Sombras do Iluminismo – Charlie não nos representa

Postado em 04-02-2015

Marcos Cotrim de Barcellos

 

1- Há luzes que esclarecem como as da ciência, outras que insinuam como as da poesia, e outras ainda há que ofuscam, como as do obscurantismo. Como o mal, que não tem consistência ontológica, é um simulacro do bem, as trevas são ausência relativa de luz.

O fundamentalismo (qualquer que seja sua confissão), nasce de uma doença da razão. Idealiza um “bem” e deseja ardentemente realizá-lo. Mas se esquece de que bens abstratos só habitam sua mente, mesmo bem intencionada. Uma boa ideia será apenas uma ideia, mesmo que boa. Pode até virar teoria e engendrar algo radical. Quanto mais a abstração se purifica, nas matemáticas ou na metafísica por exemplo, mais “radical” deve se tornar o pensador. Mas quando o desejo de pureza emprenha a existência histórica, temos o fanatismo, um vício da razão prática.

 

2- A ponte entre a teoria e a prática já se chamou guilhotina. Aliás, o primeiro episódio de terror explícito no Ocidente foi promovido por franceses fanáticos por matemática e ciência, herdeiros de abstrações cartesianas. O Terror durou mais de um ano, de 1793 a meados de 1794. Em dezembro de 94, foram mortos mais de 5.000 incompetentes na guilhotina. Mais do que a Inquisição em 400 anos de “purificação”.

Em nome da razão deificada, os meses foram renomeados, um ano zero foi decretado, manuais de ética (higiene social) foram publicados, sábios politicamente incorretos foram assassinados, altares cívicos foram erguidos à deusa Humanidade. Robespierre e o Comitê de Salvação Pública censuravam em nome da liberdade de expressão, caçavam dissidentes em nome da hegemonia revolucionária. Uma abstração sanguinária.

Na base, o mito do bom selvagem; no horizonte, a sofreguidão para tornar o mundo melhor. Fez-se o diabo para chegar lá. Os socialistas, em geral, são crentes dessa observância jacobina. Lênin e Stálin aperfeiçoaram os comitês, Mao-Tse-Tung e Pol Pot sublimaram a carnificina com o irrespondível álibi de purificar a humanidade.

Mas voltando ao país de Charlie Hebdo, afinal, Robespierre e Saint-Just também perderam suas cabeças excessivamente racionais, e os girondinos, liberais moderados, mais próximos de Locke do que de Rousseau, passaram a reinar em nome do “estado de direito”, isto é, da deusa Constituição, espécie de emanação do grande arquiteto do universo, encarnada num ente mítico chamado “mercado”. Um de seus mais ilustres nomes foi Condorcet, a quem se atribui o uso pioneiro do conceito de “progresso”. Não por acaso, girondinos eram os banqueiros, armadores, jornalistas e advogados que se beneficiaram imediatamente com o golpe de 1789. Ah, la douce liberté! la dorée égalité!

Herdamos de todos eles a ideia de um estado laico, no qual a moralidade pública fosse garantida pelo contrato social. A sociedade seria construída pelas leis, pelas escolas e pela opinião pública forjada pelas centenas de redes de sociabilidade, salões, revistas, jornais, clubes, academias etc. Moderados ou radicais, no liberalismo tratou-se de suprimir os códigos do Antigo Regime, principalmente sua ética de cunho religioso.

Tudo bem, se estivéssemos no paraíso, sem a tal distância entre teoria e prática. Mas o fiador da ordem pública, o cientista crente no grande arquiteto, parece ter-se esquecido de combinar a respeito da tal bondade natural com os russos, chineses e… muçulmanos. Estes ainda vivem no Ancien Régime, e o máximo que se pode pedir-lhes é que sejam tolerantes; nunca que engulam a teologia laicista dos revolucionários.

 

3- A revolução de 1789 jogou os escrúpulos às favas. Razões de Estado foram evocadas para matar cirurgicamente e, desde então, trocou-se o absoluto religioso pelo absoluto científico, tornando a irreverência mera contestação do poder. Se “somos todos bons”, a única autoridade admitida é a da Técnica e seus sacerdotes.

Essa doença – que já foi chamada de hybris – atinge nossas salas de aula, onde não há mais professores, só “facilitadores”, e assembleias públicas, de onde sumiram os políticos e sobraram os administradores ricos.

Antes da psicanálise fornecer uma justificativa para a irreverência, os revolucionários já haviam condenado à morte o pai e sua maior figura: Deus.

A cultura da irreverência vai além do humor e da ironia. A irreverência religiosa, que vez por outra vitima jornalistas franceses e chargistas de formação trotskista, não é um ataque apenas à religião. Mais que blasfema, ou anárquica, a irreverência corrói o princípio de autoridade, sem o qual toda a ordem institucional que subsidia jornais de humor e sátira vem abaixo.

Para escândalo de girondinos desinformados, candidamente horrorizados com o sangue derramado, Charlie Hebdo não representa o Ocidente. O próprio Charb falou: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. Não parece uma declaração de guerra?