Art. 2 ─ Se o escravo pode contrair matrimônio sem o consentimento do senhor.

O segundo discute-se assim. ─ Parece que o escravo não pode contrair matrimônio sem a licença do senhor.

1. Pois, ninguém pode dar a outrem o bem alheio sem o consentimento do dono. Ora, o escravo é coisa do senhor. Logo, não pode, contraindo o matrimônio, dar à mulher poder sobre o seu corpo sem consentimento do senhor.

2. Demais. ─ O escravo esta obrigado a obedecer ao senhor. Ora, o senhor pode ordenar-lhe que não consinta no matrimônio. Logo, sem esse consentimento não pode contrair matrimônio.

3. Demais. ─ Depois do contrato do matrimônio, o escravo está obrigado a cumprir o dever conjugal para com a mulher, mesmo por preceito de direito divino. Ora, pode acontecer que, no momento em que a mulher lhe pedir o cumprimento desse dever, o senhor imponha ao escravo um serviço de modo a impedi-lo da conjunção carnal. Logo, se sem o consentimento do senhor o escravo pode contrair matrimônio, o senhor ficaria privado do serviço dele sem culpa do mesmo. E isso não pode ser.

4. Demais. ─ O Senhor pode vender os seus escravos para regiões longínquas, onde a mulher não o possa acompanhar, quer por doença do corpo, quer por perigos eminentes à sua fé ─ por exemplo, se fosse ele vendido a infiéis; quer ainda por não lho permitir o dono, sendo escrava. E assim, o matrimônio se dissolveria. O que é inconveniente. Logo, não pode o escravo contrair matrimônio sem
licença do senhor.

5. Demais. ─ Mais elevada é a obrigação pela qual alguém se consagra ao serviço divino, que pela qual se submetesse ao serviço de sua esposa. Ora, o escravo não pode, sem o consentimento do senhor, entrar em religião ou ser promovido às ordens. Logo, com maior razão, não pode sem o seu consentimento, contrair matrimônio.

Mas, Apóstolo: Em Jesus Cristo não há servo nem livre. Logo, para contrair matrimônio, na fé de Jesus Cristo, a mesma liberdade tem os escravos que os livres.

2. Demais. ─ A escravidão é de direito positivo. Ora, o matrimônio é de direito natural e divino. Logo, como o direito positivo não pode contrariar o natural nem o divino, parece que o escravo pode contrair matrimônio sem o consentimento do senhor .

SOLUÇÃO. – O direito positivo, como dissemos, procede do natural. Por onde, a escravidão, que é de direito positivo, não pode prejudicar às exigências do direito natural. Pois, assim como a natureza tende à conservação do indivíduo, assim, pela geração, visa à conservação da espécie. Ora, o escravo não está sujeito ao senhor a ponto de não ter liberdade de comer, dormir e praticar atos semelhantes exigidos pelas necessidades do corpo, sem os quais a natureza não pode subsistir. Assim, também não lhe está sujeito a ponto de não poder contrair livremente o matrimônio, mesmo sem o conhecimento e a permissão do senhor.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ O escravo é propriedade do senhor no concernente ao que se acrescenta à natureza; porque por natureza todos os homens são iguais. Por isso, em relação aos atos naturais, o escravo pode, pelo matrimônio, dar a outrem poder sobre seu corpo, contra a vontade do senhor.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ O escravo está obrigado a obedecer ao seu senhor em tudo o que este lhe pode licitamente mandar. Ora, assim como o senhor não tem o direito de lhe mandar que não coma ou não durma, assim também não pode ordenar-lhe abster-se do matrimônio. Pois, o legislador deve velar pelo modo com que cada qual usa do seu direito. Portanto, se o senhor proíbe ao escravo de contrair matrimônio, não está obrigado este a lhe obedecer.

RESPOSTA À TERCEIRA. ─ O escravo que contraiu matrimônio com permissão do dono, deve por isso mesmo deixar de fazer o serviço que lhe manda ele e cumprir o dever conjugal para com a mulher, Pois, tendo-lhe o senhor permitido contrair matrimônio, entende-se que também anuiu a todas as exigências do casamento. Se porém o escravo casou, ignorando-o o dono ou lh’o tendo proibido, não está obrigado ao dever conjugal e tem, antes, de obedecer ao dono, se ambas as coisas não puder fazer. Mas, nesta matéria, como em todos os atos humanos, devem levar-se em conta muitas circunstâncias particulares. Assim, o perigo que correrá a mulher de pecar contra a castidade, o prejuízo resultante para o dono, de o escravo não lhe fazer o serviço mandado e outro semelhante. E só depois: de todas bem ponderadas será possível decidir a quem deve o escravo obedecer de preferência ─ ao dono ou à mulher

RESPOSTA À QUARTA. ─ Em tal caso fica o dono obrigado a vender o escravo de modo a não lhe tornar mais pesado o ônus do matrimônio; sobretudo que não lhe faltará oportunidade de vendê-lo em qualquer parte, por um justo preço.

RESPOSTA À QUINTA. ─ Quem entra em religião ou recebe uma ordem se consagra ao serviço divino por toda a sua vida. Ao passo que um esposo está obrigado ao dever conjugal para com a esposa, não sempre, mas em tempos determinados. Logo, não colhe o símile. Além disso, quem entra em religião e recebe uma ordem obriga-se a certas obras que se lhe acrescentam às obrigações naturais, no concernente às quais está sujeito ao senhor. Mas este nenhum direito tem sobre as obrigações naturais a que se obrigou pelo matrimônio o escravo. Portanto não poderá quem é escravo fazer voto de continência sem o consentimento do senhor.