Arquivo de fevereiro de 2015

Os mártires coptas e o Angelus do meio dia

Postado por Admin.Capela em 20/fev/2015 - Sem Comentários

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Quem ainda guarda íntegra a fé católica não pode ficar indiferente ao brutal suplício dos cristãos coptas na Líbia por obra dos fanáticos partidários do Estado Islâmico. Não se trata de deplorar a falta de tolerância ou de respeito “aos direitos humanos” ou a falta de consciência dos valores da democracia pluralista, que ainda não penetrou em algumas regiões do planeta.

Não cabe dizer que ocorreu um revivescimento de instintos primitivos da humanidade que pareciam completamente superados. Tampouco cabe dizer que o diálogo inter-religioso ainda não produziu seus frutos esperados e é preciso confiar que o tal diálogo, iniciado pelo Vaticano II, ainda há de brindar a humanidade com dias de paz por meio da confraternização de todas as religiões Não. Não se trata disso. Os defensores desse discurso humanista da ONU e da nova religião do homem é que devem ser hoje postos no banco dos réus como culpados e responsáveis por tal monstruosidade. Confiam no homem. E a Sagrada Escritura diz: “Maldito o homem que confia no homem.”

Diante do ocorrido em Trípoli, a atitude do católico deve ser outra. Por um lado, deve louvar a Deus por ainda dispensar aos seus filhos, em tempos de apostasia,  a graça do martírio.  E por outro lado, deve deplorar a cegueira dos nossos governantes, das nossas lideranças religiosas e políticas, que não se mostram à altura da gravidade da hora. Alguns, mesmo diante da morte dos coptas e do sofrimento dos seus parentes ameaçados, continuam pensando apenas nos seus interesses econômicos localizados na Líbia. Outros reagem imbecilmente empregando o discurso do politicamente correto.

Quando, no fim da Idade Média, ante a queda de Constantinopla em 23 de maio de 1453, o Papa Calixto III e São João de Capistrano pregaram uma cruzada contra o sultão Maomé II que investia contra Belgrado, não encontraram, infelizmente, entre os príncipes cristãos uma boa resposta ao apelo da cristandade que então esboroava. Somente a Dieta da Hungria respondeu com galhardia ao chamamento do Papa, encarregando o príncipe János Hunyadi de recrutar as forças necessárias para empreender a cruzada contra os turcos infiéis e insolentes. Houve então a triunfal batalha de Belgrado aos 22 de julho de 1456. E para perpetuar a memória de tão gloriosa gesta contra os turcos o Papa ordenou que doravante se soasse o Angelus em todas as igrejas; mas em sua origem o Angelus do meio dia tinha sido previsto pelo papa para chamar os católicos à cruzada. (Cf. Henry Bogdan, Histoire des Habsbourg – des origines à nos jours. Paris, 2005)

A propósito do apelo do Papa Calixto III e da pregação de São João de Capistrano, cumpre notar que, embora a mentalidade daqueles tempos já não se distinguisse pela nobreza do ideal das cruzadas dos séculos anteriores e os príncipes estivessem mais ocupados com suas ambições políticas e temporais, o Papa então cumpriu o seu dever e não foi em vão, porquanto lhe correspondeu o herói János Hunyadi.

Hoje, não temos ninguém. Nem Calixto III. Nem São João de Capistrano. Nem János Hunyadi. Nem os Habsburgos. Temos a democracia e os democratas. Temos Obama e outros inomináveis.

Em semelhante desolação, rezemos o Angelus do meio dia em honra dos coptas degolados por amor de Cristo na Líbia. Roguemos a Rainha das Vitórias que esmague todas as forças da democracia moderna, a nova religião da humanidade insuflada pela judeu-maçonaria, que remova da face da terra o laicismo, o liberalismo, e humilhe com suprema humilhação todos os inimigos da Santa Igreja. Ut inimicos Sanctae Ecclesiae humiliare digneris, te rogamus. Vindica sanguinem Saanctorum tuorum, qui effusus est. Ó Deus, os gentios entraram no que era vosso; poluíram o vosso Santo Templo.

Anápolis, 20 de fevereiro de 2015.

