«A cura contra a rebelião é a obediência», afirma o Arcebispo Carlo M. Viganò

Postado em 04-09-2020

O Dies Iræ traduziu e publica, a pedido do próprio, um texto-resposta de Mons. Carlo Maria Viganò que, sendo muito mais do que isso, se torna uma verdadeira declaração de Fé e de amor para com a Santa Madre Igreja, Corpo Místico de Cristo, num momento em que é fortemente atacada por aqueles que, desde o seu interior, continuam a querer levar por diante um plano diabólico para a sua destruição.

1 de Setembro de 2020

Caro Dr. Kokx,

Li, com grande interesse, um seu artigo intitulado Perguntas para Viganò: Sua Excelência tem razão sobre o Vaticano II, mas o que acha que deveriam fazer os católicos agora?, publicado, a 22 de Agosto, no Catholic Family News. Tratando-se de questões muito importantes para os fiéis, respondo-lhe de bom grado.

Pergunta-me: «O que significa “separar-se” da igreja conciliar segundo o Arcebispo Viganò?». Respondo-lhe com uma questão: o que significa separar-se da Igreja Católica de acordo com os defensores do Concílio? Embora seja evidente que não é possível misturar-se com aqueles que propõem doutrinas adulteradas do manifesto ideológico conciliar, deve-se notar que o simples facto de sermos baptizados e membros vivos da Igreja de Cristo não implica a adesão à estrutura conciliar; isto vale, antes de mais, para os simples fiéis e para os clérigos seculares e regulares que, por várias razões, se consideram sinceramente Católicos e que reconhecem a Hierarquia.

Em vez disso, deve ser esclarecida a posição daqueles que, declarando-se Católicos, abraçam as doutrinas heterodoxas que se difundiram nas últimas décadas, com a consciência de que essas representam uma ruptura com o Magistério precedente. Neste caso, é legítimo questionar a sua real pertença à Igreja Católica, na qual, todavia, ocupam cargos oficiais que lhes conferem autoridade. Uma autoridade exercida ilicitamente, se a finalidade que se propõe é obrigar os fiéis a aceitar a revolução imposta depois do Concílio.

Uma vez esclarecido este ponto, é evidente que não são os fiéis tradicionalistas – ou seja, os verdadeiros Católicos, nas palavras de São Pio X – que devem abandonar a Igreja na qual têm pleno direito de permanecer e da qual seria lamentável separar-se; mas os Modernistas, que usurpam o nome católico precisamente porque é o único elemento burocrático que lhes permite que não sejam considerados como qualquer outra seita herética. Esta sua pretensão serve, de facto, para evitar que acabem entre as centenas de movimentos heréticos que, ao longo dos séculos, acreditaram poder reformar a Igreja segundo a própria vontade, colocando o seu orgulho acima da humilde custódia do ensinamento de Nosso Senhor. Mas como não é possível reivindicar a cidadania de uma Pátria de que não se partilha a língua, a lei, a fé e a tradição, assim é impossível que aqueles que não partilham a fé, a moral, a liturgia e a disciplina da Igreja Católica possam reivindicar o direito de permanecer nela e até mesmo de ascender aos graus da Hierarquia.

Por isso, não caiamos na tentação de abandonar – ainda que com justificada indignação – a Igreja Católica, sob o pretexto de que foi invadida por hereges e fornicadores: são estes que devem ser expulsos do recinto sagrado, numa obra de purificação e de penitência que deve partir cada um de nós.

É também evidente que existem casos generalizados em que o fiel encontra graves problemas ao frequentar a paróquia, assim como ainda são pouco numerosas as igrejas onde se celebra a Santa Missa no Rito Católico. Os horrores que se alastraram, durante décadas, em muitas das nossas paróquias e santuários, tornam impossível até mesmo assistir a uma “eucaristia” sem ser perturbados e colocar em risco a própria fé. Assim como é muito difícil garantir, para si e para os próprios filhos, uma instrução católica, Sacramentos celebrados dignamente e um director espiritual sólido. Nestes casos, os fiéis leigos têm o direito e o dever de procurar sacerdotes, comunidades e institutos que sejam fiéis ao Magistério de sempre. E que, à louvável celebração da liturgia em Rito Antigo, saibam acompanhar a fiel adesão à doutrina e à moral, sem nenhuma cedência diante do Concílio.

