Arquivo de março de 2010

A nobreza, a revolução e o rei da Espanha

Postado por Admin.Capela em 09/mar/2010 - Sem Comentários

Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa

A notícia de que o rei da Espanha sancionou uma lei que amplia consideravelmente a possibilidade de praticar aborto naquele país suscitou um interesse pelo papel da realeza e da nobreza no mundo moderno.

É preciso reconhecer que há muito equívoco, muita confusão em torno da idéia de nobreza. A inveja e a soberba que sempre amesquinharam o coração do homem sem Deus encontraram em nossos dias um poderoso aliado na campanha difamatória da revolução mundial contra o próprio conceito de nobreza. Por outro lado, cumpre dizer que muitos membros da nobreza trabalham para a sua própria ruína mostrando-se tão arrogantes e empertigados, tão endeusados, que precisam cair num abismo de opróbrios para que se lembrem de que são simples mortais. Acham que, sendo assim tão altivos, combatem o igualitarismo da democracia moderna, quando, na verdade, só ajudam a passar uma imagem antipática e impopular da monarquia.

Hoje, em conseqüência da ideologia revolucionária, confunde-se a nobreza com o odioso regime de castas, em que a sociedade se divide em classes incomunicáveis, uma estratificação social fundada numa visão fatalista do destino do homem, como ocorria no antigo hinduísmo. Nada mais falso. A nobreza cristã, principalmente a portuguesa, sempre conheceu a mobilidade social, conforme demonstram com muitos documentos históricos Gilberto Freyre em Casa grande e Senzala e Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Diz este autor que “a nobreza permaneceu aberta ao mérito ou ao êxito, não se enquistando, como noutros países; e ao se tornar acessível com certa facilidade, favoreceu a mania geral de fidalguia. (Em Portugal somos todos fidalgos, diz Fradique Mendes numas das cartas).[1]

Que significa nobreza? Transmite-se ela pelas gerações? Tem ainda algum valor para a sociedade hodierna a antiga nobreza da Europa? Proponho-me analisar essas questões.

Quando se fala em nobreza, a primeira idéia que acode à mente do homem é ser o antônimo de vileza. Vil é aquilo que não tem valor, desprezível, indigno. Portanto, nobre é aquilo que é valoroso, magnânimo, generoso, liberal.

Nada mais incompatível com a nobreza do que a avareza,  a perfídia e a crueldade. Admite-se um nobre luxurioso, mas um nobre avaro e traidor dos valores tradicionais é inconcebível. O vício, com efeito, será sempre um grave senão, sobretudo em um príncipe que não deve jamais estar sujeito à vontade alheia e ser sempre senhor da sua própria vontade. Mas a história  prova que houve grandes monarcas que não se notabilizaram pela pureza de costumes e, não obstante, foram magnânimos e valorosos na defesa da cristandade e do império.

Recorde-se, a propósito, a figura  do rei da Ludwig da Baviera, que terminou seus dias demente e foi tão bem retratado por Luchino Visconti. O infeliz era nobre apesar das suas debilidades morais, pois era um homem generoso e mentor das artes. Maria Madalena, descendente de nobre prosápia israelita, pobre cortesã, ainda assim conservava sua nobreza, porque seu coração ansiava pelo Salvador e com isso se distinguia dos outros homens cínicos e vulgares. Grande mulher! Que belo quadro lhe traçou Plínio Salgado em paginas realmente antológicas da sua  Vida de Jesus. Mas, a rigor, ser nobre é viver uma vida santa segundo os ensinamentos da Santa Igreja. Não é por acaso que muitos solares fidalgos contam entre seus antepassados grandes santos.

A segunda questão é saber se a justo título a nobreza se transmite por gerações sucessivas. Em princípio, sim, ainda que haja o perigo da degenerescência. Diria que a nobreza de sangue tem fundamento cientifico se a ligarmos ao dado biológico da Lei de Mendel que a sociologia considera como o fator hereditariedade para o estudo da sociedade e a boa pedagogia leva em conta para descobrir e explorar as aptidões do educando.

Com efeito, a experiência ordinária nos ensina como a simples recordação do bom nome dos antepassados ajuda o homem a portar-se bem, a não querer desonrar a memória dos seus avós. Ai de quem não tem berço! O poeta Manuel Bandeira tem um poema encantador em que apela para o brio de uma ilustre estirpe brasileira:

 

Hoje, afilhado, és pirralho.

