Roma e Ecône à luz de Christopher Dawson

Postado em 11-07-2012

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Multiplicam-se a cada dia as análises sobre as relações entre a Fraternidade São Pio X e Roma. Como não conheço os documentos referentes aos colóquios entres as partes com vista a um reconhecimento canônico da obra fundada por Mons. Marcel Lefebvre (que teve há décadas seu estatuto arbitrariamente supresso), limito-me a expressar minha confiança em D. Fellay na condução do processo. Confiança que se baseia em todas as suas declarações e atitudes que são do meu conhecimento. A meu ver, hoje D. Fellay representa não só Fraternidade São Pio X com os seus padres, religiosos  e fiéis, mas também todos os católicos que anseiam por que a Igreja volte a afirmar plenamente a sua doutrina tradicional, pondo fim a esse triste desvio a que assistimos desde o Vaticano II.

Se nos falta o conhecimento dos termos precisos das tratativas e dos colóquios teológicos entre Roma e Ecône, mesmo assim é possível examinar o problema sob o aspecto sociológico e cultural. Christopher Dawson, respeitado filósofo da história pouco conhecido no Brasil, tem um estudo interessantíssimo sobre a origem dos cismas e dos movimentos heréticos que ilustra bem a crise gerada entre Ecône e Roma. Embora não considere a Fraternidade São Pio X cismática, acho que o problema da separação entre Ecône e Roma pode ser bem explicado pela teoria desenvolvida por Dawson, com a agravante de que, se há um cisma, a ruptura não está do lado de Ecône mas sim de  Roma.

Diz Dawson que a natureza real das divisões e desacordos entre os cristãos ao longo da história não é de fundo teológico mas cultural e social. Atrás de toda heresia existe algum tipo de conflito social latente, e é apenas mediante a resolução desse conflito que uma unidade pode ser restabelecida, explica Dawson. Ilustra ele sua tese dizendo que a multissecular separação entre católicos irlandeses e protestantes deriva, na realidade, de um espécie de racismo contra os católicos de origem celta fomentado pelos protestantes de origem anglo-saxônica que consideram o catolicismo expressão cultural de uma raça inferior. Diz que “durante toda a história da cristandade, desde a patrística até os tempos modernos, os movimentos heréticos e os cismas têm sido derivados, em seus principais impulsos, de causas sociológicas. Um estadista que soubesse encontrar um caminho para satisfazer as aspirações nacionais dos tchecos no século XV, ou dos egípcios no século V, teria feito mais para reduzir a força centrífuga dos movimentos hussista ou monofisita do que um teólogo que fizesse a mais brilhante e convincente defesa da comunhão sob uma só espécie –  o pão –, ou da doutrina das duas naturezas de Cristo” (Cf. DAWSON, Christopher.Dinâmicas da História do Mundo. Editora É Realizações, São Paulo, 2010).

Pois bem, qual seria, então, o problema cultural que estaria latente no desacordo entre Ecône e Roma?

Seria, a meu ver, a abertura da Igreja ao mundo e à democracia moderna, especialmente à democracia imposta após  a segunda Guerra Mundial, como único regime legitimo com os seus falsos princípios do Estado laico e da liberdade religiosa e da colaboração entre as religiões conforme está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.

Como bem sabemos, esses falsos princípios, apesar de  severamente condenados por todos os papas que combateram o liberalismo, foram  aceitos pelo Vaticano II e impostos a todos os católicos como uma espécie de nova vulgata. O grande mentor dessa mudança foi o Sr. Jacques Maritain do Humanismo integral e Cristianismo e democracia.

Uma questão a ser resolvida é saber se a atitude tomada por tantos pastores diante da democracia moderna foi correta e prudente. É inegável que, após o Vaticano II, não houve apenas a conhecida guinada à esquerda por parte da chamada ala progressista da teologia da libertação, mas houve também uma clara hostilidade aos regimes católicos conservadores como os de Franco e Salazar, injustamente desprezados por Paulo VI, que, ao mesmo tempo, nutria uma simpatia ingênua pela democracia universal a ser instaurada no mundo inteiro sob as bênçãos da ONU. Pacifismo, democracia, direitos humanos, abolição da pena de morte e ecologia, nisso se resumiu o catecismo da nova religião do Vaticano II. Paulo VI chegou a dizer que a ONU representava a única esperança de paz para o mundo!

Ora, Christopher Dawson faz ver que, na verdade, a democracia moderna lança suas raízes em uma heresia deísta do século XVIII. Diz ele: “As doutrinas da democracia moderna não são uma teoria científica, mas um credo moral e semirreligioso, o qual deriva, mais do que geralmente nos damos conta, das inspirações pessoais de Rousseau, dificilmente separáveis do deísmo místico com o qual estavam, originalmente, associadas. Essa doutrina encontra-se, na realidade, muito mais longe de uma sociologia científica do que, por exemplo, a velha política filosófica aristotélica, a qual estava, dentro dos seus limites, firmemente enraizada numa base de fatos observados e numa teoria racional de desenvolvimento e de vida social.” (ibid)

Com efeito, a democracia moderna é uma religião secular que tem por dogma o número. O que o maior número de imbecis decidir há de ser sempre o melhor. Não importa que um assunto seja complexo, exija reflexão acurada, estudo rigoroso, o que importa é convocar as multidões às seções eleitorais  e acatar o resultado das urnas. Não importa respeitar a natureza orgânica e hierárquica  da sociedade, o que importa é nivelar e massificar a sociedade promovendo o sufrágio universal.

Todo esse veneno, toda essa perversão da democracia moderna, seduziu o espírito católico após o Vaticano II. E acabou por ter consequências no campo da teologia. Sem dúvida nenhuma, muito do falso ecumenismo e do diálogo inter-religioso, muito da desolação da liturgia banalizada pelo mito da “participação da assembleia”, muito da visão pluralista da Igreja, bem como a colegialidade que a desgoverna   nos últimos anos, se deve ao entusiasmo pela democracia que obscureceu a inteligência de tantos católicos.

A verdade é que o mundo surgido depois da Segunda Guerra Mundial foi um desastre, desastre que se transformou em catástrofe logo depois com a convocação do Concílio Vaticano II.

O mundo dividido entre os Estados Unidos, uma democracia maçônico-protestante, e a Rússia comunista levou as nações de formação católica a afastar-se da Europa católica que ainda sobrevivia representada por Pio XII, Franco e Salazar.

Fomos avassalados pelo mundo medíocre da democracia norte-americana que hoje se pretende impor ao mundo inteiro como única forma de governo aceitável.

Mas voltando ao problema das relações entre Roma e Ecône, podemos dizer que, se as discussões doutrinais não produzirem nenhum fruto, mesmo assim não devemos perder a esperança de que Roma volte ao caminho da tradição. Bastaria que na França a direita chegasse ao poder para que as forças liberais democráticas que hoje manobram a cúria romana se aquietassem.

Afinal, parece que Charles Maurras não estava de todo errado: politique d’abord!

Anápolis, 11 de julho de 2012.
São Pio I, papa e mártir.