O perene e o circunstancial no pensamento de José Bonifácio de Andrada e Silva: o católico e o maçom

Postado em 30-12-2010

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

 Acabo de ler Projetos para o Brasil (Publifolha, São Paulo, 2000), uma boa compilação de escritos diversos de José Bonifácio de Andrada e Silva. José Bonifácio é um dos poucos homens públicos brasileiros que desde jovem me chamou a atenção e admirei.

Sabia que José Bonifácio era o responsável pelo bom sucesso do processo de independência do Brasil em 1822. Sabia, como qualquer brasileiro, que tinha tido um tremendo conflito com D. Pedro I e vítima de injustiça. Sabia que a causa do conflito era sua defesa de uma monarquia constitucional, à inglesa, ameaçada pelo pendor absolutista do nosso primeiro imperador. Sabia também que era um homem inteligente, culto, fino, de boa família, mas não sabia que era um grande estadista, um pensador, um homem que tinha, realmente, um projeto para a nação que começava a engatinhar.

Há varias coisas a considerar a respeito de Projetos do Brasil. Em primeiro lugar, deve-se dizer que se trata de escritos esparsos, de notas pessoais, que não se destinavam à publicação, de modo que apresentam um tom muito intimista e pessoal.

José Bonifácio expressa uma visão abrangente, perspicaz, dos problemas e  desafios  do Brasil de então, visão que conserva uma atualidade impressionante. Percebia que o Brasil era um país completamente heterogêneo, com grupos humanos marginalizados, como os negros e índios, além de imensas regiões isoladas. Em poucas palavras, o Brasil tinha-se constituído um Estado independente em virtude de uma crise política, sem que de fato houvesse uma nação brasileira. Esta tinha de ser construída, com muita prudência e sabedoria, qualidades que distinguiam o caráter do patriarca da independência.

Via com clareza o problema da escravatura. Propugnava pelo fim do tráfico negreiro e pela abolição gradual do cativeiro. Denunciava com agudeza os males morais decorrentes do regime escravocrata. A escravidão, dizia, produz uma degradação geral da sociedade, favorecendo o surgimento de todos os vícios. Queria a integração dos índios à civilização. Combatia as injustiças cometidas contra ambas etnias, silvícolas e negros africanos, dizendo que os reis de Portugal tinham tentado defender os primeiros, mas tinham fomentado a exploração dos negros.

Como solução de tantos problemas, e visando à construção da nacionalidade, defendia a miscigenação, através da qual seria possível construir uma nação brasileira homogênea. E reconhecia a necessidade de, uma vez abolida a escravidão, garantir aos ex-escravos trabalho no campo por meio de uma reestruturação do sistema fundiário que corrigisse injustiças na distribuição da propriedade rural.

Ademais, José Bonifácio de Andrada e Silva tinha consciência da necessidade de preservar nossas florestas e rios, proteger a natureza em geral, destruída pela ignorância de um povo que não tinha conhecimento da ciência agrícola. Via igualmente os malefícios da monocultura da cana de açúcar e clamava pelo incentivo da agricultura, especialmente pela produção de alimentos essenciais, assim como pelo incentivo da piscicultura e apicultura.

Dava-se conta também da necessidade premente de fomentar a vida intelectual do país através da criação de escolas, fundação de jornais, etc.

Por outro lado, sob o aspecto político, a visão de José Bonifácio de Andrada e Silva é de uma sensatez e de um realismo admiráveis. Tendo conhecido de perto os horrores da Revolução Francesa – esteve na França poucos meses antes do regicídio – e vendo o perigo da anarquia revolucionária, queria para o Brasil uma monarquia constitucional, pois pensava que uma república seria incapaz de preservar a integridade do território do antigo império português na América, além de outros inúmeros males que grassavam nas republiquetas nascidas sobre as ruínas do antigo império espanhol e poderiam repetir-se no Brasil.

Cumpre dizer que, como maçom e iluminista, José Bonifácio de Andrada e Silva, não obstante sua defesa de uma monarquia constitucional, não esconde sua simpatia pelo despotismo esclarecido. Elogia os cognominados grandes da Rússia, Pedro e Catarina, bem como Frederico II da Prússia, chegando a dizer que, se D. Pedro I fosse como este último, ele lhe perdoaria as injustiças. Mas não poupa duras críticas ao caráter do príncipe, dizendo que era um sultão, que chegaria às mais baixas grosserias  da luxúria, a ponto de adquirir um coração insensível, incapaz de nutrir amizade e respeito por alguém.