Mas a infância terá fim

E a herança ilustre comanda:

Álvaro, olha que és Carvalho!

Olha que és Cesário Alvim!

Olha que és Buarque de Holanda! [2]

 

É claro que sempre haverá o risco de a nobreza ser tão antiga, tão remota que quase já se extinguiu com a inclemente sucessão dos séculos que tudo devora. É raro um caso como o de São José, da real casa de Davi, que tinha trocado o cetro havia tanto tempo por um pobre serrote de carpinteiro sem perder sua dignidade régia. Muitos nobres destronados, infelizmente, subsistem de forma pouco decorosa, não imitando o santo patriarca.

A terceira questão é saber que significado poderá ter ainda hoje a antiga nobreza. Diria que tem, sim, uma função dentro da sociedade. Não só porque, realmente, há ainda nobres dignos de sua ilustre origem, mas também porque, na mesma medida em que fazem questão de se apresentar como tais, dão à sociedade o direito de exigir-lhes a prática das virtudes e o cumprimento dos deveres de seu estado. Ser valoroso sem pertencer a ilustre solar, mas só por bom uso da liberdade, é mérito pessoal, é algo inusitado que nos chama atenção pela sua singularidade (Normalmente, filho de peixe peixinho é!), mas ser valoroso como membro da nobreza é dever indeclinável.

Em conclusão, que pensar da nobreza hoje, que dizer do rei da Espanha? Se, por um lado, a atitude que tiveram há uns vinte anos o rei da Bélgica e mais recentemente o grão-duque do Luxemburgo recusando-se a sancionar a lei do aborto nos encheu de alegria e nos edificou ao ver que em nossos dias ainda há alguns príncipes católicos que honram suas tradições e fazem jus à fidelidade de seus súditos católicos, por outro lado, o rei Juan Carlos se despojou de toda sua nobreza, envileceu-se, tornou-se um rei desprezível como Herodes. Por medo de perder um trono já combalido pelo republicanismo do nosso triste tempo, desonrou a memória do seu avô o rei Afonso XIII, que consagrou a Espanha ao Sagrado Coração de Jesus e não se submeteu à intimidação da maçonaria para filiar-se à seita secreta. Juan Carlos de Bourbon é antípoda da nobreza cristã: covarde, sanguinário, oportunista, pérfido. Que os espanhóis providenciem outra dinastia!

 

Anápolis, 9 de março de 2010.

Festa de Santa Francisca Romana

 


[1] – BUARQUE DE HOLANDA, Sergio. Raízes do Brasil, p. 14, SP. 2007.

[2] – BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. RJ, 1993.

Em busca do tempo de Alceu

Postado por Admin.Capela em 02/mar/2010 - Sem Comentários

Marcos Cotrim de Barcellos (PPGHIS/IFCS/UFRJ)

 

Resenha– MENDES, Candido. Dr. Alceu: da “persona” à pessoa. São Paulo: Paulinas, 2008

 

Alceu  Amoroso Lima (1893-1983) foi um dos principais pensadores sociais da cena brasileira no século passado, com interesses que vão das questões políticas às econômicas e culturais, para cujo tratamento trouxe uma perspectiva assinalada por sua fé católica e sua irrenunciável vocação de crítico literário. Professor na Faculdade Nacional de Filosofia (hoje UFRJ), escritor com mais de oitenta títulos publicados, membro da Academia Brasileira de Letras, co-fundador da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, é hoje mais lembrado pela defesa que fez dos direitos civis nos tempos do Regime Militar. Jornalista que também era, ficou mais conhecido do grande público pelo pseudônimo, Tristão de Athayde.

Trazendo a data que recorda a morte de Amoroso Lima há um quarto de século, e surgindo neste 2009, ano que assinala os noventa anos de estréia de Tristão de Athayde, o livro do professor Candido Mendes tem atributos para tornar-se referência importante para todos que desejarem se aprofundar no campo das interpretações do Brasil.

