nesse dogma, será preciso crer também que as pessoas canonizadas gozam da bem-aventurança eterna e intercedem por nós junto a Deus. Ou se, pelo contrário, acontece como no culto das relíquias, das quais sabemos que algumas podem ser falsas, mas que nem por isso Deus — fim último de todas as nossas orações — deixa de aceitar nosso ato de devoção.


Papa Bem-aventurado Pio IX durante o Concílio Vaticano I 

 

 

 

 

O refluxo da opinião majoritária desde o início do século XX

Um número crescente de teólogos, a partir dos anos 1930, começou a contestar, respeitosamente, a quase unanimidade dos manuais de teologia em favor da infalibilidade das canonizações.

O primeiro tratadista a fazê-lo foi Mons. Bernard Bartmann em seu manual que foi traduzido em várias línguas e muitíssimo usado nos seminários antes do Concílio Vaticano II. O conceituado teólogo retomou as dificuldades que a suposta infalibilidade das canonizações coloca para a teologia desde a Idade Média, ou seja, que a Igreja não pode acrescentar “novas verdades” ao depósito da fé, que ninguém pode saber sem uma revelação se um outro está em estado de graça, e, ademais, que as testemunhas humanas são falíveis. Mons. Bartmann destaca também o fato de que os defensores da infalibilidade das canonizações, na falta de um argumento teológico decisivo, apoiam-se num “feixe de indícios” cujo número tenta suprir a fraqueza de cada argumento isolado. A respeito dessa temática, o teólogo alemão conclui com as seguintes palavras: “Os atos de canonização não podem ser aceitos senão com uma fé geral e eclesiástica e não com fé divina. O fiel não faz, sem dúvida, um ato de fé especial na canonização, mas crê nela mediante um ato de fé geral. Ato pelo qual ele aceita no seu conjunto o culto da Igreja. — Se no conjunto dos santos apresenta-se por vezes um “falso” santo […] o culto relativo que lhe é prestado reverte finalmente a Deus. Um rei é honrado através de um falso embaixador. Deus também mediante um falso santo.”(5)

 

As objeções e reservas de Mons. Gherardini

Já neste século, outro renomado teólogo que levantou respeitosamente objeções e reservas à tese da infalibilidade das canonizações foi Mons. Brunero Gherardini, por muitos anos decano da Faculdade de Teologia da Universidade Lateranense, que até o Concílio Vaticano II fora o bastião da chamada “escola romana de teologia”, de orientação nitidamente conservadora.

Num artigo para a revista Divinitas, posteriormente reproduzido em Chiesa Viva sob o título “Canonizações e Infalibilidade”,(6)o ilustre sacerdote florentino observa preliminarmente que os partidários da infalibilidade das canonizações fazem um “raciocínio por absurdo”: seria intolerável que as canonizações não fossem infalíveis porque isso teria repercussões deletérias na vida da Igreja. E acrescenta que muitos autores contestam hoje esse argumento.

Indo ao fulcro do problema, Mons. Gherardini põe como premissa que a canonização não define nenhuma verdade revelada e, por isso, na linguagem teológica, é uma proclamação “non immediate de fide”, não faz parte daquilo que Santo Tomás chama “hiis quae ad fidem pertinent” (aquilo que pertence à fé). Tampouco tem um nexo tão intimo com alguma verdade revelada de molde a transformar a canonização numa verdade implícita e indiretamente revelada. Se a canonização em si não é de fide, menos ainda o será a declaração de que tal pessoa é um bem-aventurado do Céu. Ficaria no plano da “fé eclesiástica”; mas acontece que a assistência do Espírito Santo prometida por Nosso Senhor à sua Igreja é restrita a um exercício muito precisamente delimitado, o qual exclui que a canonização seja equivalente a uma definição dogmática. O fato de ser dito e repetido que a canonização deve ser assimilada a um “fato dogmático” (como a condenação do Augustinus) não é um argumento válido: aquilo que é gratuitamente asseverado, pode ser gratuitamente negado.

O arguto teólogo florentino acrescenta um outro argumento muito embaraçoso para os partidários da infalibilidade das canonizações, os quais negam ao mesmo tempo que ela exista para as beatificações. O raciocínio por absurdo acima aludido não explica, diz Mons. Gherardini, por que razão o carisma da infalibilidade seria válido para a canonização e não para a beatificação. Porque a Igreja não é uma soma de igrejas particulares, pois até a menor e mais recôndita comunidade católica num subterrâneo da China é a Igreja Católica. Portanto, uma decisão relativa a uma porção do rebanho (como a autorização do culto a um beato) atinge a Igreja inteira e tem, de si, uma extensão universal. Qual é, então, pergunta Mons. Gherardini, o sentido da distinção entre canonização e beatificação, baseada na ideia de que a segunda é local e a primeira é universal?

