O problema da conciliação entre livre arbítrio e Providência Divina na filosofia da história de Santo Agostinho e Bossuet

Postado em 01-12-2007

Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa

Anápolis, 2007

Introdução

Neste trabalho pretendo examinar o problema da providência divina e do livre arbítrio na filosofia da história de Santo Agostinho e Bossuet.

É preciso que se diga inicialmente que este trabalho parte do material recolhido e estudado exaustivamente pelos alunos do grupo de pesquisa orientado por mim durante o ano de 2007.

Com base na leitura de excertos d’A cidade de Deus de Santo Agostinho e de Discursos sobre a história universal de Bossuet, pôde-se chegarà conclusão de que ambos pensadores, salvo investigação mais acurada a ser desenvolvida ulteriormente, não tratam de forma sistemática do problema do livre arbítrio humano em face da providência divina (Recorde-se, entretanto, que Santo Agostinho tratou ex professo do tema do livre arbítrio em sua obra De libero arbítrio, mas essa obra não foi objeto de leitura por parte dos nossos alunos, devido à falta de tempo).

Por esse motivo, julgo oportuno esclarecer como Deus move a vontade humana, bem como a dependência das causas segundas em relação à causa primeira, recorrendo a alguns textos de Santo Tomás de Aquino, de maneira que o problema da providência divina na filosofia da história de Santo Agostinho e Bossuet fique melhor elucidado. A propósito de Santo Tomás devo dizer que só encontrei um artigo da Suma Teológica que tem importância direta para a filosofia da história. Na terceira parte da Suma Teológica, q. 1, artigos 5 e 6, Santo Tomás pergunta sobre a conveniência da encarnação do Verbo no principio de gênero humano, logo após o pecado, ou da sua dilação para o fim dos tempos. Como se verá na conclusão deste trabalho, a resposta do Doutor Angélico lança uma luz extraordinária para uma especulação filosófica cristã sobre a história.

 

Se Deus move a vontade humana, existe livre arbítrio?
A resposta de Santo Tomás ao problema

Antes de examinar a concepção da divina providência na condução da história segundo Santo Agostinho e Bossuet, convém ouvir o que Santo Tomás diz sobre o livre arbítrio e a moção da vontade humana por Deus.

Na questão 83, a. 1º da primeira parte da Suma, Santo Tomás explica o verdadeiro alcance do livre arbítrio do homem comentando aquelas tremendas palavras do apóstolo São Paulo “Não faço o bem que quero mas o mal que aborreço” (Rom. 7, 15). Diz que o apetite sensível , ainda que obedeça à razão, pode entretanto em algo repugnar desejando contra a razão. E interpretando outra passagem do apóstolo que diz “Não é obra de quem quer ou de quem corre, mas de Deus que usa de misericórdia” (Rom. 9, 16), diz que essa passagem não significa que o homem não tenha livre arbítrio, mas que o livre arbítrio não é suficiente se não é movido e auxiliado por Deus.

A meu ver, porém, a demonstração do livre arbítrio desenvolvida por Santo Tomás na referida questão, ao menos em sua parte inicial, oferece certa dificuldade, assemelhando-se a uma petição de princípio. Com efeito, diz ele que se o homem não tivesse livre arbítrio seriam inúteis os conselhos, as exortações, preceitos, proibições, prêmios e castigos. Ora, tudo isto não é prova do livre arbítrio, mas práticas que supõem sua existência. Durante séculos a humanidade observou certas práticas que se revelaram depois infundadas. A dificuldade do argumento cresce quando Santo Tomás compara a conduta do homem com a dos seres desprovidos de juízo e dos animais brutos que agem com juízo mas não livre, como a ovelha que foge do lobo, não por um discurso da inteligência, mas por instinto natural. O homem, ao contrário, – diz ele – age conforme juízo, pois pela virtude cognitiva julga que deve fugir ou prosseguir.

Como se vê, trata-se de uma liberdade, por assim dizer, não só ligada pela lei moral mas limitada pelas circunstâncias. Minha ação é minha mas não só minha; é minha e das minhas circunstâncias. Um pensador dirá mais tarde: eu sou eu e mais as minhas circunstâncias.

O livre arbítrio é verdade de fé católica, mas sua demonstração não é tão simples. Com muita prudência o Catecismo Maior de São Pio X cinge-se a dizer com poucas palavras : “Explicai com um exemplo a liberdade humana. Resposta: Se eu disser voluntariamente uma mentira, sinto que poderia deixar de dizê-la, e calar-me, e que poderia também falar de outro modo, dizendo a verdade. (o. c. q.54).

De qualquer modo, é um tema espinhoso que levou o heresiarca Martinho Lutero a dizer que o livre arbítrio era uma invenção de Satanás na Igreja de Deus. Hoje, então, com o avanço da psiquiatria e da neurofisiologia, a questão do livre arbítrio se complica ainda mais.