Em adenda: quando escrevi este artigo pensei que os cristãos martirizados eram católicos romanos. Soube depois que eram cristãos da Igreja Copta cismática do Egito. Em assim sendo, é preciso recordar o ensinamento do Papa Bento XIV: podem eles ser considerados mártires coram Deo neque coram Ecclesia. É inaceitável a proposta de um martirológio ecumênico. Santo Agostinho dizia que os donatistas e outros hereges e cismáticos não podiam ser venerados como mártires quando mortos pelos pagãos. No caso dos coptas, é claro que há uma circunstância muito atenuante: com efeito são antes herdeiros do que fautores de heresia e cisma.

SÃO PIO X: “RESPONDO PONTO POR PONTO”

Postado por Admin.Capela em 18/fev/2015 - Sem Comentários

[Original italiano: < http://www.sisinono.org/j3/anteprime-2012/52-anno-2014/236-anno-xxxx-n%C2%B020.html >]

Em 14 de outubro de 1911, São Pio X escreveu carta intitulada “Respondo ponto por ponto” [em italiano: “Rispondo punto per punto”, n.d.t.] ao Bispo de Cremona, Dom Geremia Bonomelli [1]. Na passagem dos 80 anos de idade do Bispo, este enviara ao Papa, junto com carta, recente opúsculo [2] sobre três senadores italianos, a saber, Thaon di Revel, Tancredi Canonico e Antonio Fogazzaro, este já condenado por modernismo pelo próprio São Pio X.

Na sua carta de resposta, o Papa Sarto [Giuseppe Melchiorre Sarto, nome de nascimento do Santo, n.d.t.] mostrou estupor e desapontamento pelo fato de o Bispo de Cremona apresentar a vida e obra de três indivíduos suspeitos de modernismo, dos quais um já formalmente condenado, sem exprimir juízo crítico algum sobre a ortodoxia doutrinal deles. Assim, São Pio X renova a condenação do modernismo com palavras muito fortes, respondendo à acusação que Bonomelli lhe dirigia de ser demasiado severo com relação ao modernismo e aos modernistas. Enfim, trata do problema da “Questão Romana”, levantado por Bonomelli na sua carta.

Vejamos o texto da carta de São Pio X.

* * *

Primeiramente, o Papa lamentou que, no escrito de Bonomelli sobre os três senadores, conhecidos na opinião pública e na história pelas suas teorias liberais, pró-ressurgimentais e modernistas, “não se tenha querido avaliar os seus escritos e obras” [3]. O Papa justamente observa: “Parece-me que especialmente um Bispo deveria dizer algo mais” [4]. Ou seja, é dever do bispo tomar posição sobre a ortodoxia ou heterodoxia dos indivíduos que apresenta ao público, do contrário leva os fiéis a crerem que nada de incorreto exista nos seus escritos e obras, ao passo que a Santa Sé já se pronunciou sobre eles (particularmente sobre Fogazzaro), condenando-os devido a um forte teor de modernismo.

* * *

São Pio X responderia ainda a Bonomelli, o qual teve a audácia de lhe recomendar “moderação nas disposições contra o modernismo” [5].

O Pontífice distingue “o moderno, como fonte de estudos rigorosos, do modernismo” [6], que é a cloaca de todas as heresias (Encíclica Pascendi, 8 de setembro de 1907); daí que “me admiro” – continua o Papa Sarto – “que considereis excessivas as medidas tomadas pela Santa Sé para deter uma torrente que ameaça alagar, enquanto o erro modernista que se quer difundir nos nossos dias é bem mais mortal que nos tempos de Lutero, porque tende diretamente não só à destruição da Igreja (como Lutero queria), mas à do cristianismo” [7].

Note-se, desde logo, o verbo “deter” [em italiano: “trattenere”, n.d.t.], usado por São Pio X, que é o mesmo empregado por São Paulo na 2ª Epístola aos Tessalonicenses para indicar o obstáculo, aquele que detém, ou “katéchon”, a força que detém o Anticristo final de reinar sobre o mundo inteiro: “Ninguém de modo algum vos engane. Porque primeiro deve vir a apostasia, e deve manifestar-se o homem da iniquidade, o filho da perdição, o adversário, aquele que se levanta contra tudo o que é divino e sagrado, a ponto de tomar lugar no templo de Deus, e apresentar-se como se fosse Deus” (2Ts 2,3-4).

[Prossegue São Paulo em 2Ts 2,5-7: “Não vos lembrais de que vos dizia estas coisas, quando estava ainda convosco? Agora, sabeis perfeitamente que algo o detém, de modo que ele só se manifestará a seu tempo. Porque o mistério da iniquidade já está em ação, apenas esperando o desaparecimento daquele que o detém”, n.d.t.].