 

Consultor da Congregação para a Causa dos Santos: considerações teológicas e canônicas

Quase simultaneamente, Frei Daniel Ols O.P., professor na Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino, o Angelicum (Roma), e consultor da Congregação para a Causa dos Santos, escreveu um opúsculo intitulado Fundamentos teológicos do culto aos santos,(7) mediante o qual se inscreve abertamente na corrente que defende a não infalibilidade das canonizações.

Ele afirma que a canonização contém dois aspectos: de um lado, a afirmação dogmaticamente definível de que uma pessoa praticante da virtude cristã vai para o Céu; de outro lado, a aplicação dessa afirmação a uma pessoa particular. Ora, diz o Pe. Ols, se é facilmente demonstrável estar a proposição geral contida na Revelação, “é evidente que o fato de que Tizio ou Caio viveu santamente não está contido nela, nem explícita nem implicitamente”. E, de modo diferente da condenação dos erros num livro — necessária, para a preservação da fé dos fiéis, que eles saibam com certeza que tais heresias encontram-se nele —, no caso das canonizações não haveria um dano mortal para a fé se a Igreja vier a cometer um erro. Venerar alguém que está no Inferno não tem a mesma gravidade que seguir Lutero ou um outro herege. Assim sendo, a matéria da canonização não parece apta a ser matéria de infalibilidade, conclui o Pe. Ols.

A esse argumento de índole teológica, o Pe. Ols acrescenta outro, de natureza sociológica: se a razão da infalibilidade das canonizações é de evitar o risco de se apresentar um modelo falso de santidade, há beatos muito mais conhecidos e muito mais populares — até mesmo em locais distantes daqueles em que seu culto é permitido — do que grande número de santos… Por que, então, as beatificações não deveriam ser contempladas também elas, pelo carisma da infalibilidade?

Refutando a argumentação dos defensores da tese da infalibilidade de que o teor dos decretos de canonização provaria que os Papas pretendem engajar neles a sua infalibilidade, o Pe. Ols mostra que, entre tais decretos e as fórmulas de proclamação de um dogma (por exemplo, da Imaculada Conceição ou da Assunção de Nossa Senhora), há uma diferença substancial: na proclamação de um dogma, o Papa diz explicitamente que a verdade declarada deve ser crida com fé divina pelos fiéis como sendo uma verdade revelada cuja negação, mesmo que interior, acarreta a perda da fé e a excomunhão automática da Santa Igreja — isto é, dispensa um documento condenatório; enquanto que, no decreto de canonização, o Papa apenas afirma que a pessoa em questão fica inscrita no catálogo dos santos e deve ser cultuada pela Igreja universal, mas não diz nada no sentido de impor tal crença aos fiéis no seu foro interior. Apenas ameaça com penas eclesiásticas, no foro externo, a quem pronunciar-se publicamente contra tal canonização; mas essa é uma fórmula frequente em muitos outros decretos e bulas sem conotação doutrinária e que manifestamente não envolvem a infalibilidade.

Tanto Mons. Gherardini quanto o Pe. Ols — e outros estudiosos antes deles — aduzem também o argumento de que a Igreja retirou do calendário e suprimiu o culto de várias pessoas de cuja existência, com o avanço das pesquisas históricas, hoje não se tem mais certeza. O poder das chaves não autoriza o Papa — comentam — a colocar como santo na realidade da História alguém que não viveu como santo e, menos ainda, quem nem sequer viveu, porque jamais nasceu!

Finalmente, em certos ambientes tradicionalistas que se creem obrigados a sustentar a tese infalibilista comum em manuais de teologia pré-conciliares, circulam dois estudos do Pe. Jean-Michel Gleize, da Fraternidade São Pio X, que revelam as deficiências dos atuais processos de canonização e até a mudança que houve no próprio conceito de santidade, assim como o caráter colegial que se tem dado aos processos, com larga participação das dioceses. O que, no parecer do sacerdote lefebvrista, acarretaria a não infalibilidade do decreto que resulta de tais processos, por uma deficiência da vontade de definir do Papa — condição indispensável para uma definição ex cathedra.

