Surpreendente condenação pelo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé

Postado em 31-12-2012

Arnaldo Xavier da Silveira

 

O problema maior não é saber se a assistência absoluta e omnímoda do Espírito Santo seria em princípio possível. É claro que o seria. Na verdade, contudo, Nosso Senhor não quis dotar São Pedro, o Colégio dos bispos com o Papa, a Igreja enfim, de uma assistência em tais termos absolutos. Os caminhos de Deus nem sempre são os nossos. A barca de Pedro está sujeita a tempestades. Em princípio, nada impede que, sobretudo em períodos de crise, documentos pontifícios e conciliares que não preencham as condições da infalibilidade, possam conter erros e mesmo heresias.

  

Doce Cristo na Terra

 

1] Não sou sedevacantista. Nunca o fui, embora um ou outro comentarista pouco atento tenha pretendido ver traços de sedevacantismo no estudo sobre a possibilidade teológica de um Papa herege que faz parte de meu livro “La Nouvelle Messe de Paul VI, Qu’en Penser?” (Diffusion de la Pensée Française, Chiré-en-Montreuil, França, 1975). Com base na boa e tradicional teologia dogmática, não vejo que, em relação aos Pontificados dos últimos decênios, tenha sido teologicamente possível, em qualquer momento, declarar vaga a Sede de Pedro (ver Paul Laymann S.J., +1635, “Th. Mor.”, Veneza, 1700, pp. 145-146; e Pietro Ballerini, “De Pot. Eccl.”, Roma, 1850, pp. 104-105). Se a Divina Providência me der forças, publicarei em breve um estudo sobre os erros teológicos das teorias sedevacantistas correntes.

 

2] Para todo católico cioso de sua fé, o Papa é o “doce Cristo na Terra”, é a coluna e fundamento da verdade. No entanto, grandes santos, doutores e Papas, admitem a possibilidade de queda do Sumo Pontífice em erro, e mesmo em heresia. E não é de se afastar a hipótese teológica de que tal queda se dê em documentos oficiais do Papa, e em Concílios com o Papa (ver “La Nouvelle Messe…”, parte II, caps. IX e X, e meus trabalhos anteriores ali citados).

 

 

As palavras de Mons. Müller

 

3] Em 29 de novembro último, L’Osservatore Romano deu a lume um texto de Mons. Gerhard Ludwig Müller, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, ex-Santo Ofício, intitulado “Uma imagem da Igreja de Jesus Cristo que abraça todo o mundo”. Comentando o Discurso à Cúria Romana de 22 de dezembro de 2005, em que Bento XVI declarou que o Vaticano II deve ser objeto de uma “hermenêutica da reforma na continuidade” face a uma “hermenêutica da descontinuidade e da ruptura”, Mons. Müller escreve que a interpretação da reforma na continuidade “é a única possível segundo os princípios da teologia católica”, e prossegue: “fora desta única interpretação ortodoxa infelizmente existe uma interpretação herética, ou seja, a hermenêutica da ruptura, quer na vertente progressista, quer na tradicionalista. Estas duas vertentes têm em comum a rejeição do concílio; os progressistas pretendendo deixá-lo para trás, como se fosse só uma estação que se deve abandonar para alcançar outra Igreja; os tradicionalistas não querendo alcançá-lo, como se fosse o Inverno da Catholica”.

 

4] Não quero aqui aprofundar certos pontos dessa declaração, como a questão, já tão comentada e desenvolvida nos últimos tempos, da “hermenêutica da reforma na continuidade” e da “hermenêutica da descontinuidade e da ruptura”. Também não analisarei a frase em que Sua Excelência declara que progressistas e tradicionalistas “têm em comum a rejeição do Concílio”.  Nada direi, igualmente, sobre o título dado ao texto de Mons. Müller, onde se lê a expressão, hoje ambígua e suspeita nesse contexto, de “uma Igreja de Jesus Cristo que abraça todo o mundo”. E, ainda, não glosarei o fato histórico de que, afinal, depois de décadas, adveio uma condenação do progressismo, condenação essa que, se tivesse força canônica, ou pelo menos se doutrinariamente passasse a vigorar de fato na vida católica, no ensino dos seminários, como critério para as promoções eclesiásticas etc., seria alvissareira e prenúncio de tempos melhores, pois que o progressismo estaria sendo violentamente proscrito, como herético, pelo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.

 

5] Neste momento, quero apenas comentar a passagem onde Mons. Müller declara que os tradicionalistas dão ao Vaticano II uma “interpretação herética”. Sei que não se trata de um decreto da Congregação para a Doutrina da Fé. Sei que ele não especifica quais as correntes ditas “tradicionalistas” que condena, deixando assim expresso que são todas as que não aceitam incondicional e integralmente o Vaticano II. Sei, por fim, que a orientação ora adotada por Mons. Müller em relação a tradicionalistas e progressistas não é a dominante em muitos círculos vaticanos, e sobretudo não é a de Bento XVI. Tudo isso, contudo, não tira de suas palavras a enorme importância que têm.

