Voltaire e o Vaticano II

Postado em 09-10-2012

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Em sua célebre obra A crise do mundo moderno o padre Leonel Franca reproduz uma importante correspondência entre Voltaire e D’Alembert, os dois grandes ideólogos da Enciclopédia, que foi o marco do Iluminismo.

A referida correspondência revela a grande astúcia dos revolucionários na disseminação das suas ideias temerárias e falsas por meio de uma ardilosa e sutil superação de toda resistência dos setores mais conservadores da sociedade e das autoridades em geral.

Mas, como se sabe, no Antigo Regime não houve apenas a tática revolucionária, houve também muita irresponsabilidade e incúria da parte da realeza e das elites que deveriam exercer sua missão de preservar a ordem. Por exemplo, Rousseau tinha livre trânsito na corte e nos salões da nobreza. Adotavam-se algumas medidas repressivas isoladas mas insuficientes diante da gravidade da situação. De fato, a Revolução foi um castigo por causa de tanta leviandade e negligência no cumprimento dos deveres por parte daqueles que dirigiam as instituições.

Assim também, muitas vezes, ocorre nos meios católicos da tradição. Conta-se que aqui no Brasil nos anos cinquenta houve um cardeal arcebispo, homem de boa doutrina e piedoso mas muito ingênuo no juízo sobre os homens e os acontecimentos e, por isso, acabou favorecendo a penetração e o avanço do modernismo em sua diocese. Diz-se também que, apesar da excelente Humani generis de Pio XII, os sequazes da nova teologia não foram reprimidos como necessário. Isto, para não falar da remoção-promoção de mons. Monttini para a sede cardinalícia de Milão. Em consequência, tivemos o Vaticano II como uma espécie de Revolução Francesa dentro da Igreja, precedida por um “iluminismo eclesiástico”, o modernismo e o neo-modernismo.

Na correspondência reportada pelo padre Leonel Franca,Voltaire dirige-se a D’Alembert dizendo-lhe que na Enciclopédia havia alguns verbetes muito ruins referentes à metafísica e à teologia. Dizia que eram ruins simplesmente porque eram ortodoxos, quer dizer, conformes à sã filosofia perene! D’Alembert responde-lhe dizendo que, efetivamente, na obra havia tais verbetes ruins para dissimular os propósitos dos enciclopedistas diante dos censores. Mas tranquiliza-o dizendo-lhe que o tempo se encarregaria de distinguir o que pensavam do que diziam.

Essa tática revolucionária certamente foi empregada durante o Vaticano II para vencer a resistência dos conservadores, enganar a cúria romana que então abrigava teólogos brilhantes e virtuosos como o cardeal Ottaviani e mons. Dino Stafa. Nas atas do Vaticano II há muita coisa boa que desagrada aos Voltaires de hoje e dissimula a realidade aos olhos dos incautos.

Pode-se também confirmar a utilização de tal expediente se se leva em consideração o que disse o teólogo da nouvelle teologie, o padre dominicano Yves Congar, feito cardeal mais tarde por João Paulo II. Ele disse que Paulo VI falava para a direita e agia para esquerda, e o que contam são os fatos e não as palavras. Essa declaração de Congar dispensa qualquer comentário.

Lembro-me bem de que quando fui ordenado subdiácono pelo bispo D. Cândido Alvim Pereira ele disse que quando foi aprovada a constituição conciliar sobre a liturgia Sacrrossanctum Concilium os padres conciliares jamais poderiam imaginar a reforma litúrgica que em nome do Vaticano II dentro de poucos anos se realizaria. A mesma coisa disse o saudoso cardeal Stickler quando me ordenou presbítero.

Igualmente a Declaração conciliar sobre a liberdade religiosa, que contradiz todo o magistério precedente ( que não apenas condenava a tolerância dogmática mas proscrevia a liberdade civil de cultos como um mal, ao contrário do Vaticano II que diz que é um direito radicado na natureza humana!), afirma, ao modo sorrateiro de D’Alembert e Voltaire, que o direito público eclesiástico permanece inviolável e os deveres dos Estados em face da Igreja permanecem em vigor. Ora, poucos anos após o concílio, quase todas as concordatas entre a Santa Sé e os diversos estados eram reformadas no sentido liberal, sendo a mais tristemente célebre a reforma da lei sobre a tolerância religiosa na Espanha, feita expressamente a pedido de Paulo VI.

Conhece-se a árvore pelos seus frutos, diz o Evangelho. E o filósofo da hermenêutica, Gadamer, dizia que um método de avaliação de uma teoria era verificar a história dos seus efeitos, quer dizer, é preciso fazer uma leitura posterior dos textos.

Pois bem, a leitura posterior dos documentos do Vaticano II, por ocasião dos festejos do seu cinquentenário, vem confirmar o que os ímpios iluministas disseram sobre Enciclopédia: o tempo se encarregará de distinguir o que dissemos do que pensamos.

Rahner, Congar, De Lubac e outros queriam o ecumenismo humanista, o cristianismo anônimo, a aceitação pela Igreja dos “valores” seculares da cultura moderna, a autonomia das realidades temporais. Tudo isso está mais ou menos latente no Vaticano II e hoje é a realidade que vivemos não só no mundo mas até nos ambientes católicos.

De maneira que a leitura posterior das atas do Vaticano II prova que tal era o seu sentido.

Anápolis, 9 de outubro de 2012.
Festa de São João Leonardo, conf.