Candido Mendes vale-se do olhar do próprio Tristão de Athayde – espectador privilegiado do diálogo entre fé e razão na cultura do século XX e ator no cenário que confrontou literatura, religião e política no Brasil –, para oferecer uma narrativa situada no mundo revolucionado em que Alceu “toma a palavra”. Mendes junta, com autoridade de “herdeiro espiritual”, à bibliografia a respeito de um dos mais importantes pensadores católicos contemporâneos, este relato do desenvolvimento, mais que biográfico, de uma visão de mundo. Deixa nele patente a admiração pelo homenageado, sem ceder no empenho pelo descrever preciso a que o conduz sua erudição, aliada ao conhecido estilo que permanentemente desafia o leitor.

Entre os títulos publicados por Candido Mendes, em que se destacam temas relativos à liberdade no mundo contemporâneo, encontra-se o viés teórico que em parte explica a envergadura do livro aqui resenhado: a abordagem ética, ao mesmo tempo humanista e confessional, do mundo da política, em suas expressões sociais, econômicas, ambientais ou jurídicas. O problema de uma coexistência pacífica das diferenças, tantas vezes exacerbadas com vezo pluralista, é trazido seguidamente à pauta de uma constatação do caráter globalizado, intrincado, dessas questões comuns a todos os homens. Títulos sobre a democracia, o progresso, a educação, a Igreja versus populum, o diálogo das culturas, o ecumenismo, acham-se ao lado de duas obras jubilares sobre o “Dr. Alceu”, publicadas em 1984 e 1994. O ritmo de Dr. Alceu: da ‘persona’ à pessoa traz este testemunho, o de um escrito que se faz mais a partir do personagem evocado do que sobre ele, equilibrando-se entre a urgência dos problemas que espicaçam a consciência e a disponibilidade ao mistério, que Mendes procura valorizar mediante o arejamento confessadamente “pós-moderno” de sua abordagem.

Os seis capítulos do livro aparecem como superposições de tomadas que tentam enquadrar o personagem sem reduzi-lo ao script historiográfico vida-obra-pensamento, mas sem privar o leitor do efeito didático dessa técnica. Tristão dá a perspectiva que domina a observância do convertido, com sua ortodoxia militante, dá identidade às transformações que levaram Alceu nos caminhos da sensibilidade à questão social, do engajamento político, do testemunho solicitado pelos “sinais dos tempos”. A “toma da palavra” por Alceu alarga a cena e dimensiona a estatura do personagem para além da récita, sob o olhar do crítico.

Intérprete, Mendes mostra como a integração de vida, fé e pensamento aí subsiste como a força de um sentido, categoria com que matiza a trajetória de Alceu, convertido de 1928, e capta as nuances que entregaram o coração desse admirador de Jackson de Figueiredo à fé do confidente de Leonel Franca e à inteligência do leitor de Jacques Maritain. Quem teria dado o tom do acorde capaz de, se não evitar, moderar o integrismo do Alceu cultor da ordem, fora um Tristão seu preceptor. Perceber a inquietação de Pascal, o processo da vida de Bergson, a excelência do pequeno de Chesterton, a terceira via de Mounier, o mistério de Gabriel Marcel, o insight de Lonergan, a recepção de Jauss, é uma das chaves de entrada do texto, na medida em que dá sentido histórico àquilo que poderia ser visto como simplificação do perfil de um Alceu fiel ao magistério ultramontano dos papas, fundador da Ação Católica e da LEC (Liga Eleitoral Católica), debatedor do modernismo de 1922 e dos pioneiros de 1932.

Candido Mendes evita porém que a ultrapassagem da pecha de conservador pelas audácias do “libertário” seja recebida pelo leitor como um abandono das altas causas que abonam o caráter do homenageado, usando expressões que só aos poucos sedimentaram-se no discurso de Alceu. Mendes explica que este, “atento ao sinal dos tempos”, viu-se amparado pela percepção de que deveria “romper com a pequena ordem em busca da grande ordem.” (p.75) Não como uma posição meramente teórica, mas pelo discernimento existencial de que “a Igreja não é legionária mas missionária.” (p.77) A relevância da observação fica realçada quando se recorda que a Igreja católica estava mobilizada no século XX pelas estratégias de “romanização”, centralizando seu magistério no Papado por meio de um processo de clericalização das praxes de piedade e da revisão sistemática do chamado “catolicismo popular” herdado das tradições coloniais. Esse catolicismo de “reação”, anti-liberal, anti-protestante, muitas vezes de tom condenatório e moralista, em contínua suspeita em face da modernidade, aparece no livro como a atmosfera do mundo em que Alceu se converteu e no qual o escritor diletante deu “adeus à disponibilidade” na década de 1920. A revisão dos valores desse mundo será tanto objeto quanto perspectiva no texto de Mendes.