A situação é, certamente, mais complexa para os clérigos que dependem hierarquicamente do próprio Bispo ou do Superior religioso, mas que, ao mesmo tempo, têm o direito sacrossanto de permanecer católicos e de poder celebrar segundo o Rito Católico. Se, por um lado, os leigos têm mais liberdade de movimento na escolha da comunidade a que recorrem para a Missa, os Sacramentos e a instrução religiosa, mas menos autonomia pelo facto de dependerem de um sacerdote, por outro lado, os clérigos têm menos liberdade de movimento, estando incardinados na Diocese ou na Ordem e sujeitos à autoridade eclesiástica, mas mais autonomia pelo facto de poderem, legitimamente, decidir celebrar a Missa e administrar os Sacramentos no Rito Tridentino e de pregar de acordo com a sã doutrina. O Motu Proprio Summorum Pontificum reafirmou que fiéis e sacerdotes têm o direito inalienável – que não lhes pode ser negado – de valer-se da liturgia que mais perfeitamente exprime a nossa Fé. Mas, actualmente, este direito deve ser usado não só e não tanto para preservar a forma extraordinária do rito, mas para testemunhar a adesão àquele depositum fidei que só no Rito Antigo encontra perfeita correspondência.

Recebo quotidianamente cartas aflitas de sacerdotes e de religiosos marginalizados, transferidos ou condenados ao ostracismo por causa da sua fidelidade à Igreja: é forte a tentação de encontrar um ubi consistam distante do tumulto dos Inovadores, mas devemos tirar o exemplo das perseguições que muitos Santos sofreram, entre os quais Santo Atanásio, que nos oferecem um modelo de como nos devemos comportar diante da heresia galopante e da fúria persecutória. Como repetiu repetidamente o meu venerável Irmão, Mons. Athanasius Schneider, o Arianismo, que afligia a Igreja na época do Santo Doutor de Alexandria do Egipto, era tão difundido entre os Bispos que quase levou a crer que a ortodoxia católica tinha desaparecido completamente. Mas foi graças à fidelidade e ao testemunho heróico dos poucos Bispos fiéis que a Igreja conseguiu recuperar. Sem esse testemunho, o Arianismo não teria sido derrotado: sem o nosso testemunho de hoje, não será derrotado o Modernismo e a apostasia globalista deste Pontificado.

Não é, portanto, questão de trabalhar desde o interior ou desde o exterior: os vinhateiros são chamados a trabalhar na Vinha do Senhor e é  que devem permanecer, mesmo que custe a vida; os pastores são chamados a apascentar o Rebanho do Senhor, a manter afastados os lobos vorazes e a expulsar os mercenários que não se importam com a salvação das ovelhas e dos cordeiros.

Este trabalho, muitas vezes silencioso e escondido, foi realizado pela Fraternidade São Pio X, à qual se deve reconhecer o mérito de não ter deixado apagar a chama da Tradição numa época em que celebrar a Missa antiga era considerado subversivo e motivo de excomunhão. Os seus sacerdotes foram um salutar espinho no lado do Corpo eclesial, considerados como um insuportável termo de comparação para os fiéis, uma censura constante à traição cometida contra o povo de Deus, uma alternativa inadmissível ao novo curso conciliar. E se a sua fidelidade tornou inevitável a desobediência ao Papa com as Consagrações Episcopais, graças a elas a Fraternidade soube proteger-se do ataque furioso dos Inovadores e permitiu, com a sua própria existência, tornar possível a disponibilização do Rito Antigo, até então proibido. Assim como permitiu que surgissem as contradições e os erros da seita conciliar, sempre amistosa nos confrontos com os hereges e os idólatras, mas implacavelmente rígida e intolerante para com a Verdade católica.