Explica Santo Tomás na questão 105, artigo 4 da primeira parte da Suma Teológica, baseando-se na autoridade da Sagrada Escritura (Deus opera em nós o querer e o fazer Fil. 2, 13), que Deus move a vontade do homem sem coação. Argumenta que tudo aquilo que é movido por outro se diz coagido se é movido contra sua própria inclinação, mas se é movido por outro que lhe dá sua inclinação não se diz coagido, como uma pedra atirada do alto. Assim, Deus, movendo a vontade, não a coage, porque lhe dá sua própria inclinação (ad primum).

Aplicada ao problema da história, esta noção suscita inúmeros questionamentos. Com efeito, no governo divino do mundo é de supor que o Criador ordene os seres livres livremente a um fim último condizente com sua natureza de seres racionais; é de supor que os ordene a um aperfeiçoamento pela consecução de seu fim. Ora, se a humanidade, como se vê hoje, se afasta de Deus e não tem nenhuma inclinação para o seu fim último, deve-se perguntar que providência Deus exerce sobre os homens ou a que se reduz a moção divina sobre a vontade humana. Ou ainda qual a extensão da resistência do homem ao plano divino. Causa vertigem pensar que durante séculos não só homens individualmente considerados, mas sociedades inteiras, se organizam contra o governo divino sobre o mundo.

Ainda na primeira parte da Suma Teológica q. 22, a. 4, Santo Tomás formula uma questão que nos esclarece o problema da relação entre livre arbítrio e providência divina, bem como nos aplaina o caminho para entendimento da relação entre a causa primeira e os agentes livres. Pergunta Santo Tomás se a providência impõe necessidade aos acontecimentos previstos. Na resposta diz que a providência não impõe necessidade a todas as coisas excluindo a contingência. Pois, afora a bondade divina, que é um fim separado das coisas, o principal bem existente nas coisas é a perfeição do universo. Ora, esse não se realizaria se não se encontrassem todos os graus de ser nas coisas. De onde, pertence à divina providência produzir todos os graus de ser. Mas para certos efeitos preparou causas necessárias, de maneira que necessariamente se produzissem; para outros, entretanto, causas contingentes, de maneira que se produzissem de forma contingente, segundo a condição das causas segundas.

Como se pode observar, essa consideração de Santo Tomás lança um raio de luz esplêndido sobre o problema que nos ocupa. Aplicado à história, seu pensamento nos faz ver que a Providência Divina abrange todos os fatos, conduzindo todos os acontecimentos, grandes ou pequenos, todas as vicissitudes humanas a um fim, pois que é próprio da providência ordenar as coisas a um fim. E tudo isso se concilia perfeitamente com a realidade do livre arbítrio do homem, o qual também está sob o alcance da providência. O Doutor Angélico esclarece ainda na mesma questão que o efeito da divina providência não é só de um modo, mas pode ser de modo necessário ou contingente, isto é, tudo aquilo que a providência dispõe que se produza de forma necessária e infalivelmente assim o será e tudo aquilo que a providência dispõe que seja produzido de forma contingente assim o será.

Sempre na mesma questão 22, a. 2, Santo Tomás pergunta se todas as coisas estão sujeitas à divina providência e levanta uma dificuldade a uma resposta afirmativa, dizendo que aquilo que é deixado a si mesmo não está submetido à providência de um governante. Ora, diz a Sagrada Escritura que Deus, no princípio, criou o homem e deixou-o em mão de seu próprio conselho, especialmente os ímpios, conforme o salmo: abandonou-os aos desejos dos seus corações. Portanto, nem todas as coisas estão sujeitas à providência divina.

Resolvendo esta dificuldade, diz Santo Tomás que o fato de o homem ter sido deixado em mão de seu conselho não o exclui da divina providência, mas apenas mostra que sua vontade não está determinada a uma coisa. E conclui: como o ato do livre arbítrio se reduz a Deus como a sua causa, é necessário que tudo o que deriva do livre arbítrio esteja submetido à divina providência. Com efeito, a providência do homem está contida dentro da providência de Deus, como a causa particular dentro da causa universal. Deus exerce uma providência de um modo mais excelente sobre os justos, pois não permite que lhes aconteça nada que lhes impeça a salvação. Aos que amam a Deus tudo concorre para o bem (Rom. 8, 28).

Santo Tomás não se ocupou especificamente da filosofia da história, mas suas reflexões sobre a providência divina nos servem de ferramenta para apreciar melhor a contemplação da história por Santo Agostinho e Bossuet.

