O ralliement de Leão XIII e o ralliement de Francisco I

Postado em 25-09-2015

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Acabo de ler um livro realmente precioso, Il Ralliement di Leone XIII – il falimento di un progetto pastorale, de autoria do professor Roberto de Mattei (Firenze, 2014).

Sabia que a política do ralliement de Leão XIII não era nada apreciada pelos católicos da tradição, sabia que tinha favorecido o surgimento da nefasta democracia cristã e do modernismo, mas achava que podia ser, apesar de tudo, uma questão meramente política, campo em que há muita opinião e quase nenhuma certeza. A referida obra do prof. de Mattei mostrou-me que a atitude de Leão XIII foi uma coisa muito mais séria e teve consequências muito negativas para a Igreja não só na França mas em todo o mundo católico. E para toda a civilização ocidental.

Rico em informações e análises agudas sobre a situação da Igreja na Itália após a formação do reino e na França sobretudo após a queda de Napoleão III em 1870, o livro diz, com base em sólida documentação, que o cardeal Pecci, futuro Leão XIII, foi um núncio apostólico desastrado em Bruxelas, um crítico severo de Pio IX, contrário à definição do dogma da Imaculada Conceição (embora dissesse que pessoalmente cresse em tal privilégio da Mãe de Deus, entendia que não era conveniente defini-lo dogmaticamente e acusar de heresia quem o negasse). Conta que, quando um católico lhe disse que era um milagre um pontificado tão longo como o de Pio IX, respondeu que o considerava um castigo do céu. Conta também que Pio IX o nomeou camerlengo porque havia uma tradição segundo a qual tal dignitário não era eleito papa e uma vez declarou: “Morrer não é nada, pior é saber que posso ser sucedido pelo cardeal Pecci.” O livro do professor de Mattei informa também que a eleição de Pecci foi festejada pela franco-maçonaria.

Além dessas informações curiosas, o livro é interessantíssimo na análise da política da Santa Sé após a queda do poder temporal dos papas e em face de toda a Europa nascida da Revolução Francesa. Diz que Pio IX recusava-se terminantemente a um entendimento com os governos liberais e maçônicos. Apoiava corajosamente os católicos na luta pelo restabelecimento dos governos monárquicos legítimos, pela restauração do Reinado Social de Cristo. E quanto à questão romana o livro do prof. de Mattei informa que surgiram então duas correntes propondo políticas diferentes para tentar restabelecer o poder temporal do papa, considerado essencial para o cumprimento de sua missão, além de ser um direito ao qual a Igreja não podia renunciar. Uma corrente julgava possível uma aproximação da Santa Sé em relação ao recém fundado reino da Itália, contando com o apoio do Império Austro-Húngaro e da Alemanha, para alcançar a restauração, ainda que parcial, do poder temporal da Igreja. Este parecia ser o caminho mais seguro e prudente a ser trilhado pela Igreja na busca de um restauração dos seus direitos.

A outra corrente, da qual compartilhava Leão XIII, entendia que era preferível tentar obter o apoio da Rússia e da República Francesa maçônica e anticlerical (coisa mais pueril não se pode excogitar!), porque julgava que era do interesse da França o fim do Reino da Itália.  Por essa política de aproximação da França, da Rússia e da Alemanha em detrimento do Império Austro-Húngaro e da Polônia, Leão XIII foi acusado por um diplomata de ter compromisso com Bismark e com a maçonaria francesa – informa o prof. De Mattei – e explica como mais tarde no conclave que elegeu o patriarca de Veneza,  cardeal Pawel Puzyna, de Cracóvia, se valeu do direito de veto do Imperador Francisco José para afastar da sucessão papal o cardeal Rampolla, o coadjuvante de Leão XIII na aventura do ralliement.

Na esperança de obter esse apoio da França, o papa promoveu a política do ralliement, obrigou os católicos franceses, que veneravam a antiga monarquia e nutriam sentimentos de fidelidade ao herdeiro do trono, o conde de Chambord, a aderir à república maçônica que perseguia ferozmente a Igreja. Leão XIII distinguia entre a forma de governo e a legislação. Dizia que a Igreja aceita todas as formas de governo legítimas. Mas não distinguia a questão tratada abstratamente e o problema político da França em concreto. Na verdade, a república francesa não era uma simples forma de governo como as outras, era expressão política da ideologia revolucionária maçônica anticristã. Era inútil e especiosa a distinção entre a forma de governo e a legislação.

