Artigo 3 – Se devemos beneficiar mais aos que nos são mais chegados.

O terceiro discute-se assim. – Parece que não devemos beneficiar mais aos que nos são mais chegados.

1. – Pois, diz a Escritura: Quando deres algum jantar ou alguma ceia, não chames nem teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes. Ora, estes nos são os mais chegados. Logo, não devemos beneficiá-los, de preferência, mas antes, aos estranhos que o necessitam, conforme o versículo seguinte do mesmo lugar citado do Evangelho: Mas quando deres algum banquete, convida os pobres e os aleijados, etc.

2. Demais. – O máximo benefício é ajudarmos ao que está na guerra. Ora, um soldado na guerra deve ajudar antes a um companheiro de armas estranho do que a um consanguíneo inimigo. Logo, não é sobretudo aos que nos são chegados que devemos fazer benefícios.

3. Demais. – Antes de fazermos benefícios gratuitos, devemos restituir o devido. Ora, devemos fazer benefícios aquele de, quem o recebemos. Logo, devemos fazê-los antes aos nossos benfeitores do que aos que nos são chegados.

4. Demais. – Devemos amar mais aos pais que aos filhos, como já se disse. Ora, devemos fazer benefícios aos filhos, de preferência, pois, não são os filhos os que devem entesourar para os pais, como diz a Escritura. Logo, não é aos nossos chegados a quem devemos, sobretudo fazer benefícios.

Mas, em contrário, Agostinho: Não podendo servir a todos, deves procurar fazê-lo, sobretudo aqueles que, por circunstâncias de lugar e de tempo, ou quaisquer outras, te são unidas mais estreitamente por um como consorcio.

SOLUÇÃO. – A graça e a virtude imitam a ordem da natureza, instituída pela sabedoria divina. Ora, a ordem da natureza é tal que cada agente natural difunde a sua ação primária e principalmente para com o que lhe é mais chegado; assim, o fogo aquece, sobretudo aquilo que lhe está mais perto. Do mesmo modo, Deus mais principal e abundantemente difunde os dons da sua bondade às substâncias que lhe estão mais próximas, como está claro em Dionísio. Ora, a prestação de benefícios é um ato de caridade para com os outros.

Mas, a proximidade de um relativamente a outro pode ser considerada segundo as diversas afinidades que os homens mantêm entre si; assim, os consanguíneos, pelas afinidades naturais; os concidadãos, pelas civis; os fiéis, pelas espirituais e assim por diante. E, segundo as diversas afinidades, devem ser dispensados diversamente os vários benefícios. Pois, devemos fazer a cada um o benefício mais condizente com a afinidade que no-lo torna mais chegado, absolutamente falando. Mas isso pode variar conforme a diversidade dos lugares, dos tempos e dos negócios; assim, num determinado caso, devemos socorrer de preferência a um estranho, por exemplo, caído em extrema necessidade, do que mesmo ao nosso pai se não estiver sofrendo tal necessidade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. –­ O Senhor não proíbe de modo absoluto convidar os amigos ou os consanguíneos a um banquete; mas, convidá-los com a intenção de, por sua vez, eles te convidarem a ti; o que já não seria caridade, mas, cobiça. Pode, porém, acontecer que devam ser convidados de preferência os estranhos, num determinado caso, por sofrerem maior necessidade. Não se perca porém de vista que devemos, em igualdade de situações, beneficiar sobretudo aos que nos são mais chegados. Se, pois, de dois, um nos é mais chegado e o outro, mais necessitado, não é possível determinar, por uma regra universal, a quem devamos socorrer de preferência, por serem diversos os graus de necessidade e de proximidade; mas, para tal é necessário o juízo de uma pessoa prudente.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O bem comum de muitos é mais divino que o de um só. Por onde, para o bem comum espiritual ou temporal da república, é mais virtuoso expor ao perigo até mesmo a nossa própria vida. Por onde, ordenando-se o exercício da guerra à conservação da república, quando um soldado presta auxílio a um companheiro de armas, não lho presta como a pessoa particular, mas para ser útil a toda a república. Donde, não é para admirar se, nesse caso, o estranho é preferido ao que nos é carnalmente chegado.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Ha duas espécies de débito. – Um, que não deve ser considerado como bem do devedor, mas antes, como um daquele a quem deve; tal o caso de quem tem dinheiro ou qualquer outro bem alheio, obtido por furto, recebido em mútuo, em depósito ou de qualquer outro modo. E então, estarmos mais obrigados a restituir o débito do que a beneficiar com ele aos que nos são chegados. Salvo se o paciente estivesse premido por tal necessidade, que nos fosse lícito tomarmos o bem alheio para lha socorrer; e contanto que a pessoa a quem devêssemos não se encontrasse em semelhante necessidade. E neste caso, deveríamos pesar a condição de ambos de acordo com outras condições, a juízo de uma pessoa prudente; pois, em tais circunstâncias não é possível estabelecer uma regra universal, por causa da variedade dos casos particulares, como diz Aristóteles. Outra espécie de débito é o considerado como um bem do devedor e não daquele a quem deve; assim, se devêssemos, não por necessidade de justiça, mas por uma certa equidade moral, como no caso de benefícios recebidos a título gratuito. Ora, de nenhum benfeitor o benefício é tão grande como o dos pais. Logo, estes devem ser preferidos a todos os outros quando se trata de recompensarmos os benefícios; salvo se, de outro lado, preponderar a necessidade, ou outra circunstância, como a utilidade comum da Igreja ou da república. Mas nos outros casos, devemos levar em conta tanto o nos ser a pessoa chegada a nós, como o benefício recebido, circunstâncias que, como já dissemos acima, não podem ser determinadas, por uma regra geral.

RESPOSTA À QUARTA. – Os pais são como uns superiores, e por isso o amor os leva a bem fazer; ao passo que o amor dos filhos os leva a honrar os pais. Contudo, em artigo de extrema necessidade, seria lícito, antes abandonar os filhos, que os pais, os quais de nenhum modo nos é lícito abandonar, por causa da obrigação que nos é imposta pelos benefícios recebidos, como está claro no Filósofo.