Nesta medida, a “toma da palavra” por Alceu é descrita mais como testemunho do que como discurso politicamente correto à cata de uma práxis oportunamente aggiornata. O autor atribui à ortodoxia do seu “olhar sobre a totalidade” o condão de fundir existencialmente transcendência e história no protagonismo do Alceu que, embora “católico pletórico”(p.128), teria, no decorrer de seu processo de síntese pessoal, evitado agir com a “veleidade de partir de uma tese.” (p.131)

Em sua busca do tempo do Dr. Alceu, Candido Mendes serve-se do tema da viagem nos dois primeiros capítulos, em que recorre ao tópico bíblico da transformação do “homem velho” em “homem novo”, misturando percursos interiores com excursões concretas, alinhando produção intelectual, inserção política e publicações especialmente representativas do homem de letras. Por isso pega-nos desprevenidos, o enquadramento crítico de Alceu no capítulo III, A Representação da Realidade. De fato, seria mais fácil ceder à naturalização da tese promovida pela vertigem do ritmo narrativo, a chancelar o “grande récito” do herói católico pelo reforço do estereótipo, cuidadosamente evitado pela sobriedade que permeia o painel da obra do intelectual engajado.

Aqui torna-se claro um dos motes do livro, uma quiçá irônica descoberta do outro. O olhar de Tristão é apresentado defrontando-se com o “outro Brasil”, descoberto nos sertões, desde a “ética fundadora de Euclides” até a programática Introdução ao livro sobre Afonso Arinos (1922), como rito de passagem de Alceu, rito de “descida ao histórico concreto”. Observa Mendes que “no Ursprung de Tristão, a disciplina da subjetividade na ‘abertura do outro’, e na reta intenção do crítico, permitiria chegar-se por acréscimo, a todos os demais”.(p.251) O outro será o epicentro da “grande ordem” que vai conformando o Alceu maduro, abrindo-o a uma realidade mais histórica, menos mediada pelo formalismo, pela “luxúria da cabeça”, que teria gerado nele o “eu-de-serviço”.

Tal abertura é descrita como uma dialética em que Alceu é levado por Tristão a se defrontar com Alberto Torres, Oswald de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Graça Aranha, em meio aos abalos que “sacudiram o Parnaso” nacional em 1922, lançando mão de uma “pedagogia do susto e da quebra”. (p. 268) Ao formar seu critério de leitura da realidade cultural (uma então moderna “crítica expressionista”), transcendendo o padrão de Hippolyte Taine (meio-raça-momento) e dialogando com Sílvio Romero, Tristão teria posto em marcha a saga de Alceu em busca de seu próprio tempo. Como relacionar estética modernista e catolicismo romanizado? descoberta do Brasil brasileiro e invocação da razão clássica? “abertura à surpresa do concreto” e assentamento do discurso sobre a “instauração metafísica da vida na ordem”? (p.271) Mendes esclarece o ponto, citando o testemunho-síntese de um Alceu maduro, datado de 1952, pelo qual não haveria contradição entre ser “católico em religião, tomista em filosofia, democrata em política e modernista em arte. Nem antimodernista porque católico como Jackson; nem anticatólico, porque modernista como Mário de Andrade. Ao contrário, católico e moderno em arte” (p.271).

O capítulo três prossegue depurando a imagem do Dr. Alceu de possíveis assédios da retórica canonizadora da persona, submetendo-a ao crivo pelo qual Charles Péguy faz passar “o mundo da burguesia triunfante”, à atmosfera da mouvance de Marcel Proust, com sua anamnese criadora ( “O referencial a Proust vai urdir no fundo do espírito de Alceu outra dessas fieiras secretas de todo seu percurso intelectual”, diz Mendes à p. 275), às mediações do vivido nas rotinas desgastadas pelo absoluto, que lhe proporciona Gabriel Marcel. O autor faz questão de mostrar que desde o início, o olhar de Alceu firma-se sobre a mirada fenomenológica sempre resguardada no percurso, onde “encontra-se o segredo de sua reflexão”, capaz de moderar-lhe a sedução analítica do cogito (p.283).

