Art. 3 – Se estamos obrigados a render ação de graças a todos os que nos fazem benefícios

O terceiro discute–se assim. – Parece que não estamos obrigados a render ação de graças a todos os que nos fazem beneficies.

1. – Pois, podemos fazer bem a nós mesmos, como podemos fazer mal, segundo aquilo da Escritura: para que outra pessoa será bom aquele que é mau para si? Ora, não, podemos dar ações de graças a nós mesmos, porque a ação de graças deve passar de uma pessoa para outra. Logo, nem a todo benfeitor devemos ação de graças.

2. Demais. – A ação de graças é uma retribuição da graça recebida. Ora, certos benefícios são feitos, não como graça, mas injuriosa, tardiamente e com tristeza. Logo, nem sempre devemos render graças ao benfeitor.

3. Demais. – Não devemos ação de graça, a quem busca a sua utilidade própria. Ora, às vezes certos beneficiam a outrem por utilidade própria. Logo, não se lhes devem ação de graças.

4. Demais. – Ao escravo não deve o dono ação de graças, por ser do dono tudo quanto ele é. Ora, às vezes acontece que o escravo beneficia o senhor. Logo, nem a todo benfeitor é devida ação de graças.

5. Demais. – Ninguém está obrigado ao que não pode fazer honesta e utilmente. Ora, às vezes acontece que quem faz um beneficio vive em estado de tão grande felicidade, que é inútil retribuir–lhe o benefício recebido. E outras vezes também se dá; que o benfeitor passa de virtuoso a vicioso, e então, não é possível retribuir–lhe honestamente.

6. Demais. – Não devemos fazer a outrem o que, em vez de lhe aproveitar, é lhe nocivo. Ora, às vezes acontece que a paga do benefício é inútil ou nociva ao que a recebe. Logo, nem sempre devemos, como ação de graças, recompensar os benefícios.

Mas, em contrário, o Apóstolo: Em tudo daí graças.

SOLUÇÃO. – Todo afeto naturalmente se converte na sua causa. Por isso, Dionísio diz: Deus atrai todas as coisas a si como causa de todas. Pois, o efeito há de sempre ordenar–se ao fim do agente. Ora, é manifesto que o benfeitor, como tal, é causa do beneficiado. Por onde, a ordem natural exige que quem recebeu um benefício dirija–se ao benfeitor pura lhe retribuir a graça recebida, conforme às conveniências apropriadas a um e a outro. E, como dissemos a respeito dos pais ao benfeitor, como tal, é devida honra e reverência, porque desempenha o papel de princípio; e por acidente deve–se–lhe subvenção ou sustento, se o precisar.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÂO. – Diz Séneca: Assim como não é liberal quem se dá a si mesmo, nem clemente quem a si mesmo se perdoa, nem misericordioso é aquele que se comove com os próprios males, senão com os alheios, assim também, ninguém se dá benefícios a si mesmo, mas seque os instintos naturais que nos levam a evitar o que nos causa dano e a buscar o que nos é útil. Por onde, em relação a nós mesmos, não há lugar para a gratidão nem para a ingratidão; pois, não podemos negar nada a nós mesmos senão retendo–o para nós. Mas, o que propriamente é relativo a outrem, nós o aplicamos em sentido metafórico à nossa própria pessoa, como diz o Filósofo a respeito da justiça. No sentido em que as diversas partes do homem são consideradas como pessoas diversas.

RESPOSTA À SEGUNDA. – É próprio da alma boa deixar–se tocar antes pelo bem do que pelo mal. E portanto, se quem deu um benefício não o deu como devia, nem por isso deve deixar de ser agradecido quem o recebeu; embora menos, do que se o benefício tivesse sido feito de modo devido; pois, como diz Séneca, grandes vantagens nos advêem da presteza, e de tão grandes nos priva a tardança.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Diz Séneca: Importa muito saber se quem nos fez um benefício tinha em vista o seu interesse próprio ou o nosso; ou se simultaneamente o seu e o nosso. Quem visa unicamente às suas vantagens pessoais e nos serve por não ter outro meio de se servir a si mesmo, eu o equiparo aquele que distribui forragem ao seu próprio rebanho. E logo depois: Mas, se nos associou a si, se a ambos visou no seu pensamento, seremos ingratos e não só injusto em não nos alegrar que tenha achado a sua vantagem onde também achamos a nossa. É o cúmulo do mau espírito só considerar como benefício o que causou ao seu autor um dano qualquer.

RESPOSTA À QUARTA. – Como diz Séneca, enquanto o escravo presta os serviços, que se costumam exigir dele, cumpre o seu dever; mas, presta um benefício quando faz mais do que devia; pois, quando manifesta afeto de amigo, já não é propriamente um serviçal. Logo, também aos escravos, quando fazem mais do que devem, temos que render graças.

RESPOSTA À QUINTA. – Também o pobre não é ingrato, fazendo o que pode. Pois, como o benefício consiste mais no afeto do que no feito, assim também sobretudo no afeto consiste o agradecimento. Donde o dizer Séneca: Quem recebe um benefício com prazer paga o primeiro termo da sua dívida. Manifestemos todo o prazer que nos causa o benefício recebido, pela efusão dos nossos sentimentos; façamo–lo não só em presença do amigo, mas testemunhemo–lo em toda parte. Por onde é claro, que podemos retribuir o benefício recebido, testemunhando reverência e honra ao benfeitor, por maior que seja a felicidade que desfruta. Por isso, o Filósofo diz: Às pessoas eminentes, a retribuição da honra; ao pobre, a do lucro. E Séneca: Há muitos meios de pagarmos as nossas dívidas mesmo aos que são felizes: um conselho leal, a assiduidade, a frequência amena e agradável, sem lisonja. – Por onde, não devemos desejar que seja pobre ou miserável quem nos fez um benefício, para podermos pagar–lh’o, Pois, como diz Séneca, se lh’o desejasses aquele de quem nenhum benefício recebeste, esse desejo seria inumano. E quanto mais inumano seria se o desejasses aquele a quem deves um benefício? – Mas, se quem nos fez o benefício veio a cair em situação pior, devemos ainda retribuir–lh’o de modo conveniente ao seu estado; de maneira que, por exemplo., volte à virtude, se for possível. Se porém for incurável na sua malícia, então transformou–se, do que antes era; e por isso não lhe devemos a retribuição do benefício corno lhe devíamos antes. E contudo na medida do possível, salva a honestidade, devemos guardar boa memória do benefício prestado, como está claro no Filósofo.

RESPOSTA À SEXTA. – Como dissemos, a retribuição do benefício consiste principalmente em nosso afeto. Por onde, devemos faze–la do modo mais útil. Mas se, por incúria daquele que a recebeu, vem a lhe causar dano, não deve isso ser imputado a quem a deu. Donde o dizer Séneca: Devo retribuir; não conservar é guardar, depois de ter retribuído.