Santo Agostinho diz que a apostasia é a separação entre Roma e os povos que lhe eram submetidos, e Santo Tomás de Aquino (Comentário à 2ª Epístola aos Tessalonicenses 2,3-4 – capítulo 2, lição 1, n. 34-35) esclarece que, como dizia o Papa Leão no Sermão “De Apostolis”, “o Império Romano não morreu, mas se transformou de temporal em espiritual. Portanto, é preciso dizer que a apostasia com relação ao Império Romano se deve entender não somente no sentido temporal, mas também no espiritual, ou seja, com relação à fé católica da Igreja Romana”. Santo Tomás de Aquino (Opúsculo 68, “De Antichristo”, na edição de Parma, 1864) ainda reafirma que “o obstáculo” à manifestação do Anticristo é a submissão à Igreja Romana e que “aquele que o detém” é o Papado.

Ademais, São Pio X enfoca bem a gravidade da apostasia modernista, que: 1º) destrói de maneira subjetivística a própria natureza da religião cristã; 2º) faz de Cristo um mito dos primeiros cristãos; 3º) faz do cristianismo uma ideologia inventada por Paulo de Tarso e pelas primeiras comunidades por ele fundadas; 4) faz de Deus um ente lógico, ou seja, uma ideia produzida pela necessidade do senso religioso do homem, ao passo que Ele é o Ser perfeitíssimo, real e objetivamente existente fora da mente humana.

“Perante um mal tão grave” – retoma São Pio X – “nunca são excessivas as precauções, que, prevenindo, alertam sem fazer mal a ninguém e que aplicam, ainda, as penas devidas com indulgência e benignidade” [8].

Em síntese, a Santa Sé avisa aos fiéis que não sigam certas teorias, previne-os e alerta-os, de maneira que será condenado somente quem ainda quiser desprezar as admoestações da Igreja; as disposições contra o modernismo, em si, “não fazem mal a ninguém”; somente os batizados que aderem ao modernismo são condenados, por própria culpa e não por excessiva severidade da Igreja.

* * *

Bonomelli escreve ao Papa Sarto: “Com as vossas disposições tão severas, fareis ou apóstatas ou hipócritas” [9].

São Pio X rebate: “Temos, infelizmente, apóstatas [os modernistas voluntários e, portanto, culpados, n.d.r.], mas não por causa das leis contra o modernismo, e temos pena deles; teremos hipócritas, o que é lamentável; mas não teremos, pelo menos no clero, mestres e pregadores do erro modernista, que conduziriam em breve todo o mundo à apostasia” [10].

Aquele que cria o apóstata e o hipócrita, portanto, não é São Pio X, mas a má vontade do batizado que abraça abertamente o modernismo e deserta, ou então é aquele que interiormente é modernista, mas não o manifesta em público para permanecer dentro da Igreja e para torná-la modernista a partir de dentro. São Pio X somente cuida em vetar ao clero que ensine a apostasia modernista e, assim, desvirtuar a todos os fiéis.

* * *

O Papa responde a uma pergunta sutil de Bonomelli, que magoa São Pio X. O Bispo de Cremona pediu para “pôr fim ao conflito que existe na Itália, à luta entre Estado e Igreja [após o dia 20 de setembro de 1870, n.d.r.], acrescentando que bastaria uma palavra do Papa para salvar muitas almas” [11].

São Pio enfrenta Dom Bonomelli e desmascara-o, escrevendo-lhe: “Que palavra prodigiosa é essa que esperais de mim? […]. Falando abertamente: [Esperais] a renúncia ao poder temporal da Igreja?” [12].

E aqui recorda a doutrina da Igreja sobre o poder temporal, confirmada constantemente por Pio IX e Leão XIII em numerosíssimas encíclicas. O poder temporal é um meio que a Providência quis conferir à Igreja para que pudesse manter a sua independência espiritual, doutrinal e moral em face dos poderes humanos que se sucederam nos séculos. Como o homem tem necessidade de uma casa própria para não depender dos outros, assim a Igreja tem necessidade de um Estado próprio para ser senhora “na sua própria casa”. Assim, Pio X, como Pio IX, “não pode, não deve e não quer” renunciar àquilo que Deus deu “por tantos séculos como defesa da liberdade da Igreja. […] Isso porque não é combatido o poder temporal, mas o espiritual” [13]. É o que ensinou constantemente o magistério pontifício, ao qual também Dom Bonomelli deve dar o seu assentimento [14].