Entre o jornalista da disponibilidade elegante da belle époque e o escritor universal forjado pelo neotomismo, Mendes lança a ponte da cultura filosófica, teológico-política, protagonizada por Jackson de Figueiredo – com sua Livraria Católica e o caudal apologético que conflui no Centro Dom Vital e na revista A Ordem –, e pelo “Cardeal sutil”, Dom Sebastião Leme, revelando interlocutores fundamentais na síntese de Alceu. Com eles e por eles, tomam da palavra o sociólogo, o articulista, o panegirista, o memorialista, cada qual em seu desempenho, discernidos pelo autor ao longo do capítulo.

A rotina do cogito escolástico, indo das formas concebidas pelo crítico para as idéias esgrimidas pelo erudito, e destas para os acontecimentos percebidos pelo analista de conjunturas, para voltar dialeticamente aos universais garimpados na cultura e na história, dá à “representação da realidade” o endereço da “conversão” ao “eu-de-serviço”. O leitor percebe melhor, a partir do quarto capítulo, uma espécie de definição de rumo do escrito, anunciando o desfecho em que o autor nos restituirá o católico libertário, mais social-democrata (clamando por “socialismo com justiça”) do que democrata-cristão.

Mendes traça a trajetória dos “adeuses”, pontuada pelas estações que marcaram a vida de Alceu, observando que “a purga vai, de fato, à transposição das personas.” (p.354) Assevera, com efeito, que “o primeiro de nossos leigos” passara da “disponibilidade” ao enquadramento ontológico-normativo do “neotomismo engajado” e deste ao “novo adeus de 50”, definido pelo “aporte das categorias de espera e presença” de um Marcel e pelo rasgo dos tempos que anunciavam o Concílio Vaticano II (p.362).

Sob tal impressão, entra-se no capítulo V, Alceu pelos grandes contrastes, um mosaico formado pelas peças variadas do diálogo de Alceu com outros pensadores. O texto realça suas facetas universalista e humanista nas referências a Rui Barbosa, suas parcerias ora cordiais ora polêmicas com Jackson de Figueiredo, Sobral Pinto, Plínio Salgado e Gustavo Corção, e nos reporta o enfrentamento do estado de exceção militar, em que se faz voz contra a censura e a tortura, e o debate pelo espólio da Ação Católica.  Corção, principalmente, é trazido ao plano do desencontro dos tempos, à fratura dos momentos dos dois convertidos, Alceu aberto à “terceira posição” da democracia cristã, e Corção apaixonado pelo distributivismo chestertoniano, também uma “terceira fórmula”, mais ingenuamente utópica, e menos sensível aos sinais dos tempos, no dizer do autor. O juízo que o leitor dos quatro subcapítulos dedicados ao escritor de A descoberta do outro pode ser levado a formar, sem ter lido O desconcerto do mundo, faz quiçá desta estação do livro, alvo de algum reparo. Os apodos de “integrismo”, “maniqueismo” e outros conotativos reduzem desnecessariamente a estatura do Corção pensador ao papel de figurante na ribalta de um Alceu pedagogicamente apolíneo.

Melhor sorte tem Jacques Maritain, o “exegeta angélico”, no desdobramento do capítulo. Posto o horizonte axiológico de uma práxis definida como “encarnação do Verbo na história”, Mendes faz intervirem, ao lado do autor de Humanismo integral, a fenomenologia de Paul Ricoeur e a doutrina social da Igreja, em sua exemplar formulação na constituição dogmática Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II (1962-1965). O “otimismo epifânico” de Alceu não se contentaria, porém, com o combate do progressismo maritainiano, exigindo a ultrapassagem dialética de uma liberdade em que retoma o senso histórico da práxis de um Teillard e a esperança de “mais-ser”, que via confirmada no magistério do Concílio.