Após a leitura tão edificante de Projetos para o Brasil, impõe-se a questão: o projeto de José Bonifácio para o Brasil era um projeto maçônico incompatível com nossa consciência moral e nossos valores católicos tradicionais e irrenunciáveis?

Sou pela negativa. Os princípios fundamentais do projeto do nosso patriarca são os princípios perenes da moral católica e do direito natural. Em várias páginas o patriarca diz que as bases de uma nação são a família, a religião e a propriedade privada. Seus argumentos mais contundentes contra a escravatura são de natureza teológica, porquanto diz que uma instituição tão desumana contradiz a lei do Evangelho.

É bem verdade que em várias páginas respinga um anticlericalismo maçônico, a zombaria dos padres e frades, mas sempre em razão de uma crítica legítima: a conivência do clero secular e religioso com a injustiça da escravidão. Por outro lado, enaltece o padre Vieira, paladino dos direitos dos índios e negros. É certo que tem um preconceito contra o celibato eclesiástico, compreensível pelo ambiente intelectual em que se formou e quem sabe justificado por maus exemplos que presenciou.

Terá formulado talvez um juízo injusto da obra de evangelização dos jesuítas junto aos indígenas. Mas é preciso reconhecer que não se trata de um assunto tão simples: por um lado, os jesuítas foram heróicos e beneméritos evangelizadores, defendendo e civilizando os índios, por outro lado, parece terem cometido um erro (assim dizem alguns críticos eruditos), mantendo-os em um estado infantil, não os preparando para viverem como homens adultos integrados na sociedade civil. Os jesuítas teriam tentado uma utopia na América.

Da leitura do texto de José Bonifácio de Andrada e Silva não resulta a conclusão, como pretende o autor do posfácio, Omar Ribeiro Thomas, de que o patriarca defendesse para a construção da nação brasileira uma ideologia iluminista, como se estivesse convicto de que bastavam as luzes da deusa Razão para a felicidade e progresso do Brasil. Se lia Voltaire, era porque estava na moda – como muitos hoje incensam cretinamente Saramago -, mas não porque dissesse com o ímpio francês ecrasez l’infame.

A ser correta a interpretação do sr. Ribeiro Thomas, como explicar que José Bonifacio, embora não fosse um católico fervoroso,  sublinhasse em várias passagens o valor da religião, a importância da catequese na educação da juventude (chega a falar da reza do terço de Nossa Senhora como parte da catequese dos índios!), tivesse a sensatez de propugnar por uma monarquia, e não fosse um republicano furibundo? Ademais, José Bonifacio distancia-se da ideologia maçônico-iluminista criticando os devaneios de Rousseau (o mito do bom selvagem) e formulando um juízo criterioso sobre a inquisição, ao dizer que esse tribunal em Portugal e na Espanha não agrediu a sociedade porque o ponto de honra era ser ortodoxo.

Em suma, Projetos para o Brasil revelam um homem de um bom senso extraordinário, muito distinto de um ideólogo iluminista revolucionário ou mesmo reformista. Revelam um homem dotado de notável prudência, dócil à realidade, consciente da importância dos valores tradicionais para a saúde de uma sociedade. Sem dúvida, José Bonifácio de Andrada e Silva estava influenciado pelo iluminismo à portuguesa, mas o argumento substancial  de todo o seu discurso expressa as constantes da civilização na busca do aperfeiçoamento das instituições sociais e da elevação moral do homem. O  acidental e circunstancial, que não compromete o valor dos seus escritos, são algumas diatribes sectárias de anticlericalismo e antijesuitismo, que alguns mais tarde  seriam declaradas por José de Alencar, em célebre discurso contra a maçonaria e em defesa do Estado confessional,  como relíquias de um passado morto.

Oxalá a figura exponencial do patriarca da Independência inspirasse os nossos políticos de hoje a lutar pela defesa dos valores morais da família brasileira, pela libertação dos novos escravos, os jovens usuários de drogas, explorados pelos traficantes, tão execráveis quanto os antigos mercadores do tráfico negreiro. Oxalá os ajudasse a ver a necessidade da educação religiosa e moral da juventude. Oxalá os encorajasse na defesa da propriedade privada, sobretudo da propriedade rural, vilipendiada pelos criminosos baderneiros do MST acobertados pelo governo petista.

Oxalá nos ensinasse a todos brasileiros a edificar instituições políticas em harmonia com nossas raízes históricas.

Anápolis, 30 de dezembro de 2010.