Ao apelo de Bonomelli para confiar nas garantias que o governo italiano prometeu à Igreja, Pio X responde que não se pode confiar em garantias “asseguradas por um governo escravo da seita [a maçonaria, n.d.r.] e que muda todo mês” [15].

Logo, é o Papa que faz uma pergunta explícita a Bonomelli: “Agora vos pergunto se é possível pronunciar a palavra que vós sugeris nas presentes circunstâncias, após uma provação de quarenta anos, durante os quais todos os governos da Itália que se sucederam trataram a Santa Sé e o Papa muito pior do que teria feito o mais pertinaz adversário” [16].

Em conclusão, São Pio X recorda a Bonomelli que “ninguém mais do que o Papa ama verdadeiramente a Itália, mas a Itália que não seja escrava das seitas, a Itália que responde à missão que a Providência lhe deu de ser a primeira Nação do mundo, porque sabe apreciar como merece o privilégio de ter no seu seio o Papado” [17].

A questão, para São Pio X, não é a Itália, mas o governo saboiano, que é escravo da seita maçônica e procura destruir não somente o Estado do Papa, mas, se fosse possível, também a própria Igreja de Cristo.

* * *

No fim desta leitura, todos poderão constatar quanta razão teve São Pio X para lamentar, antes de morrer, não ter sido ajudado pelos bispos na sua luta contra o modernismo. Os bispos, de fato, eram ou modernistas ou filomodernistas, ou, ainda, como depois confessou de si mesmo Bento XV, não percebiam a gravidade do perigo (vide a Disquisitio do franciscano Ferdinando Antonello, encarregado por Pio XII de esclarecer a atividade “repressiva” da qual São Pio X foi acusado também durante o processo de beatificação e de canonização). É esse episcopado modernista ou indócil e inconsciente que preparou o triunfo do Vaticano II.

Basilius

[1] Nascido em 1831 e morto em 1914, foi Bispo de Cremona [Itália, n.d.t.]. Em 1904, enviou a São Pio X um memorial no qual propugnava a aproximação entre ciência e fé, entre governo italiano e Igreja. Em 1889, escrevera artigo intitulado Roma e a Itália, na Rassegna Nazionale, no qual se declarava a favor de uma pacificação entre Igreja e Estado mediante a renúncia da Igreja ao poder temporal. Em 13 de abril de 1889, o seu artigo foi colocado no Index, e Dom Bonomelli se submeteu (mas só exteriormente, como demonstram as cartas posteriormente enviadas a São Pio X). Vide G. Astori, San Pio X e il vescovo Geremia Bonomelli, in “Rivista di Storia della Chiesa in Italia”, n. X, 1956, pp. 255-259.

[2] G. Bonomelli, Profilo di tre personaggi italiani e moderni, Milano, Cogliati, 1911.

[3] Tutte le Encicliche e i principali Documenti pontifici emanati dal 1740, ed. Bellocchi, vol. VII, Pio X (1903-1914), Città del Vaticano, LEV, 1999, p. 467.

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] Idem.

[7] Idem.

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] Idem.

[11] Idem.

[12] Ibidem, p. 468.

[13] Idem.

[14] Vide Pio IX, Carta Tuas libenter, de 1863, sobre a obrigatoriedade do magistério constantemente ensinado.

[15] Idem.

[16] Ibidem, p. 469.

[17] Idem.

PODE UM PAPA CAIR EM CISMA?

Postado por Admin.Capela em 18/fev/2015 - Sem Comentários

“Ide, pois, ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”.
“Pedro, eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, confirma teus irmãos na fé”.

 

 

04.02.2015

Arnaldo Xavier da Silveira

 

Onde está o Papa está a Igreja

1) Segundo Santo Tomás de Aquino, “a heresia e o cisma se distinguem por aquilo a que essencial e diretamente se opõem. A heresia se opõe essencialmente à fé; ao passo que o cisma, à unidade da caridade eclesiástica”. E Santo Tomás cita São Jerônimo: “Julgo haver entre o cisma e a heresia a diferença seguinte: a heresia professa dogmas perversos, ao passo que o cisma separa da Igreja”. E, concluindo: “não há cisma que não venha acompanhado de alguma heresia, para parecer que o cismático se separou, com razão, da Igreja([1]). É princípio corrente na doutrina católica que onde está o Papa está a Igreja. Assim, pareceria à primeira vista impossível que um Papa caísse em cisma, porque ele não poderia romper consigo mesmo; nem com a Igreja, porque desta ele é a Cabeça visível, Vigário de Nosso Senhor.

