O valor do Concílio Vaticano II

Postado em 11-01-2018

Gustavo Corção

Parece-nos claro que o valor principal de um Concílio Ecumênico só pode ser medido com um critério essencialmente católico, o da aplicação do Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo para a salvação das almas, e não com qualquer critério tirado do mundo e da história.

No caso presente, se quisermos aquilatar esse valor, devemos começar por ouvir as vozes mais autorizadas a falar em nome do Concílio. Ouçamos pois mais uma vez a parte do Discurso de Encerramento do Concílio, onde se encontra uma definição da espiritualidade que inspirou aquele sínodo. Eis o texto já mais de uma vez transcrito em nossas colunas:

“A Religião do Deus que se fez homem encontrou-se com a religião — porque é uma religião — do homem que se faz Deus. Que aconteceu? Um choque, uma luta, uma condenação? Poderia ter acontecido, mas não aconteceu. A antiga história do samaritano foi a pauta da espiritualidade do Concílio. Uma simpatia imensa o penetrou todo”.

Quanto mais vezes ouvimos estas interrogações: “Que aconteceu? Um choque, uma luta, uma condenação?”, mais pueril nos parece a exigência do contexto inteiro do discurso, e até dos vários pronunciamentos do Papa Paulo VI, para a reta interpretação deste final de discurso do encerramento do Concílio.

Essas interrogações são feitas, evidentissimamente, para lembrar que outros papas e concílios se chocaram, com tais impiedades erigidas em sistema, lutaram contra as várias formas desta religião do homem que se faz Deus, condenaram severamente a revolução anarquista, o comunismo, os diversos socialismos e as maçonarias.

E quanto mais vezes ouvimos estas palavras de resposta: “Poderia ter acontecido, mas não aconteceu”, mais clara nos parece a intenção de bem marcar a reviravolta antropocêntrica que separa o Concílio Vaticano II de toda a anterior tradição católica, e que assim pretende defini-lo em termos de contradição, de inovação e até de censura de tudo o que se fez na Igreja durante vinte séculos.

O contexto dos fatos ocorridos durante o Concílio, e multiplicados depois do Concílio, está aí na memória de todos para confirmar que o Concílio trouxe efetivamente uma “simpatia imensa” por todas as impiedades da soberba humana erigidos em sistema, e correlatamente ostentou uma estranha indiferença pelas vítimas de tais perversidades.

Desde as primeiras sessões do Concílio observou-se a escandalosa recusa de reafirmação das condenações do comunismo, tornadas mais necessárias do que nunca em vista da torrencial infiltração da ideologia “intrinsecamente perversa, ímpia, monstruosa e desumana” (Divini Redemptoris, Pio XI, 1937) nos recintos da Igreja.

Mais tarde, nos cansamos de ver os pronunciamentos das conferências episcopais em favor das idéias comunistas e hostis aos governos que ousavam praticar a política de repressão dessa perversidade. E mais doloroso do que nenhum outro nos acode à memória o caso dos cruéis terroristas espanhóis condenados por Franco: as autoridades eclesiásticas publicaram ostensivamente sua imensa simpatia pelos condenados, depois da glacial indiferença em relação às numerosas vítimas inocentes das bombas.

A alusão feita à “antiga história do samaritano”, que teria sido a pauta da “espiritualidade do Concílio” não nos parece feliz. Como todos nós sabemos, a parábola do bom samaritano (Lc 10, 30) põe sua tônica na compaixão pela vítima da perversidade dos salteadores: “Um homem descia de Jerusalém à Jericó quando caiu em mãos de salteadores que o despojaram de tudo e, cobrindo-o de ferimentos, desapareceram, deixando-o quase morto. Aconteceu que passavam pela mesma estrada um sacerdote e um levita que, ao vê-lo, continuaram seu caminho. Porém, um samaritano em viagem passou perto dele e teve compaixão: aproximando-se, enfaixou suas feridas e nelas verteu óleo e vinho…” Evidentemente seria preciso fazer uma reforma profunda nesta parábolas para adaptá-la, com palavras atribuídas a Jesus, a uma assembléia de sacerdotes e levitas que, esquecidos das vítimas, sentem imensa simpatia pelos salteadores.

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Quando se ouvem mais uma vez aquelas palavras com que se encerrou o Concílio, é impossível evitar o estupor e o sofrimento que nos causa a reviravolta moral que, numa leitura superficial ou desatenta, poderá ter escapado. Insisto no termo “reviravolta moral” e não preciso buscar a elevada sabedoria da la Ilæ ou da lla llæ para respaldo de minha demonstração: colocando-a no nível do senso comum, creio para poder cabalmente demonstrar a existência de uma reviravolta moral nesse texto que enaltece o Concílio pelo fato de não se haver condenado o comunismo, a maçonaria, o liberalismo e demais facetas da reviravolta antropocêntrica, ou da religião do homem que se faz Deus. Sim, o Concílio dito “pastoral” é elogiado precisamente por não ter cumprido o mais grave dos deveres pastorais: o dever de defender o depósito sagrado e o dever de zelar pela salvação das almas, os quais exigem dos pastores uma amorosa intolerância e uma disposição de dar a vida por seu rebanho (Jo 10). Nesse sentido pode-se dizer que todos os concílios da Igreja foram pastorais, exceto o Vaticano II, que começou por um passe de mágica, com o qual fez o mundo inteiro engolir o termo pastoral, para encobrir seu caráter evolucionista e experimental.

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Simpatia imensa pelas maldades erigidas em sistema, pretendendo ser uma forma superior de bondade, é na verdade uma forma requintada de perversidade, porque contém duas graves injustiças e dois graves pecados contra a caridade: o 1° reside no esquecimento do mal imenso que aquelas perversidades difundem e na injustiça e descaridade cometidas contra as vítimas; o 2°, um pouco mais escondido, está na injustiça e descaridade que cometemos contra os perversos, os transviados, os criminosos, aos quais devemos a caridade, não a caridade afetiva, mas a efetiva que consiste na repressão e na punição que, para eles, serão o meio de acordar a consciência e de salvar a alma. Ao contrário, se os acariciamos com declarações de “imensa simpatia” cometemos a horrível impiedade de os tranqüilizar e os confirmar no pecado.

A “igreja pós-conciliar” apregoa em todos os tons essa reviravolta moral que é a síntese de todas as reviravoltas antropocêntricas. Rememore, leitor, os louvores que já ouviu dessa “igreja” que deixou os anátemas e as condenações e pense deles o que quiser: ponha a tolerância no vértice de todas as virtudes, diga dessa filosofia e dessa religião o que quiser, esteja à vontade no comunismo e na maçonaria – a única e última exigência verbal e moral a que me apego é a que me obriga a dizer que tal amolecimento está nos antípodas do cristianismo.

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Na verdade, a chamada “igreja pós-conciliar” traz desde o berço todas as rugas e manchas de velhice de um mundo em decomposição. Na verdade, sua tolerância, sua imensa simpatia por todas as aberrações armadas em sistemas disfarçam uma única intolerância que capitaliza contra aqueles que, em tempo e contratempo, querem guardar o depósito sagrado e salvar as almas que Jesus teve tanta sede no alto da cruz.

(O Globo, 18/12/1976. Revista Permanência n° 204-205 nov.-dez. 1985.)