O autor descreve aqui o homem confrontado por Georges Bernanos com um “catolicismo definitivamente desinstalado da ordem” e capaz então de assumir as tarefas de leigo da Comissão Pontifícia Justiça e Paz no fim dos anos 1960 (p.459). A estrela de Bernanos dá o sinal do encerramento do livro, cujo capítulo derradeiro, A lição do eterno: Alceu e a Igreja, mais uma vez reinscreve o movimento da persona à pessoa anunciado nas palavras do próprio Alceu: “A verdade está sempre no âmago, das pessoas e das coisas, e não nas suas aparências.” A subjetividade do “pensador confessional”, lançada no fio escatológico que identifica a “História a uma antropologia do mais-ser”, seria então patrocinada pela “tensão fundamental do encontro da Igreja com o mundo”. (p.474) Aí, segundo Mendes, se dera a formação da perspectiva histórica de um Alceu que enfim se sabe mais “peregrino” orientado por sua “meia escatologia” do que ator escalado para um drama escrito a priori pelos cânones da abstração e o placet do estabilishment. De fato, a “profunda intuição do histórico concreto em Alceu vai salvá-lo dos esquematismos […] de defesa da ordem da Cidade de Deus.” (p.479) O autor assinala, entretanto, que o papel de Alceu no fluxo desse movimento deve ser entendido pelas limitações de sua concepção de temporalidade, que “não alcança uma etiologia da História como advento das culturas” (p.487), ainda que não se frustre no prognóstico dos desdobramentos do novo “humanismo cristão” evocado na Gaudium et Spes. As exigências missionárias requeriam, diz, um logos alinhado à filosofia do sujeito, que submetesse o cânon da perfectibilidade ao horizonte do empenho social transformador.

Postos o referencial da eclesiologia versus populum e as limitações da concepção de história de um Alceu fiel ao paradigma da “terceira via” (opção entre o comunismo totalitário e o capitalismo excludente), Mendes chama atenção para suas intuições sobre a fecundidade dos “movimentos” sociais, motivos de esperança ante a corrosão dos tecidos políticos convencionais denunciada nas Conferências Episcopais de Puebla e Medellín. As mesmas que o levaram a haver-se cautelosa mas positivamente com o Partido dos Trabalhadores, a reforma agrária e o inopinado de uma interlocução pulverizada e marginalizada nas Comunidades Eclesiais de Base. A desconfiança para com as “elites”, incapazes de uma efetiva “ação transformadora” tornara então iminente o último lance da “toma da palavra” de Tristão. Por este “buraco da agulha”, Alceu teria sido então introduzido à derradeira liberdade, “desligado de todas as amarras” com que se havia prendido, o convertido de 1928.

Neste passo, Candido Mendes não deixa de tomar ele mesmo a palavra como herdeiro da missão do Dr. Alceu, ditando sobre os prognósticos do mestre, arrazoados a respeito do cenário dos despossuídos e excluídos de uma sociedade “da hiperorganização” que não pode deixar de ser também dos “superdescartes”.

A proeminência da figura do Papa João XXIII nas páginas de encerramento do livro deixam a impressão de que a pessoa de Alceu, discretamente, teria ao fim tornado a palavra a Tristão, só ele capaz de ultrapassar o vigor analítico do olhar sobre os sujeitos históricos, reclamado por Mendes, com o aceno ao mistério como fulcro da busca da verdade. Neste diapasão, o autor parece deixar por responder a questão com que, em Meio século de presença literária, Amoroso Lima encerra uma Carta de Alceu a Tristão: “saber qual dos dois foi afinal o autêntico.”

A remoção dos sacrários

Postado por Admin.Capela em 02/mar/2010 - Sem Comentários

Tiraram o Senhor e não sabemos onde o puseram“.

(São João XX, 2)

 

Por Carlos Magno da S. Oliveira

 

O Sacrário no centro tem, no espírito tradicional da Sagrada Liturgia, o significado de dar a Nosso Senhor Jesus Cristo o destaque no lugar central. Pode-se considerar esta afirmação como sendo teocêntrica, isto é, que tem Deus como o centro, evidentemente não como centro geométrico. O teocentrismo significa que Deus é reconhecido como sendo a causa e o fim de todas as coisas, e sendo Deus imutável esse centro deve ser fixo e imutável.

