O papa e o doutor privado

Postado em 14-05-2010

Gederson Falcometa

O Concílio Vaticano II, para iluminar o mundo, eclipsou a tradição da Igreja e, portanto, sua própria identidade (da Igreja). Recentemente na polêmica quanto à declaração do Papa, contida no livro “Luz do mundo”, escrito pelo jornalísta Peter Seewald, vimos claramente o avançar deste eclipse. Podemos dizer que a declaração acerca da questão das camisinhas, apresenta efetivamente, uma “Luz para o mundo” e aumenta as trevas da Igreja destes últimos 45 anos. Não pela declarações da camisinha em si, mas pela própria postura do Papa, em exercitar seu magistério privado, em contradição com seu próprio magistério petrino, bem como com o magistério de seus predecessores. Isto é notável no conjunto das obras de Bento XVI, como doutor privado.

Anteriormente ao livro “Luz do mundo”, ele escrevera o prefácio da obra “Porque devemos-nos dizer cristãos”, do Senador liberal italiano, Marcelo Pera, que é uma apologia da “identidade liberal” do cristianismo. Naquela ocasião, o Papa escreveu o seguinte:

“Caro Senador Pera, nestes dias pude ler o seu novo livro Porque devemos dizer-nos cristãos. Foi para mim uma leitura fascinante. Com um conhecimento estupendo das fontes e com uma lógica cogente, V. Exa. analisa a essência do liberalismo a partir de seus fundamentos, mostrando que à essência do liberalismo pertence seu radicamento na imagem cristã de Deus: a sua relação com Deus de quem o homem é imagem e de quem recebemos o dom da liberdade. Com uma lógica irrefutávelV. Exa. faz ver que o liberalismo perde a sua base e destrói a si mesmo, se abandona esse seu fundamento. Não menos impressionado fiquei por sua análise da liberdade e pela análise da pluriculturalidade na qual V.Exa. mostra a contradição interna deste conceito e portanto a sua impossibilidade política e cultural. De importância fundamental é sua análise do que podem ser a Europa e uma Constituição européia na qual a Europa não se trasforme numa realidade cosmopolita, mas encontre, a partir de seu fundamento cristão-liberal, a sua própria identidade. Particularmente significativa é também para mim a sua análise dos conceitos de diálogo interreligioso e intercultural.” (Bento XVI: o diálogo entre as religiões não é possível. Não se pode colocar a fé entre parênteses –Prefácio ao livro Porque devemos nos dizer cristãos – Marcelo Pera – Para ver a integra do texto http://www.montfort.org.br/index.php?artigo=sao-pedro-anzol-rede&lang=bra&secao=veritas&subsecao=religiao)

Ora, aqui não se podem alegar distorções, instrumentalizações ou retiradas de contexto do texto pela imprensa.  As afirmações contidas aqui estão em ruptura com mais de 200 anos de condenações magisteriais do liberalismo, fulminadas pelo magistério da Igreja, em sua forma tradicional. Os Papas anteriores ao CVII nunca aceitaram o liberalismo como base do Cristianismo. Assim, quando se faz uma apologia do liberalismo, como radicamento da identidade cristã, a fé já foi colocada entre parênteses.  Não há que se dizer que o diálogo entre as religiões não é possível, pois o diálogo com o liberalismo, é também o diálogo com uma religição. Será que a lógica irrefutável de Marcelo Pera, também refuta os pontífices que condenaram o liberalismo? Como não ver neste prefácio, o exercício da hermenêutica da ruptura, tão condenada pelo próprio Papa, enquanto Papa? Será que também existe uma interpretação do Papa para o Concílio e outra interpretação diametralmente oposta, como doutor privado?

Para entendermos a postura do Papa enquanto Papa e do Papa enquanto doutor privado, é preciso ir até uma outra obra sua (sempre como doutor privado), que ele escreveu sobre o Papado,  intitulada L’elogio della coscienza: la verità interroga il cuore – Bento XVI. Nesta obra, ele tenta explicar o significado do papado e para isso se utiliza de uma frase do recém beatificado cardeal Newman (século XIX), onde afirma o beato: “Certamente se eu devesse levar a religião a um brinde depois do almoço – coisa que não é muito indicado fazer – então eu brindaria ao papa. Mas primeiro pela consciência, depois pelo papa”. Assim, ao declarar, o que declarou sobre a camisinha, pode-se dizer, ele brindou pela sua consciência. Mas após este brinde, não há mais espaço para se brindar pelo Papa, existe tão somente a ressaca, pelo brinde à própria consciência, ou seja, ao doutorado privado, exercido pela consciência, pelo qual o Papa não tem jurisdição. Convenhamos, se brindamos primeiramente a nossa consciência, para depois brindarmos pelo Papa, a primazia de jurisdição passa à nossa consciência e se reduz a primazia de jurisdição, que por direito divino pertence ao Papa, a uma primazia  de honra.

Em suma, ante a produção do Papa como doutor privado, só existe uma conclusão a que podemos chegar, a conclusão de que neste campo ele tem exercido um magistério paralelo. Perigoso para a fé e  unidade da Igreja, uma vez que como doutor privado, ele não expressa aquilo que diria como Papa e como Papa, não expressa aquilo que diz como doutor privado, ou seja, a auto-demolição continua e agora mais do que nunca, ela está visível. Seja na questão da camisinha, como no prefácio ao “Porque devemos-nos dizer cristãos e na obra sobre o papado, existe o exercício recíproco pelo Papa e pelo doutor privado, da hermenêutica da continuidade e da ruptura.