Considero Mons. Lefebvre um exemplar Confessor da Fé e penso que surge evidente quão bem fundada e oportuna é a sua denúncia do Concílio e da apostasia modernista. Não se deve esquecer que a perseguição de que Mons. Lefebvre foi objecto, por parte da Santa Sé e do Episcopado mundial, serviu, principalmente, como dissuasivo para os Católicos refratários à revolução conciliar.

Também concordo com o que observou S.E.R. Mons. Bernard Tissier de Mallerais sobre a coexistência de duas entidades em Roma: a Igreja de Cristo é ocupada e eclipsada pela estrutura modernista conciliar, que se impôs na mesma hierarquia e usa a autoridade dos seus Ministros para prevalecer sobre a Esposa de Cristo e nossa Mãe.

A Igreja de Cristo – que não só subsiste na Igreja Católica, mas é exclusivamente a Igreja Católica – é apenas ofuscada, eclipsada, por uma estranha igrejaextravagante, estabelecida em Roma, segundo a visão da Beata Anna Catarina Emmerich. Convive, como o trigo com o joio, na Cúria Romana, nas Dioceses, nas paróquias. Não podemos julgar os nossos Pastores pelas suas intenções, nem supor que sejam todos corruptos na fé e na moral; pelo contrário, podemos esperar que muitos deles, até então intimidados e silenciosos, compreendam, com a disseminação da confusão e da apostasia, o engano de que foram objecto e se sacudam, finalmente, do seu torpor. Numerosos são os leigos que estão a levantar as suas vozes; seguir-se-ão outros, juntamente com bons sacerdotes, certamente presentes em todas as dioceses. Este despertar da Igreja militante – ousarei chamar-lhe quase uma ressurreição – é necessário, urgente e inevitável: nenhum filho tolera que a própria mãe seja ultrajada pelos servos, nem que o pai seja tiranizado pelos administradores dos seus bens. O Senhor oferece-nos, nestas situações dolorosas, a possibilidade de sermos Seus aliados e de combatermos esta santa batalha sob a Sua bandeira: o Rei vitorioso do erro e da morte permite-nos partilhar a honra da vitória triunfal e o prémio eterno, que dela deriva, depois de, com Ele, termos suportado e sofrido.

Mas, para merecermos a glória imortal do Céu, somos chamados a redescobrir – numa época desvirilizada e privada de valores como a honra, a fidelidade à palavra dada, o heroísmo – um aspecto fundamental para cada baptizado: a vida cristã é uma militia e, com o Sacramento da Confirmação, somos chamados a ser soldados de Cristo, sob cuja bandeira devemos combater. Claro, na maioria dos casos trata-se, essencialmente, de um combate espiritual; mas, ao longo da História, vimos quantas vezes, diante da violação dos direitos soberanos de Deus e das liberdades da Igreja, também foi necessário pegar em armas: ensina-nos a extenuante resistência para repelir as invasões islâmicas em Lepanto e às portas de Viena, a perseguição dos Cristeros no México, dos Católicos na Espanha e, ainda hoje, a cruel guerra contra os Cristãos de todo o mundo. Nunca, como hoje, poderemos compreender o ódio teológico dos inimigos de Deus, inspirados por Satanás: o ataque a tudo o que recorda a Cruz de Cristo – a Virtude, o Bem e o Belo, a pureza – deve-nos estimular a levantar, num sobressalto de altivez, para reivindicarmos o nosso direito, não só de não sermos perseguidos por inimigos externos, mas também, e acima de tudo, de termos Pastores fortes e corajosos, santos e tementes a Deus, que façam, exactamente, o que os seus predecessores fizeram durante séculos: pregar o Evangelho de Cristo, converter os indivíduos e as nações, expandir, em todo o mundo, o Reino do Deus Vivo e Verdadeiro.

