Artigo 3 – Se a misericórdia é uma virtude.

O terceiro discute-se assim. – Parece que a misericórdia não é uma virtude.

1. – Pois, o que há de principal na virtude é a eleição, como diz o Filósofo. Ora, a eleição é o apetite premeditado, segundo se lê no mesmo autor. Logo, ao que impede a deliberação não pode chamar-se virtude. Ora, a misericórdia a impede, conforme aquilo de Salústio: Todos os homens que deliberam sobre coisas duvidosas devem ser isentos de ira e de misericórdia; pois, o ânimo em que dominam esses afetos não atina facilmente com a verdade. Logo, a misericórdia não é uma virtude.

2. Demais. – Tudo o contrário à virtude não é louvável. Ora, a némese encontra a misericórdia, como diz o Filósofo. Mas, a némese é uma paixão louvável, como ele também o afirma. Logo, a misericórdia não é virtude.

3. Demais. – A alegria e a paz não são virtudes especiais, porque resultam da caridade, como já se disse. Ora, também a misericórdia resulta da caridade; pois, a caridade nos faz chorar com os que choram e alegrarmo-nos com os que se alegram. Logo, a misericórdia não é uma virtude especial.

4. Demais. – Pertencendo a misericórdia à potência apetitiva, não é virtude intelectual. Nem é virtude teologal, por não ter Deus como objeto. Não é também virtude moral, por não concernir aos atos, o que é próprio da justiça; nem concerne às paixões, pois não se reduz a nenhuma das dez medianias enumeradas pelo Filósofo. Logo, a misericórdia não é uma virtude.

Mas, em contrário, diz Agostinho: Muito melhor, mais humano e mais acomodado ao sentir dos homens pios é o que Cicero disse, ao fazer o elogio de César: Nenhuma das tuas virtudes é mais admirável nem mais grata, que a tua misericórdia. Logo, a misericórdia é uma virtude.

SOLUÇÃO. – A misericórdia implica a dor para com a miséria alheia. Ora, esta dor pode ser, de algum modo, considerada um movimento do apetite sensitivo; e a esta luz, a misericórdia é paixão e não, virtude. De outro modo, porém, pode ser considerada movimento do apetite intelectivo enquanto nos desagrada o mal de outrem. Ora, este movimento pode ser regulado pela razão; e pode, uma vez assim regulado, regular também o movimento do apetite inferior. Donde o dizer Agostinho, este movimento da alma, isto é, a misericórdia, serve à razão, quando nós a dispensamos para conservar a justiça, quer dando ao necessitado, quer perdoando ao arrependido. Ora, a virtude humana consistindo essencialmente num movimento da alma regulado pela razão, como do sobredito resulta, a misericórdia é, por consequência, virtude.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. –­ O lugar citado de Salústio entende-se da misericórdia, enquanto paixão não regulada pela razão; pois, assim, ela impede o conselho racional, fazendo-nos apartar da justiça.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O Filósofo se refere, no lugar aduzido, à misericórdia e a némese, considerando-as como paixões. Ora, como tais, implicam contrariedade relativamente ao julgamento dos males alheios, com os quais o misericordioso se compadece, julgando-os como sofridos por outrem imerecidamente; ao passo que o nemésico se alegra quando julga outrem sofrê-los pelos merecer; e se entristece quando as coisas correm bem aos que disso não são dignos. Ora, ambos esses afetos são louváveis e procedem do mesmo sentimento moral, como no mesmo lugar diz Aristóteles. Mas, propriamente, a misericórdia se opõe à inveja, como a seguir se dirá.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A alegria e a paz nada acrescentam à ideia do bem, que é o objeto da caridade; e portanto, não exigem outras virtudes diferentes da caridade. Ao passo que a misericórdia concerne uma ideia especial, a saber: a miséria daquele de quem nos compadecemos.

RESPOSTA À QUARTA. – A misericórdia é uma virtude moral concernente às paixões e se reduz à mediania chamada némese, porque ambas procedem do mesmo sentimento moral, como diz Aristóteles. Ora, essas medianias o Filósofo não as considera virtudes, mas paixões; pois, mesmo como paixões, são louváveis. Nada impede, porém, que provenham de hábito eletivo. E então são, por essência, virtudes.