Por que admitir a providência divina apenas sobre a vida dos indivíduos e não sobre toda a história da humanidade? Por que admitir uma causa eficiente no princípio da criação e não uma causa final, ordenando todas as coisas, sejam elas materiais ou sejam os atos humanos com todas suas conseqüências, para a gloria do Criador? È claro que na vida
pessoal de cada um de nós é fácil descobrir a mão de Deus abrindo ou fechando caminhos e conduzindo-nos a um fim. A mesma facilidade não se encontra ao estudar a história. Por que Deus permitiu a Revolução Francesa? Por que Deus permitiu a barbárie do comunismo? Para conduzir a humanidade à democracia capitalista universal, onde a humanidade não terá outro ideal senão a consumo de bens materiais e uma licenciosidade desbragada?

Enfim, o que quero dizer é que, para nós cristãos, descobrir a vontade de Deus a respeito de cada um de nós é fácil. É a nossa santificação, conforme sua santa lei. Mas esquadrinhar a vontade de Deus a respeito da humanidade inteira não é tão simples, ainda que creiamos na Encarnação do Verbo, na fundação da Santa Igreja pelo Filho de Deus, a qual estão chamados a integrar os homens de todos os povos e culturas. Ainda que creiamos no Reino a ser entregue por Cristo a Deus Pai, não obstante todas essas verdades de fé que lançam luz sobre o mistério da história, não é com clareza que se vê a vontade de Deus cumprindo-se ao longo dos séculos. Sobretudo, nos tempos modernos tão calamitosos, onde a humanidade inteira parece ter declarado guerra a Deus e caminhar sem rumo.

Daí a valiosa distinção feita por Santo Tomás de Aquino na Suma Contra os Gentios: a vontade de Deus a respeito das criaturas se cumpre sempre com necessidade hipotética mas não com necessidade absoluta (capítulo 134). Diz ele: se Sócrates corre move-se. Aplicando esse conceito a história podemos interrogar-nos: se Deus quer a salvação da humanidade, quer também os meios necessários a tal fim. Enviou seu Filho que morreu por nós, fundou a Santa Igreja para continuar sua obra. Até aí a história, com todos os seus enigmas, não parece negar a existência de um plano divino. Mas se meditarmos sobre a modernidade, A cidade de Deus de Santo Agostinho e Os discursos sobre a história universal de Bossuet parecem obras a reclamar novos gênios que venham completá-las mostrando como o plano divino se mantém e se cumpre em nossos dias. Será que o número dos eleitos já está quase completo, de tal maneira que a vontade de Deus sobre a humanidade não se cumpre mais pela edificação de uma ordem cristã, por que se Deus quisesse a salvação de muitos hoje os meios seriam mais disponíveis?

 

O problema em Santo Agostinho e Bossuet

Como vimos em nosso curso, a partir de excertos das obras dos referidos autores, há diferenças entre eles no que concerne à interpretação da história à luz da Providência Divina. Ambos a admitem, mas enquanto Santo Agostinho sempre recorre às verdades de fé ou às Sagradas Escrituras para examinar a história com uma visão sobrenatural, vendo a mão de Deus em todos os acontecimentos, sem se preocupar muito em analisar as causas segundas naturais que poderiam explicar mais racionalmente a história, Bossuet sublinha a necessidade de investigar os acontecimentos da história a partir do próprio homem em seu agir livre.

Santo Agostinho diz que o império romano foi disposto pelo verdadeiro Deus, de quem procede toda potestade e cuja providência rege todas as coisas. Diz que a duração e o desenlace das guerras dependem do juízo de Deus. Sublinha que os bens terrenos Deus os dá aos bons e aos maus indiferentemente como quer e enquanto quer, mas os bens eternos os reserva aos bons. Ao contrário, Bossuet, embora concordando com Santo Agostinho ao dizer que as revoluções dos impérios são determinadas pela providência e servem para humilhar os príncipes, frisa que nem sempre declara Deus as suas vontades pelos seus profetas no tocante aos reis e às monarquias que ele exalta ou aniquila (o. c. p. 434, 439). Por isso o preceptor do delfim enfatiza a necessidade de estudar as causas do progresso e da decadência dos impérios.

Para Santo Agostinho, é patente que o homem tem livre arbítrio, não havendo nenhum determinismo na história da humanidade em virtude da posição dos astros. Mas sua argumentação não explica o moção do livre arbítrio pela causa primeira, limitando-se a refutar o maniqueísmo e metempsicose O problema, para ele, são as conseqüências do pecado original que arrastam a humanidade para a busca dos bens inferiores, fazendo-a edificar a cidade do homem, a cidade do amor próprio desordenado que despreza o amor de Deus. “Que te vale conhecer se não és capaz de escolher?” – pergunta ele comentando um salmo. Como se vê, o livre arbítrio do homem é debilitado pela concupiscência. De tal impotência o homem só pode ser salvo pelo auxílio de graça divina que o atrai para um fim sobrenatural que excede sua capacidade. Toda a sua meditação da história tem Cristo no centro. Tudo converge para Cristo e a história tem um fim ultraterreno, porque é a história do homem que não foi criado para este mundo. Sendo assim, sua reflexão versa mais sobre o plano divino da salvação da humanidade.

