Art. 2 – Se é artigo de Fé ou conclusão demonstrável que o mundo começou.

(II Sent., dist. I, q. 1. art. 5; II Cont. Gent., cap. XXXVIII; De Pot., q. 3, a. 14; Quodl., XII, q. 6, a. 1; Opusc. XXVII, De AEternitate Mundi).

O segundo discute-se assim. – Parece não ser artigo de fé – que o mundo começou – mas conclusão demonstrável.

1. – Pois tudo o que é feito tem o princípio da sua duração. Ora, pode-se provar demons­trativamente que Deus é a causa efetiva do mundo; e, mesmo, assim o admitiram os filósofos mais prováveis. Logo, pode-se provar demons­trativamente que o mundo começou.

2. Demais. – Se é necessário admitir-se o mundo como feito por Deus, ou o foi do nada ou de alguma coisa. Ora, não de alguma coisa, porque então a matéria do mundo lhe seria an­terior; contra o que, procedem as razões de Aris­tóteles ensinando que o céu é ingênito. Logo, é necessário admitir-se o mundo como feito do nada, e, assim, tendo o ser depois do não-ser e, portanto, como tendo começado.

3. Demais. – Tudo o que opera pelo inte­lecto opera começando de um certo princípio, como é claro por todas as coisas artificiais. Ora, Deus é agente pelo intelecto. Logo, opera começando de um certo princípio. E portanto o mundo, que é seu efeito, nem sempre existiu.

4. Demais. – É manifesto que certas artes e a habitação das regiões começaram em deter­minados tempos. Ora, isto não se daria se o mundo sempre tivesse existido. Logo, é manifesto que ele nem sempre existiu.

5. Demais. – É certo que nada pode se equiparar a Deus. Mas, se o mundo sempre existiu equipara-se a Deus pela duração. Logo, é certo que ele nem sempre existiu.

6. Demais. – Se o mundo sempre existiu, dias infinitos precederam um determinado dia. Ora, não se pode percorrer o infinito. Logo, nun­ca se teria chegado a esse determinado dia, o que é manifestamente falso.

7. Demais. – Se o mundo é eterno também a geração o é. Logo, um homem foi gerado por outro, ao infinito. Ora, o pai é a causa eficiente do filho1, como diz Aristóteles. Logo, nas causas eficientes, pode-se proceder até ao infinito, o que é refutado pelo mesmo filósofo2.

8. Demais. – Se o mundo e a geração sem­pre existiram, infinitos homens já existiram. Ora, a alma do homem é imortal. Logo, existiriam atualmente infinitas almas humanas, o que é impossível. Por onde e necessariamente, po­de-se saber, e sem que o seja somente pela fé, que o mundo começou.

Mas, em contrário. – Os artigos da fé não se podem provar demonstrativamente, porque a fé se refere ao que se não vê, como diz a Escritu­ra (Heb 11). Mas que Deus é o Criador do mundo, de modo que este tenha começado, é artigo de fé; pois dizemos – Creio em um só Deusetc.; e, demais, Gregório escreve que Moisés profetou do passado, dizendo – No princípio criou Deus o céu e a terra– por onde exprimiu a novidade do mundo3. Logo, o começo do mundo só se conhece pela re­velação. E logo, não pode ser provado demons­trativamente.

SOLUÇÃO. – Que o mundo não existiu sem­pre só se sabe pela fé e não pode ser demons­trativamente provado, como já antes se disse do mistério da Trindade4. E a razão disto é que não se pode dar uma demonstração de que o mundo começou, tirada do próprio mundo. Pois o princípio da demonstração é aquilo que a coisa é. Ora, cada ser, segundo a natureza da sua espécie, faz abstração do lugare do tempoe, por isso, se diz que os universais existem em toda parte e sempre. Por onde, não se pode de­monstrar que o homem, o céu ou a pedra não existissem sempre. Semelhantemente, também a demonstração não pode ser tirada do agente voluntário. Pois, a vontade de Deus não pode ser investigada pela razão, senão no tocante às coisas que, em absoluto, são necessariamente queridas por Ele, como já se disse5.Pode,porém, a vontade divina ser manifestada ao homem pela revelação, na qual se apóia a fé. Por onde, pode-se acreditar que o mundo começou, não porém demonstrá-lo nem o saber pela ciência. E é útil atentemos nisto, não vá alguém, presumindo demonstrar o que é de fé, apresentar razões não necessárias, matéria de irrisão aos infiéis, que ficariam pensando que nós cremos, por tais razões, nas coisas de fé.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Como diz Agostinho6, dupla é a opinião dos fi­lósofos que ensinaram a eternidade do mundo. Pois admitiam que a substância do mundo não provém de Deus; e destes o erro é intolerável e, portanto, por si mesmo refutado. Outros admi­tiam o mundo eterno, mas diziam que foi feito por Deus. Pois não querem tenha o mundo início no tempo, mas início na sua criação; assim que, de um modo apenas inteligível, ele sempre seja feito. E, como diz o mesmo autor, encon­traram um meio para explicarem o seu pensa­mento7. Pois assim como, dizem, um pé calcando desde toda a eternidade na poeira, sempre estaria por baixo o vestígio, que ninguém duvidaria ter sido causado pelo pé; assim também o mundo sempre existiu, se sempre existiu quem o fez.Mas para o entendermos devemos considerar que a causa eficiente, que age por movimento, neces­sariamente precede no tempo o seu efeito, pois este existe no termo da ação e é necessário seja todo agente princípio da ação. Se a ação, porém, for instantânea e não sucessiva, não é necessário a causa eficiente seja anterior ao que é feito, como é patente na iluminação. Por onde dizem que, de ser Deus a causa ativa do mundo não se segue necessariamente seja ante­rior ao mundo na duração, porque a criação que produziu o mundo não é uma mutação sucessiva, como já antes se disse8.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Os que admitem o mundo eterno dizem que ele foi feito, por Deus, do nada; não que tenha sido feito depois do nada, no sentido em que entendemos o vocábulo criação; mas porque não foi feito de alguma coisa. Assim, alguns deles não recusam o nome de criação, como se vê claramente em Avicena9.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Essa é a objeção de Anaxágoras, que apresenta Aristóteles10. Mas não conclui com necessidade senão quanto ao intelecto que, deliberando, investiga o que deva ser feito; o que é semelhante ao movimento. Ora, tal é o intelecto humano, mas não o divino, como já antes se viu11.