 

A posição sapiencial de Santo Tomás de Aquino a respeito da questão

Santo Tomás de Aquino

Dado que o Magistério oficial não se pronunciou de modo definitivo sobre a falibilidade ou infalibilidade das canonizações e que há uma certa divergência entre os teólogos — dissentimento que está, aliás, aumentando, visto o número de teólogos que estão engrossando as fileiras da corrente até há pouco minoritária — a melhor atitude que os fiéis podem tomar, até que a Igreja se pronuncie, é a de seguir a solução de senso comum proposta por Santo Tomás de Aquino nos Quodlibet — questões doutrinárias diversas, que o Doutor Angélico defendeu nas universidades em que lecionou.

 

Tratando da questão “Sobre se todos os santos canonizados estão na glória ou há algum deles no Inferno”(8), o Doutor Angélico responde que é certo ser impossível que a Igreja erre em matéria de fé, mas que é possível que Ela erre no julgamento de fatos particulares, por causa de testemunhas falsas. A canonização, prossegue o santo, encontra-se “a meio caminho” entre os dois casos precedentes, dado que a honra tributada aos santos é de certa maneira uma profissão de fé (na verdade que as pessoas que morrem na amizade de Deus gozam da glória eterna). Por isso, deve crer-se piamente, pie credendum est, que tampouco nesses casos erra o juízo da Igreja.

O Pe. Ols destaca a precisão dos termos empregados por Santo Tomás. Ao falar de matéria de fé, ele diz “é certo que é impossível” que a Igreja erre; nas canonizações, apenas “pie credendum est”, expressão sempre usada por Santo Tomás quando “não existe nem pode existir [matéria] para um ensinamento infalível por carecer de base na Revelação”.

Trata-se então de adotar, em face das canonizações, a mesma atitude assumida diante dos ensinamentos doutrinários do Magistério ordinário não revestidos do carisma da infalibilidade: dá-se-lhes um assentimento religioso, por provirem de pastores assistidos pelo Espírito Santo, mas admite-se a possibilidade de um ou outro erro ocasional, até que a doutrina ensinada não seja definida de modo extraordinário ou que se torne patente que é uma doutrina que foi ensinada sempre, em todo lugar e por todos. Em caso de haver razões graves para se inferir que o ensinamento é contrário à Tradição, o fiel é autorizado a suspender seu assentimento interior e, por vezes, seu silêncio exterior obsequioso, para exprimir suas reservas.

No atual estado do desenvolvimento do Magistério a respeito do objeto secundário da infalibilidade, nada impede de se proceder da mesma maneira diante de canonizações controvertidas.

 

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1.     Suma Teológica,I, q. 23, at 7, ad 3.

2.     Deus pode ser conhecido com certeza pela luz da razão natural. Porém, Ele quis dar-nos um conhecimento sobrenatural de Si mesmo e de seus divinos desígnios naquilo que é de si inacessível à razão humana — por exemplo, a Santíssima Trindade — por meio da Revelação pública, a qual se realizou plenamente e completou-se na pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo e está contida nas Sagradas Escrituras e na Tradição oral recebida dos Apóstolos.

3.     Cfr. Umberto Betti, Dottrina della costituzione dommatica Pastor Æternus, in De doctrina Concilii Vaticani Primi, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 1969, p. 356.

4.     No que concerne à virtude sobrenatural da fé, a Teologia distingue entre as verdades reveladas por Deus, cujo assentimento funda-se diretamente sobre a fé na autoridade da Palavra de Deus— doutrinas de fide credenda — e as verdades propostas pela Igreja como irreformáveis, ainda que não reveladas, cujo assentimento funda-se na fé da assistência do Espírito Santo ao Magistério e na doutrina católica da infalibilidade do Magistério — doutrinas de fide tenenda.

5.     Précis de Théologie dogmatique,tradução francesa, Étitions Salvator, Mulhouse (Alto Reno), 1947,tomo I, pp. 57-59.

6.     http://chiesaepostconcilio.blogspot.fr/2012/02/mons-brunero-gherardini-su.html

7.     http://www.scribd.com/doc/47381315/OLS-Fond-Amen-Ti-Teologici-Del-Culto-Dei-Santi

8.     http://www.corpusthomisticum.org/q09.html, questio 8.

 

 

FONTE: 

Revista Catolicismo, n° 759 – Março de 2014 – Ano LXIV (Matéria extraída do endereço eletrônico:

http://www.catolicismo.com.br/materia/materia.cfm/idmat/24BA012A-AF4F-6528-05D84D310D562F20/mes/Março2014, acessada em 6 de Abril de 2014.