 

 

Da gravidade extrema dessa condenação

 

6] Não se minimize, com efeito, a força dessa condenação. A lógica se impõe: quem interpreta hereticamente um Concílio Ecumênico é herege. Também não se diga que o fato não tem relevo por não se tratar de condenação canonicamente formal. É grave que o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé haja dito o que disse. É grave que, para ensaiar um primeiro anátema contra os tradicionalistas, ele se haja resguardado atrás do biombo de “doctor privatus”, pois, se o mal é tamanho, como seria interpretar um Concílio Ecumênico em sentido herético, não haveria a Santa Igreja de pronunciar-se oficialmente? Não seria esse um dever de todo “custos fidei” para com o povo fiel? Ademais, é de recear que doravante tais maneiras de pensar e agir marcarão os procedimentos da Congregação para a Doutrina da Fé.

 

7] Como ensina Santo Tomás de Aquino, “a heresia por si se opõe à Fé” (S.Th., II-II, 39, 1, ad 3), e “hereges são aqueles que professam a Fé de Cristo mas corrompem os seus dogmas” (S.Th., II-II, 11, 2, c). “A fé é a primeira entre todas as virtudes” (S.Th., II-II, q. 4, a.7, c.), “é muito mais grave corromper a fé, pela qual a alma vive, do que falsificar a moeda, pela qual se atende à vida temporal” (S.Th., II-II, q.11, a. 3, c.).

 

8] Do alcance da condenação. – O mundo moderno perdeu a noção da fé, como perdeu a noção da gravidade da heresia. A integridade da fé é o ponto de partida da vida católica. O herege formal não tem a virtude teologal da fé, e, de si, está excluído da Igreja. A condenação de Mons. Müller fez-se em termos genéricos e sintéticos. Dada a importância da matéria, os atingidos pelo ato têm o direito de pedir sejam explicitados o alcance e as consequências teológicas, canônicas e práticas que o anátema teria, ainda que apenas “in sede theoretica”, caso fosse válido.

 

 

O desvio teológico fundamental de Mons. Müller

 

9] Texto de Mons. Müller sobre o Magistério. – Na mesma declaração citada, Mons. Müller afirma que é princípio da teologia católica “o conjunto indissolúvel entre Sagrada Escritura, a Tradição completa e integral e o Magistério, cuja expressão mais alta é o concílio presidido pelo sucessor de são Pedro como cabeça da Igreja visível”.

 

10] O pressuposto da condenação dos tradicionalistas está portanto em que, segundo Mons. Müller, não pode haver erro ou heresia em documento magisterial, quer pontifício quer conciliar, mesmo naqueles que não preenchem as condições da infalibilidade. Com efeito, ao proclamar o caráter indissolúvel da união entre Sagrada Escritura, Tradição e Magistério, ele revela que concebe este último como garantido contra todo e qualquer erro ou heresia. Ademais, ao não falar simplesmente em Tradição, mas ao qualificá-la como “completa e integral”, Sua Excelência subentende que a Tradição inclui os ensinamentos conciliares ainda que não garantidos pelo carisma da infalibilidade; e que inclui, portanto, as “novidades de tipo doutrinal” (ver item 13, adiante) do Vaticano II, que teriam assim força de dogma, só podendo ser postas em dúvida ou negadas por hereges.

 

 

O Vaticano II e a infalibilidade da Igreja

 

11] Magistério extraordinário?  Segundo o Vaticano I, o Papa é infalível quando, ensinando para a Igreja Universal, em matéria revelada de dogma ou moral, define solenemente determinada verdade como devendo ser crida pelos fiéis. Conforme a doutrina sedimentada pelos doutores, essas condições da infalibilidade papal aplicam-se, mutatis mutandis, aos Concílios Ecumênicos, cujas definições infalíveis devem, portanto, impor aos fiéis a obrigação estrita de professar as doutrinas assim propostas. Ora, Paulo VI declarou repetidas vezes que no Vaticano II não foi proclamado nenhum novo dogma do Magistério extraordinário. É o que os teólogos de boa doutrina têm também afirmado à exaustão. Dessa forma, é absolutamente perturbador para o fiel comum, e inaceitável por um pensador católico, o fato de que Mons. Müller pretenda que no Vaticano II não pode haver nenhum desvio doutrinário. Onde estará, nessa matéria, o fundo do pensamento de Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé?

 

12] Magistério ordinário infalível?  Segundo o Vaticano I, é também infalível o “Magistério ordinário e universal”. Para tal, a Igreja, em seu ensinamento quotidiano, há de impor uma verdade como devendo ser crida, e deve fazê-lo não apenas por todo o orbe, mas também com continuidade no tempo, de tal forma que se torne patente a todo fiel que aquela verdade foi revelada e deve ser professada sob pena de abandono da fé. O conceito de “universal” nesse contexto nem sempre é bem interpretado, pois há quem o entenda como se indicasse apenas a universalidade no espaço, isto é, em todo o mundo. Segundo esse modo de ver, todos os ensinamentos do Vaticano II seriam infalíveis, uma vez que foram solenemente aprovados pelo Papa, com a unanimidade moral dos bispos de todo o orbe. Na verdade, atos magisteriais singulares do Papa e do Concílio, como ocorreram no Vaticano II, não podem definir dogmas do Magistério ordinário, por lhes faltar a continuidade no tempo e a consequente impositividade que vinculariam de modo absoluto a consciência dos fiéis.