2) No entanto, os grandes e prestigiosos teólogos da idade de prata da Escolástica (séculos XV a XVII) admitiram largamente a hipótese de um Papa cismático, explicando que é em princípio possível, ou pelo menos a teologia não aponta como impossível, a ruptura do Pontífice com a Igreja. O Papa que chegasse a tal ruptura deixaria de estar na Igreja, e a Igreja nele.

3) Os exemplos dados pela doutrina falam por si, num primeiro momento até melhor do que os argumentos dogmáticos. Seria cismático o Papa que pretendesse subverter toda a liturgia de origem apostólica. Seria cismático o Papa que, no exercício do cargo, cuidasse sobretudo dos interesses materiais seus e de sua família, abandonando ou negligenciando gravemente as questões da Igreja. E o que excomungasse toda a Igreja. Assim discorrem sobre a matéria alguns dos maiores teólogos daquele período:

3.a – O Cardeal Torquemada (1388-1468), tio do inquisidor do mesmo nome, e uma das primeiras e principais figuras da idade de prata da escolástica, escreveu que o Papa pode tornar-se cismático “ordenando o que é contrário ao direito natural ou divino”.

3.b – O mesmo Cardeal Torquemada escreve que o Papa será cismático “se não observar aquilo que foi, pelos concílios universais ou pela autoridade da Sé Apostólica, ordenado universalmente, sobretudo quanto ao culto divino”.

3.c – Assim se exprime o Cardeal Caietano (1469–1534), grande figura da ordem dominicana: “O Papa poderia romper a comunhão renunciando a comportar-se como chefe espiritual da Igreja, decidindo, por exemplo, agir como mero príncipe temporal.”

3.d – Ainda o Cardeal Caietano: “A Igreja está no Papa quando este se comporta como Papa, isto é, como Cabeça da Igreja; mas caso ele não quisesse agir como Cabeça da Igreja, nem a Igreja estaria nele, nem ele na Igreja”.

3.e – Francisco Suárez (1548–1617), um dos maiores teólogos da Companhia de Jesus, ensina: “o Papa poderia ser cismático caso não quisesse ter, com todo o corpo da Igreja, a união e a conjunção devida, como seria se tentasse excomungar toda a Igreja, ou se quisesse subverter todas as cerimônias eclesiásticas fundadas em tradição apostólica”.

4) Foram sobretudo os pujantes movimentos de fervor e ortodoxia já anteriores ao Concílio de Trento (1545-1563) e que a ele se seguiram em reação contra o protestantismo, e foram os escândalos causados por Papas daqueles tempos, que deram ocasião aos estudos dos grandes autores do período sobre a possibilidade de uma Papa cismático e sobre o que daí adviria. Os doutores e comentaristas posteriores estudaram a matéria sempre de modo sério e atento, mas pouco ou quase nada a desenvolveram.

 

Aprofundando a noção do Papa cismático

5) Os princípios básicos sobre a possibilidade teológica de um Papa cismático vêm expostos sinteticamente em nosso estudo sobre “A Hipótese Teológica de um Papa Herege([2]). Cumpre no entanto, no momento atual, aprofundar tais princípios. Para isso, permitimo-nos formular, em sede teórica, uma pergunta aos teólogos especialistas na matéria: não é verdade que seria cismático o Papa que abrisse mão de pelo menos uma das prerrogativas essenciais de seu cargo? Como não pretendemos aqui apresentar uma monografia acadêmica a respeito, suscitamos a questão em termos genéricos, na esperança de que especialistas de boa cepa tragam fundamentação histórico-teológica nova, válida para o enriquecimento dessa delicada doutrina.

6) Vejamos os termos exatos em que o problema se põe. Nas funções do Papa como vigário de Cristo, há faculdades, direitos, prerrogativas que não são da essência do cargo. Que o Pontífice seja senhor temporal em determinados territórios, por exemplo,  é conveniente, mas não é essencial a sua função vigária de Nosso Senhor. Que todos os bispos sejam nomeados pessoalmente pelo Papa é norma salutar, mas não se trata de prerrogativa essencial ao Sumo Pontífice. Outras obrigações, entretanto, são da essência do Papado, como custodiar o depósito revelado, ensinar a boa doutrina, buscar a conversão de todos os povos, confirmar seus irmãos na fé.

