Quando a tradição for redescoberta (para festejar João de Scantimburgo)

Postado em 30-11-2012

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

“Siento-me con una alma medieval y se me antoja que es medieval el alma de mi patria; que ha atravesado ésta, a la fuerza, por el Renacimiento, la Reforma y la Revolución.” (Unamuno)

As notícias e os comentários sobre o último conflito entre palestinos e judeus lançaram uma luz especial sobre a realidade sombria do mundo em que vivemos. Fizeram ver como é frágil a ordem internacional baseada em injustiças clamorosas. Realmente, as coisas não podem continuar como estão por muito tempo. Há um enorme potencial para um conflito de conseqüências incalculáveis.

A situação no Oriente Médio é insustentável e tornou-se muito mais grave após a tão festejada “Primavera Árabe”. Li o testemunho de um judeu que participou da fundação do Estado de Israel. Ele diz que tudo começou errado. Os primeiros judeus a instalar-se na Palestina não tiveram a simplicidade de desenvolver um processo de assimilação da cultura local e de aclimatação. Procediam, em geral, de guetos da Polônia e da Rússia. Quando chegaram à Palestina, adquiriram as terras de fazendeiros árabes ricos que, em seguida, se mudaram para a Europa, deixando lá pobres camponeses. E os judeus não souberam entrar em sintonia com esses camponeses que ali estavam havia tempos com uma cultura própria. Com o tempo, o conflito seria inevitável, os ressentimentos cresceriam. É verdade que houve judeus sensatos que perceberam o problema, quiseram organizar um Estado binacional, opuseram-se ao sionismo. Mas não foram ouvidos.

O resultado é o problema que hoje aflige o mundo inteiro e não há perspectivas de solução. Pelo contrário. Israel se militariza cada vez mais, os custos de proteção contra os ataques dos palestinos são astronômicos. Até quando os Estados Unidos vão ajudar Israel? Israel está condenado a viver em estado de tensão e alerta, pois os palestinos começam a receber armamentos mais sofisticados por meio da África. Enfim há muita coisa que escapa do controle das autoridades e representa uma séria ameaça à paz mundial.

Só nos resta rogar que se apresse o cumprimento da professia da conversão dos judeus, conforme São Paulo Apóstolo. Será um penhor de paz. A propósito, um amigo contou-me que, consultando um médico judeu, este espantou-se porque o tinha na conta de antissemita. Meu amigo disse-lhe que absolutmente não era antissemita, mas havia apenas uma diferença religiosa e acreditava na conversão final dos judeus. O médico disse que achava que no final acabaria ocorrendo isso mesmo!

Mas não é apenas o conflito entre árabes e israelenses que indica a debilidade deste nosso mundo que tenta organizar-se sem Deus e contra a Igreja. Outro dia li uma notícia que nos obriga a pensar: a China, hoje, representa um fator de incerteza muito maior do que a guerra fria; a segunda maior economia do mundo é tão vulnerável a uma série de problemas das mais diversas ordens, que se ela se afundar numa crise, haverá uma catástrofe mundial.

Desde o Vaticano II costumou-se falar da necessidade de perscrutar os sinais dos tempos. Oxalá as autoridades religiosas e políticas se convencessem de que a via trilhada pelas nações da antiga cristandade, desde o fim da Segunda Guerra, é equivocada, ilusória, e conduz a humanidade à ruina. A ONU assumiu o lugar da Igreja como guia das nações. E o pior é que isto foi saudado pelas autoridades eclesiásticas.

Não nos esqueçamos das profecias de Nossa Senhora de Fátima. As profecias de Fátima não se encerraram com a Segunda Guerra Mundial e a expansão do comunismo. Fala-se da terceira parte do segredo de Fátima que não teria sido inteiramente revelado. Na opinião de bons estudiosos do assunto, a terceira parte seria referente a uma terrível crise desencadeada na Igreja pelo Vaticano II. E eu, de minha parte, acrescento que a Divina Providência parece sinalizar para a humanidade uma crise inaudita que seria o maior castigo a precipitar-se sobre a humanidade materialista e chafurdada no pecado.

Depois de tanto sofrimento, de tantos erros e cabeçadas, a humanbidade será obrigada a refletir, a redescobrir seus valores,suas raízes, suas tradições. O homem será obrigado a voltar-se para a metafísica e a respeitar a sua própria natureza, reconhecendo o domínio de Deus sobre todas as coisas. Podemos esperar uma revalorização da história e da tradição. Daí a necessidade de a nossa juventude familiarizar-se com bons autores que ralmente conheceram e amaram a alma nacional e cultivaram o espírito de cristandade. Serãos eles os faróis que os iluminarão em uma busca serena e amorosa da realidade do Brasil e da antiga cristandade defigurados pelo espírito revolucionário do liberalismo e do esquerdismo.

