Art. 8 — Se as virtudes têm preeminência sobre os dons

(III Sent., dist. XXXIV, q. 1, a. 1, ad 5; De Virtut., q. 2, a. 2, ad 17).

O oitavo discute-se assim. — Parece que as virtudes têm preeminência sobre os dons.

1. — Pois, diz Agostinho, falando da caridade: Nenhum dom de Deus é mais excelente que este. É o único que separa os filhos do reino eterno, dos da eterna perdição. Há ainda outros dons do Espírito Santo, mas de nada servem sem a caridade1. Ora, a caridade é uma virtude. Logo, a virtude tem preeminência sobre os dons do Espírito Santo.

2. Demais. — O que tem naturalmente prioridade tem também preeminência, Ora, as virtudes têm prioridade sobre os dons do Espírito Santo. Pois, Gregório diz: Os dons formam, antes de tudo, na mente que lhes é dócil, a prudência, a temperança, a fortaleza, e a justiça. E assim equilibra, em pouco, a mesma mente com as sete virtudes, i. é, dons, opondo, à estultícia, a sabedoria; ao embotamento, o intelecto, à precipitação, o conselho; ao temor, a fortaleza; à ignorância, a ciência; à dureza, a piedade; à soberba, o temor2. Logo, as virtudes têm preeminência sobre os dons.

3. Demais. — Ninguém pode usar mal da virtude, como diz Agostinho3. Ora, é possível usar mal dos dons; pois, como diz Gregório, imolamos a hóstia da nossa prece para a sabedoria não ensoberbecer; para o intelecto, sutilmente discorrendo, não aberrar; para o conselho, multiplicando-se, não confundir; para não se precipitar à fortaleza, gerando a confiança; para a ciência não inchar, conhecendo sem amar; para a piedade não transviar, afastando do caminho reto; para o temor, amedrontando mais do que é justo, não imergir no abismo do desespero4. Logo, as virtudes são mais dignas que os dons do Espírito Santo.

Mas, em contrário, os dons são conferidos para fortalecer as virtudes contra os defeitos, como é claro pela citação aduzida. E assim, parece que aperfeiçoam o que as virtudes não podem aperfeiçoar. Logo, têm preeminência sobre elas.

SOLUÇÃO. — Como do sobredito resulta5, distinguem-se três gêneros de virtudes: umas teologais; outras, intelectuais; outras, morais. As teologais unem a Deus a mente humana; as intelectuais aperfeiçoam a razão; enfim, as morais tornam apta as potências apetitivas a obedecer à razão. Ora, pelos dons do Espírito Santo todas as potências da alma se dispõem a submeter-se à moção divina.

Por onde, os dons estão para as virtudes teologais, que unem o homem ao Espírito Santo, que o move, como as virtudes morais estão para as intelectuais, perfectivo da razão, motora das virtudes morais. Assim, pois, como as virtudes intelectuais têm preeminência sobre as morais e as regulam, assim as teologais a têm sobre os dons do Espírito Santo, e os regulam. Donde o dizer Gregório: os sete filhos, i. é, os sete dons, não chegam à perfeição da dezena, senão fizerem tudo com fé, esperança e caridade6.

Comparados, porém, com as demais virtudes intelectuais ou morais, os dons têm preeminência sobre as virtudes. Pois, aperfeiçoam as potências da alma, relativamente ao Espírito Santo, que move; ao passo que as virtudes aperfeiçoam ou a razão mesma, ou as demais potencias, relativamente à razão. Ora, é manifesto que quanto maior o motor, tanto mais perfeitamente disposto deve ser o móvel. Logo, os dons são mais perfeitos que as virtudes.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A caridade é uma virtude teologal, e concedemos tenha preeminência sobre os dons.

RESPOSTA À SEGUNDA. — De dois modos pode-se entender a prioridade. — Primeiro, na ordem da perfeição e da dignidade; assim, o amor de Deus tem prioridade sobre o do próximo. E deste modo, os dons têm prioridade sobre as virtudes intelectuais e morais; posterioridade, porém, relativamente às virtudes teologais. — De outro modo, na ordem da geração ou disposição; assim, o amor do próximo precede, quanto ao ato, o amor de Deus. E assim, as virtudes morais e intelectuais precedem os dons; pois, estando bem disposto no que respeita à sua razão própria, o homem fica bem disposto no concernente a suas relações com Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A sabedoria, o intelecto, e dons semelhantes, provêm do Espírito Santo, enquanto informados pela caridade, que não obra temerariamente, como diz a Escritura (1 Cor 13, 4). E, portanto, da sabedoria, do intelecto e de dons semelhantes ninguém pode usar mal, enquanto dons do Espírito Santo. Mas para não se afastarem da perfeição da caridade, um é fortificado pelo outro. E é isto que Gregório quer dizer.
1. XV De Trinit. (cap. XVIII).
2. II Moral. (cap. XLIX).
3. II De lib. Arbitr. (cap. XXI).
4. I Moral. (cap. XXXV).
5. Q. 58, a. 3; q. 62, a. 1.
6. I Moral. (cap. XXVII).