7) Assim, põe-se o problema: não seria cismático o Papa que efetivamente abrisse mão de alguma dessas obrigações essenciais de seu cargo? Se, por exemplo, deixasse de batalhar pela conversão dos não católicos? Ou se abrisse mão, em princípio, de ensinar? Ou se se recusasse a aceitar a conversão de não católicos à Santa Igreja?

 

Um caso concreto de nossos dias

8) Um exemplo atual contribui para a devida intelecção do assunto. Em setembro e outubro de 2013 foram publicadas entrevistas do Papa Francisco, respectivamente na Civiltà Cattolica e no jornal romano La Repubblica, nas quais o Pontífice exprimiu dúvidas e usou de fórmulas ambíguas que chocaram o mundo católico. Não foram ali abordados apenas pontos livres e secundários da doutrina católica, mas algumas questões relativas a teorias e fatos absolutamente fundamentais à fé e aos bons costumes.

9) Eis alguns desses textos ambíguos ([3]):

  1. Nesse procurar e encontrar a Deus em todas as coisas fica sempre uma zona de incerteza. Deve ser assim. Se uma pessoa diz que encontrou a Deus com certeza total e nisso não aflora uma margem de incerteza, então as coisas não vão bem. Para mim, essa é uma chave importante”.
  2. Cada  um de nós tem sua visão do bem e também do mal; devemos incitar cada qual a proceder segundo o que ele pensa ser o bem”.
  3. Deus é maior do que o pecado”.
  4. Durante o voo de retorno do Rio de Janeiro, eu disse que se uma pessoa homossexual tem boa vontade e está à procura de Deus, eu não sou ninguém para julgá-la”.
  5. Não podemos insistir apenas nas questões ligadas ao aborto, ao matrimônio homossexual e ao uso dos métodos contraceptivos. Isso não é possível”.
  6. Uma pastoral missionária não tem obsessão pela transmissão desarticulada de uma multidão de doutrinas a serem impostas com insistência”.
  7. O proselitismo é um solene disparate, não tem sentido”.

10) Ora, tais modos de falar lançam um véu de dúvida e ambiguidade sobre princípios e fatos de todo em todo essenciais da fé e da moral. Vários deles insinuam, mesmo, que a posição verdadeira seria aquela que mais se opõe à boa doutrina. Em face de pedidos para esclarecer tais dúvidas e eliminar tais ambiguidades, o Papa vem-se calando há bem mais de ano. Pergunta-se aos teólogos tradicionais: tal silêncio não envolve renúncia à obrigação de ensinar, e portanto cisma? Não é verdade que o ensino há de ser claro, objetivo e definido, sob pena de não ser verdadeiro ensino?

11) Insista-se em que o mais grave é que a indefinição papal sobre ambiguidades de tal tamanho se mantém, apesar dos numerosos, reiterados e respeitosos pedidos, vindos de todo o orbe, para que tais dúvidas sejam eliminadas. Em seus breves pronunciamentos diários, o Papa faz, cá e lá, declarações que pareceriam resolver uma ou outra dessas questões, mas logo em seguida apresenta afirmações em sentidos diversos, que restauram, renovam e agravam as dúvidas anteriores. Objetivamente tudo se passa como se se tratasse de modo de agir sistemático.

12) O que acaba de ser dito sobre as duas entrevistas jornalísticas de 2013 vale igualmente para outras questões suscitadas com frequência em declarações papais, como sua proclamação de que há marxistas de boa vontade; como sua condenação escorregadia do regime capitalista sem qualquer matiz e sem uma proscrição do socialismo; como sua afirmação de que as mulheres não podem ser irresponsáveis a ponto de ter filhos qual coelhas; e como seu comportamento pelo menos omisso, quando não favorável, às tese heterodoxas do Cardeal Kasper, por ocasião do Sínodo sobre a família, que abalou os fundamentos da indissolubilidade do matrimônio e da qualificação do homossexualismo como pecado gravíssimo, que brada aos Céus e clama a Deus por  vingança.