O resultado do ralliement foi, com efeito, catastrófico. Promoveu a divisão e o enfraquecimento da resistência católica à perseguição maçônica. Nas eleições subsequentes ao ralliement, os católicos sofreram derrotas acachapantes nas urnas, a perseguição contra a Igreja recrudesceu, o inimigo passou a escarnecer da Igreja como se esta tivesse perdido sua dignidade e ficado covarde e oportunista. Foi uma ignomínia. São Pio X, eleito em 1903, deu-se logo conta da situação deprimente da Igreja na França, nomeou bispos valorosos e monárquicos. E chegou a declarar a um jornalista legitimista que lhe relatou as consequências da política seguida por Leão XIII: “Não se ganha nada. Enquanto não se discute a república, o governo está seguro de que a maioria será anticlerical.”

Na conclusão, o prof. de Mattei examina a questão sobre o “liberalismo” de Leão XIII. Além de dizer que Leão XIII foi, sobretudo, o papa do ralliement e não da Rerum Novarum ou da Aeterni Patris, com acuidade interpreta o significado do termo liberal. Quanto à doutrina, Leão XIII absolutamente não foi liberal, seu magistério está em perfeita continuidade com o dos seus predecessores na condenação dos erros modernos e foi seguido por seu sucessor São Pio XIII. Não obstante, pode-se dizer, segundo de Mattei, que ele tinha um espírito ou uma tendência liberal, no sentido de querer sempre uma conciliação ou uma preferência por concessões a um confronto com os inimigos da Igreja. E esse espírito ou tendência seria perceptível em seus sucessores Bento XV e Pio XI e triunfaria no Vaticano II.

(Na minha modesta opinião, o magistério de Leão XIII, talvez até mais profundo na apresentação dos princípios da doutrina católica e na condenação dos erros modernos que o de seus predecessores Gregório XVI (Mirari vos) e Pio IX (Sylllabus e Quanta Cura), não tem um tom tão enérgico e não é tão contundente no ataque aos inimigos da Igreja como nos termos empregados sobretudo na Mirari Vos.)

Ainda na conclusão o prof. de Mattei diz que o ralliement provocou a secularização de toda ação católica posterior. Por um lado, a direita católica (Action Française) já não pautaria sua ação fundamentada em princípios metafísicos, já não defenderia o reinado social de Cristo, mas defenderia uma monarquia apenas por razões sociológicas ou históricas conforme o empirismo organizador de Comte. Por outro lado, a esquerda católica desembocaria em uma política abertamente aconfessional, a democracia cristã, em colaboração com os comunistas, socialistas e maçons.

Para remate desta resenha de um livro tão admirável do prof. de Mattei, desejaria expressar só mais duas observações. a primeira é que o livro é muito esclarecedor ao apresentar as argumentações dos críticos do ralliement (críticos que viveram os dias do ralliement, como o bispo mons. Freppel, que fez ponderações agudas mas em vão ao papa Leão XIII), que tiveram uma viva consciência de que o que estava em jogo em tão não era apenas a questão da forma de governo  (república ou monarquia), mas a grande heresia política do mundo moderno: a soberania popular. O padre Charles Maignen disse que os inimigos da Igreja na França prefeririam uma monarquia parlamentar, democrática, baseada no erro da soberania popular, a uma república tradicional, católica, baseada no princípio do poder emanado de Deus e de uma ordem moral objetiva. E ressalta que não será possível nenhuma ação política eficaz enquanto a Igreja não condenar esse erro da democracia moderna e não convencer os homens de que estão enganados por essa ideologia revolucionária.

A outra observação que desejaria fazer é que me parece que hoje, sob Francisco I, vivemos um novo ralliement. Com efeito, assim como Leão XIII destituiu e removeu os bispos que dele divergiam e se empenhou em obrigar os católicos a engolir um regime tirânico e anticristão, assim também hoje Francisco I obriga os católicos a depor as armas, a não confrontar com os governos empenhados em legalizar o “casamento homossexual” e outras coisas aberrantes.

Mas há algo pior: enquanto Leão XIII se limitava a dizer aos católicos que aderissem à república e depois tentassem mudar a  legislação, Francisco I hoje parece dizer aos católicos que não só não se oponham a tais governos, mas aceitem as suas leis.

Anápolis, 25 de setembro de 2015.

Sexta-feira das têmporas de Setembro.