Para encerrar essas mal traçadas linhas em que externo minha angústia, desejaria resenhar brevemente um belo livro do acadêmico João de Scantimburgo, “Os Paulistas”. Embora publicado há quase trinta anos, o livro conserva plenamente seu valor, ainda que algumas informações sobre dados econômicos estejam desatualizdas.

Em “Os Paulistas”, João de Scantimburgo explana a formação e desenvolvimento do Estado de S. Paulo do ponto de vista social, político, cultural, religioso e econômico.

O autor refuta cabalmente a tese marxista do primado do fator econômico na formação de um povo, provando como o ideal de cristandade guiou os primeiros portugueses (procedentes de uma genuína nobreza cristã do Reino) na formação da sociedade paulista. Foi realmente o desejo de dilatar a fé e o império que comandou a empresa da famosa caravela de Martim Afonso de Sousa na capitania de São Vicente. Os reis de Portugal eram os grão-mestres da Ordem de Cristo.

O autor contrapõe-se com elegância à visão de Vianna Moog (Bandeirantes e Pioneiros) sobre a epopéia das Bandeiras, mostrando, documentadamente, como elas consitutiam missões militares bem organizdas com espirito de conquista, sim, mas também com um sincero espírito religioso. Não eram bandos de aventureiros e criminosos desprovidos de qualquer senso moral; pelo contrário, eram homens com grande senso de sacrifício e conscientes de um dever e de uma missão a ser cumprida para o bem do Reino e da Cristandade. Scantimburgo explica os conflitos entre os bandeirantes e os jesuítas e espanhóis. Analisa também o caráter peculiar do homem português, os fatores que contribuiram para a formação de um espírito aberto à miscigenação, tão favorável ao nascimento de uma “raça cósmica”. Faz justiça à Igreja e à monarquia bragantina, ambas as institutições que deram origem à grande nação brasileira. Realmente, pensar que um país tão pequeno como Portugal, apesar da escassez de religiosos, foi capaz de catequizar os índios e negros e plasmar a alma brasileira é algo que só se explica se admitirmos uma missão providencial do Reino de Portugal sobre a cristandade.

Scantimburgo analisa também a política do “sigilo nos descobrimentos”, com especial atenção para debatida questão sobre se o Brasil foi descoberto por acaso ou não. São quase poéticas as suas páginas sobre os pinhais de Leiria plantados por D. Dinis e a construção das caravelas. Scantimburgo recorda que as expedições ultramarinas de Portugal foram ruinosas para o tesouro do reino, mas Portugal ligava ao móvel econômico o fim espiritual. Diz ele: “Estropeou-se o erário português, mas Portugal ralizou uma aventura soberba na história.”

No capítulo sobre a formação da gente do Planalto faz úteis esclarecimentos sobre o conceito de nobreza, removendo um cojunto de erros e calúnias fomentados pelo espírito revolucionário. Explica a decadência da nobreza cristã sob o Antigo Regime ao mesmo tempo que teoriza o desejo natural de nobilitação: “um caminhar no itinerário da nobreza traduz um processo de todos os esforços das naturezas equilibradas e normais.” E cita Antonio Sardinha: “A nobreza é principalmente um processo psicológico, uma fixação de caráter.” É verdade que tudo isso parece anacrônico e absurdo no Brasil de hoje. No mesmo capítulo, há uma boa explicação de como se deu a expansão do território brasileiro para além das fronteiras com a Espanha. A grande contribuição do paulista Alexandre de Gusmão no Tratado de Madri em 1750 é bem recordada, dizendo o autor que, graças a ele,as nossas fronteiras com as colônias espanholas passaram a abarcar mais de oito milhões de quilômetros quadrados.

Haveria muito que dizer sobre o belo livro de João de Scantimburgo. Só acrescento mais dois tópicos que me parecem de especial valor: sua reconstituição histórica dos motivos que justificaram a ação de toda a sociedade paulista (não apenas a “elite” como gosta de dizer a esquerda cretina) na revolução constitucionalista de 1932, bem como a análise do autor sobre desenvolvimento econômico de São Paulo a partir da cultura cafeeira. Neste tópico, o autor critica a nefasta intervenção do Estado na vida econômica a partir do Convênio de Taubaté e mostra a irresponsabilidade dos nossos políticos que permitiram que o Brasil perdesse uma fonte de divisas incomparável como o café, o qual possibilitou a industrialização do Brasil.

Em conclusão desta modesta resenha, além recomendar a eventual amigo leitor o estudo da obra de João de Scantimburgo, desejaria apontar um senão do autor. Infelizmente, ele aprecia a filosofia da ação de Maurice Blondel. Ora, esse pensador do “vitalismo” rejeita a metafísica do ser, apega-se ao mobilismo, ao dinamismo de uma vida entendida como consciência criadora de novidades, propõe uma falsa definição da verdade como adequação do intelecto à vida. Blondel é o heresiarca do modernismo condenado por São Pio X e criticado pelo próprio Scantimburgo na referida obra “Os Paulistas”. Realmente, ninguém é perfeito nesta terra!

Anápolis, 30 de novembro de 2012

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