 

Alguns esclarecimentos fundamentais

13) Não se pretendendo, nestas linhas, apresentar um tratado sobre a hipótese teológica de um Papa cismático, não há lugar aqui para observações sistemáticas mais cuidadosas, mas alguns esclarecimentos básicos se impõem:

  1. a) Os grandes doutrinadores raramente afirmam em termos positivos e seguros que o Papa possa ser herege, mas o conjunto de seus escritos mostra que na Revelação não consta a impossibilidade de queda de um Papa em heresia. Isso vale também para a hipótese do Papa cismático, de modo a tornar-se em verdade impossível declarar que, segundo os grandes teólogos  que estudaram a matéria, um Papa não possa cair em cisma.
  2. b) Os grandes autores em geral consideram apenas a possibilidade de heresia de um Papa “como pessoa privada”. A tese contrária, da possibilidade de heresia no exercício oficial de sua função, todavia, aflora cá e lá na tradição, e com ênfase, baseada em fortes e mesmo inafastáveis argumentos de razão teológica. Do mesmo modo, o Papa eventualmente cismático não o será apenas “como pessoa privada”, tanto mais quanto, nessa matéria específica, sua ruptura com a Igreja dificilmente poderia dar-se no âmbito meramente particular.
  3. c) As presentes considerações sobre a doutrina do Papa cismático poderiam dar a algum leitor desavisado a impressão de que, em assim sendo, vários Papas, na história da Igreja, teriam perdido o cargo  por caírem em cisma. Ora, essa ideia seria errônea já nos seus pressupostos, porque, à semelhança do Papa herege, o cismático não perderia seu cargo ipso facto e de imediato. Com efeito, São Roberto Bellarmino, com muitos outros autores de peso, mostra que a perda do pontificado pelo herege só ocorre quando a defecção do Papa na fé se torna “manifesta” ([4]). Ora, o mesmo se dá com o Papa cismático, e por análogas razões.  No estado presente dos debates teológicos sobre essa questão específica, entendemos que seria aberrante do fluxo geral do pensamento ortodoxo, e seria mesmo irresponsável, pretender que a perda efetiva do Papado, no caso de heresia como no de cisma, se daria ipso facto e de imediato. Hoje, somente algumas correntes sedevacantistas defendem essa perda imediata ([5]).

 

Ensino ambíguo não é verdadeiro ensino

14) Repita-se a pergunta que aqui dirigimos aos doutores: o descumprimento de uma obrigação essencial ao Papado, como seria a recusa sistemática de exercer um Magistério claro e unívoco sobre dúvidas e ambiguidades do porte indicado, não revelaria que um Papa, pertinaz nessa matéria, estaria renunciando a sua obrigação de ensinar, merecendo, então, a censura teológica de cismático?

 

15) Que Nossa Senhora ampare Sua Igreja.

 

([1]) Sum. Th., II-II, q. 39, a. 1, ad 3.

([2]) In “Considerações sobre o ‘Ordo Missae” de Paulo VI”, ed. mimeografada, S.Paulo/Brasil, 1970, publicado no site Bonum Certamen – ‘www.arnaldoxavierdasilveira.com’ ─ Edição em francês: “La Nouvelle Messe de Paul VI: Qu’en Penser?”, Diffusion de la Pensée Française, Chiré-en-Montreuil/França, 1975.

([3]) Nos artigos “Grave Lapso Teológico do Pe. Federico Lombardi” e “Entrevista papal retirada do site vaticano”, publicados no site Bonum Certamen – ‘www.arnaldoxavierdasilveira.com’ –, analisamos com alguns pormenores esses e outros textos papais.

([4]) Ver “La Nouvelle Messe de Paul VI: Qu’en Penser?”, parte II, cap. VII.

([5]) Ver “La Nouvelle Messe de Paul VI: Qu’en Penser?”, parte II, cap. VII; e também nosso artigo “Surpreendente condenação pelo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé”, publicado no site Bonum Certamen – ‘www.arnaldoxavierdasilveira.com’.

Sombras do Iluminismo – Charlie não nos representa

Postado por Admin.Capela em 04/fev/2015 - Sem Comentários

Marcos Cotrim de Barcellos

 

1- Há luzes que esclarecem como as da ciência, outras que insinuam como as da poesia, e outras ainda há que ofuscam, como as do obscurantismo. Como o mal, que não tem consistência ontológica, é um simulacro do bem, as trevas são ausência relativa de luz.

