Um cardeal soberbo contra o papa Francisco

Postado em 20-09-2017

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Preferia não tocar no assunto. Mas, como se percebe que, infelizmente, muitos católicos, diante da grande confusão reinante na Igreja, estão deixando-se iludir pelas críticas dos cardeais pupilos de Ratzinger ao papa Francisco, julgo oportuno dizer uma palavra sobre o episódio deplorável protagonizado recentemente pelo cardeal Müller, por ocasião do lançamento do seu último livro.

Consta que o purpurado, que se orgulha dos seus pergaminhos acadêmicos e da sua produção teológica, na referida oportunidade proferiu críticas severas ao papa Francisco, acusando-o de não exercer sua autoridade magisterial fundamentado em uma teologia competente.

Salta aos olhos da opinião pública a deselegância do bispo alemão defenestrado há pouco do antigo Santo Ofício. Enquanto esteve à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, tergiversou em torno da Exortação da Amoris laetitia, decepcionando os outros cardeais signatários das dubia. Com efeito, se quisesse  dirigir uma correção ao santo padre, porque estava convencido de algum sério problema doutrinário que compromete a pureza da fé, deveria agir com mais discernimento e seriedade, a exemplo dos cardeais signatários que não vacilaram em nenhum momento.

Mas não. Enfatuado pelos elogios e demonstrações de interesse pelo seu último livro, Sua Eminência cardeal Müller, um douto alemão, desdenha publicamente do portenho Francisco I como um papa ignorante. E o pior de tudo é que ele, um modernista acusado por vários teólogos competentes de ter uma interpretação heterodoxa dos dogmas da virgindade perpétua da Bem-aventurada sempre Virgem Maria e da Presença Real de Nosso Senhor Jesus Cristo na Sagrada Eucaristia, exibe-se agora como paladino da tradição católica.

É pasmoso. Impossível não recordar aqui o que ensina Nosso Senhor no Evangelho: “Por que vês tu pois a aresta no olho de teu irmão: E não vês a trave no teu olho? Ou como dizes a teu irmão: Deixa-me tirar-te do olho uma aresta: Quando tu tens no teu uma trave? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então verás como hás de tirar a aresta do olho de teu irmão.” (Mt 7, 3-5)

Chega a causar indignação a crítica do cardeal Müller ao papa Francisco no tocante a uma supremacia da Secretaria de Estado em detrimento do prestígio da Congregação para a doutrina da Fé. Na verdade, isto é consequência da reforma da cúria romana sob o pontificado de Paulo VI, que reestruturou todos os órgãos da Santa Sé segundo as exigências da nova eclesiologia emanada da Lumen gentium e da Gaudium et spes.

 Os católicos fiéis à tradição da Igreja sempre apontaram esse erro e disseram que dele viriam grandes males e perigos para a preservação da integridade da fé. A partir de então, como o Santo Ofício, que era presidido pelo papa, era sucedido pela Congregação para a Doutrina da Fé, que passou a ter o mesmo status das outras congregações presididas por cardeais, estava claro que o que contava era a praxis e não a doutrina. Ademais, a Congregação para a Doutrina da Fé, em de vez de ter inquisidores, trabalha em parceria com a Comissão Teológica Internacional, a fim de fomentar uma teologia em constante movimento, em constante evolução conforme o espírito do Vaticano II, tudo dentro de um ambiente de “construtivismo teológico”, mais de animação do debate teológico que de exercício efetivo do magistério.

Sucede que às vezes surge um teólogo mais vaidoso, mais arrogante e prepotente, e quer que suas ideias teológicas sejam postas em prática e governem toda a Igreja. Parece ser efetivamente o caso do cardeal Müller. Não quer que a doutrina tradicional volte a governar a Igreja; quer que as idéias dele, exaradas em densos tratados lançados pelas célebres editoras da pátria de Martinho Lutero e aplaudidas por bajuladores, dominem todos os quadrantes da Igreja Católica. Quer ser citado e comentado em todas as universidades.

Ao contrário, o papa Francisco é mais coerente e mais simples. Está convencido de um historicismo teológico. Está convencido (e com razão) de que o Vaticano II representou um salto, uma ruptura com a Igreja tridentina. E por isso  tem desprezo pelos adeptos da hermenêutica da continuidade, que, para ele, não passam de tagarelas. Solenes tagarelas defensores de um discurso que é uma patacoada.

De maneira que, neste sentido, Francisco I, para a tradição, é muito mais benévolo que todos os ratzingerianos. Estes tentam engabelar e manobrar os tradicionalistas com falsas promessas, como, por exemplo, Ratzinger que mentiu para Mons. Lefèbvre aquando da assinatura do protocolo de maio de 1988, prometendo-lhe  a licença para consagrar um bispo.

Para Francisco, nós tradicionalistas somos católicos atrasados, católicos demodés, nostálgicos, legitimistas, monarquistas ou fascistas. Não sei quantos epítetos mais lhe ocorrerão para nos classificar. E por isso, parece, ele gostaria de ver-nos reunidos todos em torno da Fraternidade São Pio X, a fim de que a Igreja do Vaticano II pudesse caminhar e avançar livremente, quem sabe, rumo a um Concílio Vaticano III, que adaptaria realmente a Igreja ao mundo pós-moderno. E não se tente impedir-lhe o caminho, que ele passará por cima. Ele conta com o apoio da maioria.

Já os teólogos ratzingerianos, vaidosos e convencidos de sua perícia, consideram-nos heterodoxos. E tentam ilegitimamente exercer sobre nós um juízo condenatório.

Sendo assim, parece-me incompreensível que haja católicos da tradição aplaudindo as alfinetadas dos ratzingerianos contra o papa Francisco. Não sabem o que é ter, por exemplo, de assistir a uma aula de teologia em uma universidade romana, antro de ratzingerianos, de bico calado, ouvindo aquelas bobagens de que Dignitatis Humanae está conforme a Quanta cura e o Syllabus, ou aquela pérola de que a doutrina da Gaudium et Spes sobre os fins do matrimônio é consoante aos ensinamentos de Pio XI e Pio XII.

E como hoje esses ratzingerianos, que antes tinham uma aliança com os modernistas mais exaltados, como, por exemplo, com um cardeal Martini, para poder vencer a resistência da antiga escola romana e poder empreender as reformas do Vaticano II, como hoje vêem seus antigos aliados no poder, é bem possível que na referida faculdade de teologia, para cúmulo da hipocrisia e do oportunismo, se ouça a enormidade de que Amoris laetitia está conforme com a tradição perene da Igreja.  Mas, graças a Francisco, o aluno poderá zombar e dizer que não  pensa assim o papa, porque se deve estar aberto ao Espírito das novidades e surpresas que não cessa de renovar e inovar a Igreja. E porque cada um tem a sua concepção de bem e de mal e deve segui-la.

Por isso, viva o papa Francisco. E cale-se o seu detrator.

Anápolis, 20 de setembro de 2017.

Quarta-feira das têmporas de setembro.

Memória de Santo Eustáquio.