RESPOSTA À QUARTA. – Os que admitem a eternidade do mundo admitem que uma região infinitas vezes se mudou de inabitável para ha­bitável, e vice-versa. E semelhantemente, que as artes, por diversas corrupções e acidentes, infinitas vezes foram inventadas e de novo cor­rompidas. Donde vem o dizer Aristóteles que é ridículo concluir de tais mutações particulares, a novidade total do mundo12.

RESPOSTA À QUINTA. – Mesmo que o mundo sempre tenha existido, nem por isso se equipa­raria à Deus na sua eternidade, como diz Boécio13; porque o ser divino é o ser totalmente simultâneo, sem sucessão, o que se não dá com o mundo.

RESPOSTA À SEXTA. – Um percurso sempre se entende de termo a termo. Ora, sejam quantos forem os dias passados que se quisessem, daí até o dia atual é finito o número dos dias e pude­ram ser percorridos. Porém a objeção procede­ria se, postos os extremos, os meios fossem infinitos.

RESPOSTA À SÉTIMA. – Nas causas eficientes em si mesmas é impossível proceder até ao infinito, como, p. ex., se as causas requeridas para um efeito se multiplicassem ao infinito; assim, se, uma pedra fosse movida por um bastão e este pela mão, e isto ao infinito. Mas não se reputa por impossível o poder proceder-se até ao infi­nito, por acidente, nas causas agentes; de modo que, por exemplo, todas as causas, multiplicadas ao infinito se ordenem a uma só causa, sendo porém a multiplicação delas acidental. Assim, se um artífice usa de muitos martelos, por aci­dente, porque um se quebra após outro, resulta por conseqüência que tal martelo entra em ação depois de tal outro. E semelhantemente sucede a tal homem, capaz de gerar, o ser gerado por outro, pois gera enquanto homem e não enquan­to filho de outro homem. Por onde, todos os homens, que geram, têm o mesmo grau, nas causas eficientes a saber, o grau de gerador particular. E, portanto, não é impossível que o homem seja gerado pelo homem, ao infinito. Mas sê-lo-ia, se a geração de tal homem depen­desse de tal outro e do corpo elementar e do sol e assim ao infinito.

RESPOSTA À OITAVA. – Os que admitem a eternidade do mundo fogem, de muitas maneiras, a esta objeção. Assim, uns não reputam por impossível existirem infinitas almas em ato, como se vê em Algazel14, por se tratar, dizem, de um infinito por acidente. Mas isto já foi refutado antes15. Outros, porém, afirmam que a alma se corrompe com o corpo. Outros, ainda, que, de todas as almas só remanesce uma. Outros, por fim, como se refere Agostinho, admi­tiam que haja um circuito de almas, por isto que as almas separadas dos corpos, após um deter­minado currículo temporal, de novo voltam a eles16. E de todas estas opiniões vamos tratar nos artigos seguintes17. Devemos todavia considerar que a objeção supra é particular; por ela pode­ria dizer alguém que o mundo foi eterno, ou, pelo menos, alguma criatura, como o anjo; mas não o homem. Nós porém indagamos universalmente, se alguma criatura existe abeterno.
1. II Phys. (lect. V).
2. II Metaph. (lect. III).
3. Hom. I in Ezech.
4. Q. 32, a. 1.
5. Q. 19, a. 3.
6. De civ. Dei, lib. XI (c. IV).
7. De civ. Dei, lib. X (c. XXXI).
8. Q. 45, a. 3 ad 3.
9. Metaph. (lib. IX, cap. IV).
10. VIII Physic. (lect. VI).
11. Q. 14, a. 7.
12. I Meteor. (lect. XVII).
13. De consol (lib. V, prosa XI).
14. Metaph. (lib. I, c. XI).
15. Q. 7, a. 4.
16. De civ. Dei, lib. XII, c. XIII.
17. Q. 75, a. 6; q. 76, a. 2; q. 118, a. 6.