Ao contrário, Bossuet (1627-1704) tem em vista um fim político, a formação intelectual e moral de um príncipe da cristandade. Por isso, suas considerações têm outra perspectiva: as lições que o príncipe herdeiro poderia tirar da história para ser um bom monarca. Na visão de Bossuet a providência divina é o próprio Deus remunerador que premia e castiga não só na outra vida mas também na terra segundo as virtudes e vícios dos governantes e dos povos. Pergunta Bossuet: “Porque, se os homens aprendem a moderar seus impulsos, vendo morrer os reis, quanto mais vendo morrer os próprios reinos; e donde se poderá receber lição mais bela sobre a vaidade das grandezas humanas?” (o.c. 440)

Outra consideração que se poderia fazer acerca de ambos autores é que tanto Santo Agostinho quanto Bossuet não atingem um rigor e precisão dos conceitos, que são característicos do método escolástico, pois desenvolvem suas reflexões em estilo literário de grande beleza e elegância. Neste sentido, a arte foi em detrimento da ciência. Já em Santo Tomás alcança-se maior exatidão graças à ordem e às distinções do seu raciocínio que acorrenta a imaginação, em prejuízo de um estilo mais agradável e atraente para o homem moderno.

 

À guisa de conclusão

Considerando o processo de descristianização da sociedade que se acelera e avoluma nos últimos séculos, e levando em conta os princípios filosóficos examinados neste trabalho, cabe perguntar o que tem a dizer hoje uma filosofia ou teologia cristã da história. Não se trata de indagar pelo futuro, para onde vai a humanidade. Nenhum de nós aqui é profeta.

Mas é legítimo perguntar quais são os desígnios da providência divina ao permitir o acúmulo de iniqüidade sobre as ruínas da cristandade. Se seguirmos o método de Bossuet, antes de buscar uma causa sobrenatural para explicar tal inflexão da historia da civilização cristã, a apostasia tem apenas uma causa próxima: é resultado do avanço da ciência que lançou a religião no rol das superstições do passado. Não será necessário investigar mais e tentar descobrir uma causa mais alta. É a posição que prevalece hoje: Deus é, no máximo, uma hipótese inútil.

Como católico, tento analisar a história moderna marcada pela perda da fé de acordo com a visão de Santo Agostinho, procurando uma razão mais alta para explicar esse drama.

Vimos que Santo Tomás diz que Deus exerce uma providência especial sobre os justos. (Se os justos hoje são tão poucos, a providência sobre a nossa sociedade é bem limitada ou se resume a permitir-lhe que caminhe para a perdição.) Vimos que Deus quer nas criaturas um efeito de necessidade hipotética, não absoluta. Ora, se Deus quer a salvação da humanidade, Deus quer os meios necessários. (Não há dúvida que uma sociedade organizada conforme a lei natural é o meio próprio para alcançar a salvação) Se esses meios minguam é por que o plano de Deus sobre os tempos modernos é outro. É porque o número dos predestinados está quase completo ou completo e só falta completar-se a massa dos réprobos. Ou então porque Deus chama seus eleitos para alcançar a salvação em condições de extrema dificuldade.

Na questão referente ao tempo oportuno da Encarnação do Verbo, Santo Tomás formula a objeção de que, se Deus se tivesse encarnado no princípio da humanidade, logo após o pecado, um número muito maior de homens se teria salvado pelo conhecimento de Cristo, e responde a essa objeção falando do mistério da predestinação. E diz que se Deus se tivesse encarnado no fim dos tempos, a corrupção da humanidade teria chegado a tal grau que o conhecimento de Deus teria desaparecido da face da terra. Diz também, citando Santo Agostinho, que o tempo da Encarnação se compara ao tempo da juventude da humanidade que opera pelo vigor e fervor da fé.

Hoje, dada a apostasia generalizada, podemos dizer que vivemos a decrepitude da humanidade. Como interpretar os tempos de hoje? Deus exerce uma providência sobre os maus, simplesmente deixando-os no caminho da perdição?

Para encerrar estas reflexões ocorrem-me à memória as palavras do salmista: “Por que tumultuam as nações? Por que tramam os povos vãs conspirações? Erguem-se os reis da terra contra o Senhor e contra o seu Cristo. Aquele, porém, que mora nos céus, se ri. O Senhor os reduz ao ridículo. (Sl. 2, 1-4).