Art. 3 — Se a fé perdura depois desta vida.

(IIª. lIae, q. 4, a. 4, ad 1 ; III Sent., dist.. XXXI. q. 2, a. 1, qª 1: De Virtut., q. 5. a. 4, ad 10).

O terceiro discute-se assim. — Parece que a fé perdura depois desta vida.

1. — Pois, a fé é mais nobre que a ciência. Ora, esta perdura depois da vida presente, como já se disse. Logo, também a fé.

2. Demais. — A Escritura diz (1 Cor 3, 2): ninguém pode pôr outro fundamento senão o que foi posto, que é Jesus Cristo, i. é, a fé de Jesus Cristo. Ora, tirados os fundamentos, não permanece o que sobre ele se assentava. Logo, se a fé não perdurasse depois desta vida, nenhuma outra virtude poderia perdurar.

3. Demais. — O conhecimento da fé difere do da glória como o perfeito, do imperfeito. Ora, estes dois últimos podem coexistir; assim, no anjo, pode coexistir o conhecimento vespertino com o matutino; e nós podemos ter simultaneamente, em relação à mesma conclusão, a ciência, por meio de um silogismo demonstrativo, e a opinião, por meio de um silogismo dialético. Logo, também a fé pode coexistir, depois desta vida, com o conhecimento da glória.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (2 Cor 5, 6): enquanto estamos no corpo, vivemos ausentes do Senhor; (porque andamos por fé e não por visão). Ora, os que estão na glória não vivem ausentes do Senhor, mas lhe estão presentes. Logo, na glória, depois desta vida, a fé não perdura.

SOLUÇÃO. — Por si e na sua própria causa a oposição implica em um oposto exclua o outro, enquanto que todos os opostos incluem a oposição entre a afirmação e a negação. Noutros casos, porém, a oposição se funda em formas contrárias, como, entre as cores, o branco e o preto; em outros ainda, ela se funda na perfeição e na imperfeição, sendo por isso que consideramos como contrários o mais e o menos alterado, assim, quando do menos cálido procede o mais cálido, segundo já se disse1. Ora, como o perfeito e o imperfeito se opõem, é impossível à perfeição e a imperfeição recaírem simultaneamente sobre o mesmo sujeito.

Devemos, porém, considerar que às vezes a imperfeição é da essência específica da coisa; assim, a falta da razão é da essência específica do cavalo ou do boi. E como o que permanece na sua identidade numérica não pode transferir-se de uma espécie para outra, com a desaparição dessa imperfeição desaparece a espécie do ser; assim, o boi ou o cavalo deixariam de existir se fossem racionais. Outras vezes porém a imperfeição não pertence à essência específica, mas tem qualquer fundamento acidental no indivíduo; assim pode às vezes faltar à razão a alguém, cujo uso está impedido pelo sono, pela embriaguez ou por uma causa análoga. E claro porém, que, removida essa imperfeição, a substância do ser continua a existir do mesmo modo.

Ora, é manifesto que a imperfeição do conhecimento é da essência da fé; pois, na sua definição se diz (Heb 11, 1): a fé é a substância das coisas que se devem esperar, um argumento das coisas que não aparecem. E Agostinho diz: Em que consiste a fé? Em crer o que não vês2. Ora, conhecer o que não se manifesta nem é visto implica imperfeição do conhecimento, a qual portanto é da essência da fé. Por onde é manifesto que a fé, permanecendo numericamente a mesma, não pode ser um conhecimento perfeito.

Mas devemos além disso considerar se ela pode coexistir com o conhecimento perfeito, pois nada impede coexista às vezes, um conhecimento imperfeito com o perfeito. Ora, devemos notar que um conhecimento pode ser imperfeito de três modos: quanto ao objeto cognoscível, quanto ao meio e quanto ao sujeito. — Quanto ao objeto cognoscível, o conhecimento angélico matutino difere do vespertino, assim como o perfeito, do imperfeito; pois, o conhecimento matutino tem por objeto os seres enquanto existentes no verbo; ao passo que o vespertino os tem por objeto enquanto existentes na própria natureza; e esta, em relação à primeira, é uma existência imperfeita. — Quanto ao meio, o conhecimento de uma conclusão, por um meio demonstrativo, difere do que temos por um meio provável, assim como o perfeito difere do imperfeito. — Por fim, quanto ao sujeito, a opinião, a fé e a ciência diferem entre si como o perfeito, do imperfeito. Pois, a opinião, na sua essência, admite uma hipótese, mas, com receio de ser a outra a verdadeira e portanto não tem a adesão firme. Ao passo que a ciência implica essencialmente a adesão firme, com a visão intelectiva, pois tem a certeza procedente do intelecto dos princípios. A fé, por fim, ocupa uma posição média: excede a opinião, por implicar a adesão firme, e é inferior à ciência, por não ter a visão. Ora, como é manifesto, o perfeito e o imperfeito não podem coexistir num mesmo ponto de vista, mas as diferenças num e noutro fundadas podem existir simultaneamente, num mesmo ponto de vista, em algum outro objeto. — Assim, pois, o conhecimento perfeito e o imperfeito, quanto ao objeto, de nenhum modo podem se referir ao mesmo objeto. Podem contudo convir no mesmo meio e no mesmo sujeito; pois, nada impede tenha alguém, uma vez e simultaneamente, por um mesmo meio, um conhecimento de dois objetos, um perfeito e o outro, imperfeito, como, p. ex., da saúde e da doença, do bem e do mal. — semelhantemente, é impossível o conhecimento perfeito e o imperfeito, quanto ao meio, convirem num mesmo meio. Mas nada impede que não convenham num mesmo objeto e num mesmo sujeito; pois, pode alguém conhecer a mesma conclusão pelo meio provável e pelo demonstrativo. — E semelhantemente, é impossível o conhecimento perfeito e o imperfeito, quanto ao sujeito, existirem simultaneamente num mesmo sujeito. Ora, a fé, por essência, tem uma imperfeição proveniente do sujeito, pois o crente não vê aquilo que crê. A beatitude, por seu lado, tem essencialmente uma perfeição fundada no sujeito e consistente em o feliz ver o que o felicita, como já dissemos3. Por onde é manifesta a impossibilidade de a fé coexistir com a beatitude, no mesmo sujeito.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A fé é mais nobre que a ciência, quanto ao seu objeto, que é a Verdade primeira. Mas, a ciência tem um modo mais perfeito de conhecer, não repugnante à perfeição da beatitude i. é, à visão, como lhe repugna o modo da fé.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A fé é um fundamento, pelo que tem de conhecimento; e portanto, quando o conhecimento for perfeito, mais perfeito será o fundamento.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A SOLUÇÃO consta com evidência do dito antes
1. V Phys., lect. IV.
2. Tract. XL in Ioan.
3. Q. 3, a. 8.