Quando Nossa Senhora e São José foram a Belém, na ocasião do recenseamento, obedecendo ao edito de César, por serem eles pobres, disseram-lhes que não havia lugar para eles na estalagem. Por isso o Menino Jesus teve que nascer fora da cidade, numa cocheira miserável, onde havia um boi e um burro.

Nosso Senhor Jesus Cristo veio para o que era seu – Israel — e os seus, os judeus, não O receberam. Ele nasceu numa cocheira, fora da cidade, assim como iria morrer fora da cidade de Jerusalém. Por que “os seus não O receberam” (São João I, 11). “O boi conhecerá o seu dono, e o burro conhecerá o presépio de seu Senhor” profetizou Isaías (Isaías. I, 3). Mas, os seus não o receberam…

Nasceu numa cocheira símbolo da Igreja. Porque, como explica Hugo de São Victor, na cocheira os animais — o boi e o burro — deixam suas sujeiras, e se alimentam no cocho, assim como nós, cristãos, vamos à Igreja, para deixar, no confessionário, nossos pecados, a fim de, depois, irmos nos alimentar com o Pão que desceu dos céus, na mesa da comunhão.

Mas “os seus não o receberam”, e não havia lugar para eles na estalagem”. Espantamo-nos com a frieza e a dureza de coração dos habitantes de Belém, que recusavam receber a Virgem Maria e São José, e com a cegueira da Sinagoga, que abria o rolo da profecia e respondia a Herodes: “Sim. É verdade. Estamos na época em que deve nascer o Messias prometido. E Ele vai nascer em Belém, palavra que significa casa do pão”. E depois de ler a profecia, a Sinagoga fechava o rolo, e não ia a Belém adorar o Rei dos judeus que nascera. E O recusava, não lhe dando lugar na estalagem.

A Igreja, durante dois milênios, guardou o Corpo de Cristo, nascido em Belém, no sacrário. Adorou-O santamente, cercando-O de honras devidas ao Redentor, o Filho de Deus feito Homem.

Hoje, infelizmente, não há mais lugar para o sacrário de Jesus Cristo nos altares das Igrejas. O sacrário foi relegado para longe do altar. Para fora de Belém.

Por meio da encíclica Ecclesia de Eucharistia e no Decreto Redemptionis Sacramentum, o Papa João Paulo II mandou que se combatessem os abusos e desrespeitos que se fazem contra a Eucaristia. Entretanto, observamos que nada mudou. Aqueles mesmos que aplaudem o Papa João Paulo II se fazem de surdos, quando ele recomendou algo bom.

Os argumentos para a retirada dos sacrários são cada vez mais assustadores. Já não se fala mais em completo desconhecimento da realidade do Sacrário, como numa brutal e insanável cegueira que já beira a senilidade. A Loucura completa! Beira a hostilidade contra o Altíssimo!

Então colocam o sacrário longe, de lado, em capelas isoladas, em cantos escuros, tal como fazem os faxineiros que colocam em depósitos escuros a lata de lixo, a escória do templo. Lá se guardam as vassouras e o pano de chão! Ali também escondem o Sacrário, num último passo para o colocarem na rua.

Pois diz o Senhor: “porque me rejeitaste, também eu te rejeitarei” (Oséias IV, 6). E como rejeitaram a Deus, cumprem o projeto de satanás. É bem por isso que Nossa Senhora tem alertado o mundo, de que em breve milhares de igrejas se tornarão em pistas paras os demônios.

O espaço reservado para Deus fica cada vez menor, desde as capelas até os corações. Colocam Nosso Senhor Jesus Cristo em pequenas capelas, porque os corações dos homens estão pequenos, cada vez mais fechados, cada vez mais mortos. E quando retiramos Deus de seu espaço só sobra uma coisa: a energia do vácuo, ou seja, o desprovimento espacial absolutamente vazio…

Portanto, se no Sacrário o próprio Jesus está verdadeiramente presente em corpo, sangue, alma e divindade, sob as aparências de pão, sendo ele Deus, deve ocupar o lugar de destaque, o centro. “A arca foi introduzida e instalada em seu lugar, no centro do tabernáculo que Davi construíra para ela, e Davi ofereceu holocaustos e sacrifícios pacíficos (II Samuel VI, 17).”