O fundamentalismo (qualquer que seja sua confissão), nasce de uma doença da razão. Idealiza um “bem” e deseja ardentemente realizá-lo. Mas se esquece de que bens abstratos só habitam sua mente, mesmo bem intencionada. Uma boa ideia será apenas uma ideia, mesmo que boa. Pode até virar teoria e engendrar algo radical. Quanto mais a abstração se purifica, nas matemáticas ou na metafísica por exemplo, mais “radical” deve se tornar o pensador. Mas quando o desejo de pureza emprenha a existência histórica, temos o fanatismo, um vício da razão prática.

 

2- A ponte entre a teoria e a prática já se chamou guilhotina. Aliás, o primeiro episódio de terror explícito no Ocidente foi promovido por franceses fanáticos por matemática e ciência, herdeiros de abstrações cartesianas. O Terror durou mais de um ano, de 1793 a meados de 1794. Em dezembro de 94, foram mortos mais de 5.000 incompetentes na guilhotina. Mais do que a Inquisição em 400 anos de “purificação”.

Em nome da razão deificada, os meses foram renomeados, um ano zero foi decretado, manuais de ética (higiene social) foram publicados, sábios politicamente incorretos foram assassinados, altares cívicos foram erguidos à deusa Humanidade. Robespierre e o Comitê de Salvação Pública censuravam em nome da liberdade de expressão, caçavam dissidentes em nome da hegemonia revolucionária. Uma abstração sanguinária.

Na base, o mito do bom selvagem; no horizonte, a sofreguidão para tornar o mundo melhor. Fez-se o diabo para chegar lá. Os socialistas, em geral, são crentes dessa observância jacobina. Lênin e Stálin aperfeiçoaram os comitês, Mao-Tse-Tung e Pol Pot sublimaram a carnificina com o irrespondível álibi de purificar a humanidade.

Mas voltando ao país de Charlie Hebdo, afinal, Robespierre e Saint-Just também perderam suas cabeças excessivamente racionais, e os girondinos, liberais moderados, mais próximos de Locke do que de Rousseau, passaram a reinar em nome do “estado de direito”, isto é, da deusa Constituição, espécie de emanação do grande arquiteto do universo, encarnada num ente mítico chamado “mercado”. Um de seus mais ilustres nomes foi Condorcet, a quem se atribui o uso pioneiro do conceito de “progresso”. Não por acaso, girondinos eram os banqueiros, armadores, jornalistas e advogados que se beneficiaram imediatamente com o golpe de 1789. Ah, la douce liberté! la dorée égalité!

Herdamos de todos eles a ideia de um estado laico, no qual a moralidade pública fosse garantida pelo contrato social. A sociedade seria construída pelas leis, pelas escolas e pela opinião pública forjada pelas centenas de redes de sociabilidade, salões, revistas, jornais, clubes, academias etc. Moderados ou radicais, no liberalismo tratou-se de suprimir os códigos do Antigo Regime, principalmente sua ética de cunho religioso.

Tudo bem, se estivéssemos no paraíso, sem a tal distância entre teoria e prática. Mas o fiador da ordem pública, o cientista crente no grande arquiteto, parece ter-se esquecido de combinar a respeito da tal bondade natural com os russos, chineses e… muçulmanos. Estes ainda vivem no Ancien Régime, e o máximo que se pode pedir-lhes é que sejam tolerantes; nunca que engulam a teologia laicista dos revolucionários.

 

3- A revolução de 1789 jogou os escrúpulos às favas. Razões de Estado foram evocadas para matar cirurgicamente e, desde então, trocou-se o absoluto religioso pelo absoluto científico, tornando a irreverência mera contestação do poder. Se “somos todos bons”, a única autoridade admitida é a da Técnica e seus sacerdotes.

Essa doença – que já foi chamada de hybris – atinge nossas salas de aula, onde não há mais professores, só “facilitadores”, e assembleias públicas, de onde sumiram os políticos e sobraram os administradores ricos.

Antes da psicanálise fornecer uma justificativa para a irreverência, os revolucionários já haviam condenado à morte o pai e sua maior figura: Deus.

A cultura da irreverência vai além do humor e da ironia. A irreverência religiosa, que vez por outra vitima jornalistas franceses e chargistas de formação trotskista, não é um ataque apenas à religião. Mais que blasfema, ou anárquica, a irreverência corrói o princípio de autoridade, sem o qual toda a ordem institucional que subsidia jornais de humor e sátira vem abaixo.

Para escândalo de girondinos desinformados, candidamente horrorizados com o sangue derramado, Charlie Hebdo não representa o Ocidente. O próprio Charb falou: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. Não parece uma declaração de guerra?