 

13] As “novidades de tipo doutrinal” do Vaticano II. – Em 2 de dezembro de 2011, Mons. Fernando Ocáriz, Vigário-Geral do Opus Dei e professor de teologia, publicou no L’Osservatore Romano um artigo intitulado: “Sobre a adesão ao concílio Vaticano II.”  Ali se lê: “Houve no Concílio Vaticano II diversas novidades de tipo doutrinal (…). Algumas delas foram e ainda são objeto de controvérsias acerca de sua continuidade com o Magistério precedente, ou seja, acerca da sua compatibilidade com a Tradição. A seguir, Mons. Ocáriz reconhece “as dificuldades que podem encontrar-se para compreender a continuidade de alguns ensinamentos conciliares com a Tradição. […] Permanecem legítimos espaços de liberdade teológica para explicar de uma forma ou de outra a não contradição com a Tradição de algumas formulações presentes nos textos conciliares e, por isso, para explicar o próprio significado de algumas expressões contidas naqueles trechos.” Veja-se a diversidade de tom entre esse texto e a condenação lançada por Mons. Müller, embora Mons. Ocáriz diga, logo a seguir, que “uma característica essencial do Magistério é a sua continuidade e homogeneidade no tempo.” Em 28 de dezembro daquele ano publiquei em meu site um artigo intitulado “Grave Lapso Teológico de Mons. Ocáriz”, no qual defendi, como em trabalhos anteriores, que “Jesus Cristo poderia, evidentemente, ter dado a São Pedro e seus sucessores o carisma da infalibilidade absoluta. […] O problema não consiste em saber se a assistência do Espírito Santo, com tal alcance absoluto e geral, seria em princípio possível. É claro que o seria. Na verdade, contudo, Nosso Senhor não quis dotar São Pedro, o Colégio dos bispos com o Papa, a Igreja enfim, de uma assistência em tais termos absolutos. Os caminhos de Deus nem sempre são os nossos. A barca de Pedro está sujeita a tempestades. Em resumo: a teologia tradicional afirma que consta da Revelação que a assistência do divino Espírito Santo não foi prometida, e portanto não foi assegurada, de forma assim irrestrita, em todos os casos e circunstâncias. Essa assistência garantida por Nosso Senhor cobre de modo irrestrito as definições extraordinárias, tanto papais quanto conciliares. Mas as monumentais obras teológicas, especialmente da idade de prata da escolástica, revelam que é possível haver erros e mesmo heresias em pronunciamentos papais e conciliares não garantidos pela infalibilidade”. É o que ora reafirmo.

 

 

Três respeitosos pedidos a Mons. Müller

 

14] Profissão de fé católica. – Em vista do referido texto do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, peço aqui que ele receba a profissão de fé, que ora faço, em tudo quanto autenticamente ensina a Santa Igreja, nos seus dogmas do Magistério extraordinário papal ou conciliar, e nos dogmas do Magistério ordinário e universal. Afirmo minha plena aceitação das demais verdades da doutrina católica, cada qual com a qualificação teológica que os doutores tradicionais lhe atribuem. E repudio como teologicamente sem propósito e facciosa a acusação de que incidi em heresia por apego à Tradição.

 

15] Do sentido e do alcance da condenação. – Tendo em vista a necessidade de precisão num ato desse porte teológico, como é a condenação, ainda que unicamente em sede doutrinária, de uma corrente de pensamento de grande expressão em todo o orbe católico, peço a Mons. Müller que indique melhor o alcance teórico e prático de seu anátema, segundo as observações do item 8 retro. Ao formular este pedido, tenho também em vista a salvação das almas simples, que abraçam com fé plena os dogmas da transubstanciação, da virgindade de Maria antes, durante e depois do parto, e todos os demais, mas que não têm acesso a distinções teológicas subtis, podendo ter a fé abalada com a notícia de que o Prefeito do antigoSanto Ofício declarou que os tradicionalistas, indistintamente, são hereges.

 

16] Da possibilidade de erro em documentos do Magistério. – Como católico fiel, conhecedor da autoridade dos Dicastérios vaticanos, e também como autor de escritos que têm não poucos leitores, pelos quais me sinto de algum modo responsável perante Nosso Senhor, julgo-me no direito estrito de pedir filialmente ao Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé que declare, de modo formal, claro e específico, se é falsa a tese que defendi em meus trabalhos retro citados, e que ora defendo, de que é teologicamente possível a existência de erros e mesmo heresias em documentos pontifícios e conciliares que não preencham as condições necessárias para a infalibilidade.

 

17] Nestas vésperas do Santo Natal, invocando o Divino Infante, Sua Mãe Santíssima e São José, patrono da Igreja universal, formulo de público estas considerações e estes pedidos, em legítima defesa e cum moderamine inculpatae tutelae, dado que pública foi a agressão.