Todos somos chamados a cumprir um gesto de Fortaleza – virtude cardeal esquecida, que não por acaso, em grego, lembra a força viril, ἀνδρεία – no saber resistir aos Modernistas: uma resistência que se enraíza na Caridade e na Verdade, atributos de Deus.

Se celebrais apenas a Missa Tridentina e pregais a sã doutrina sem mencionar o Concílio, o que mais vos poderão fazer? Expulsar-vos das vossas igrejas, talvez, e depois? Ninguém poderá impedir-vos de renovar o Santo Sacrifício, mesmo num altar improvisado numa adega ou num sótão, como os padres refratários durante a Revolução Francesa, ou como ainda hoje acontece na China. E se tentarem afastar-vos, resisti: a lei canónica serve para garantir o governo da Igreja na prossecução dos seus propósitos principais, não para demoli-la. Deixemos de temer que a culpa do cisma seja de quem o denuncia e não de quem o pratica: são cismáticos e hereges os que ferem e crucificam o Corpo Místico de Cristo, não os que o defendem denunciando os algozes!

Os leigos podem pretender que os seus Ministros se comportem como tal, preferindo aqueles que provem que não estão contaminados pelos erros presentes. Se uma Missa se torna uma ocasião de tortura para o fiel, se é forçado a assistir a sacrilégios ou a suportar heresias e devaneios indignos na Casa do Senhor, é mil vezes preferível ir a uma igreja onde o sacerdote celebre dignamente o Santo Sacrifício, no rito que a Tradição nos deu, e pregue de acordo com a sã doutrina. Quando os párocos e os Bispos perceberem que o povo cristão pretende o pão da Fé e não as pedras ou os escorpiões da nova igreja, porão de lado os próprios medos e atenderão os legítimos pedidos dos fiéis; os outros, verdadeiros mercenários, mostrar-se-ão pelo que são e saberão reunir ao seu redor apenas aqueles que partilham os seus erros e perversões. Extinguir-se-ão por si mesmos: o Senhor seca o pântano e torna árida a terra onde crescem as silvas; extingue as vocações nos Seminários corruptos e nos conventos rebeldes à Regra.

Os fiéis leigos têm, hoje, uma tarefa sagrada: confortar os bons sacerdotes e os bons Bispos, reunindo-se em torno deles como as ovelhas do seu pastor. Hospedá-los, ajudá-los, consolá-los nas tribulações. Criar comunidades nas quais não predomine a murmuração e a divisão, mas a Caridade fraterna no vínculo da Fé. E, uma vez que, na ordem estabelecida por Deus – κόσμος –, os súbditos devem obediência à autoridade e não podem deixar de lhe resistir quando abusa do seu poder, nenhuma culpa lhes será atribuída pela infidelidade dos seus líderes, sobre os quais, em vez, pesa a responsabilidade gravíssima pela maneira como exercem o poder vicário que lhes foi dado. Não nos devemos rebelar, mas opor-nos; não devemos ficar satisfeitos com os erros dos nossos Pastores, mas rezar por eles e adverti-los com respeito; não devemos questionar a sua autoridade, mas como a usam.

Tenho a certeza, de uma certeza que me vem da Fé, que o Senhor não deixará de recompensar a nossa fidelidade, depois de nos ter punido pelos pecados dos homens da Igreja, concedendo-nos santos sacerdotes, santos Bispos, santos Cardeais e, sobretudo, um santo Papa. Mas estes santos surgirão das nossas famílias, das nossas comunidades, das nossas igrejas: famílias, comunidades e igrejas em que a Graça de Deus deve ser cultivada com a oração constante, com a frequência da Santa Missa e dos Sacramentos, com a oferta de sacrifícios e penitências que a Comunhão dos Santos nos permite oferecer à divina Majestade para expiar os nossos pecados e os dos nossos irmãos, mesmo daqueles constituídos em autoridade. Os leigos têm um papel fundamental nisso: zelar pela Fé na família, de modo que os jovens, que são educados no amor e no temor de Deus, sejam, um dia, pais e mães responsáveis, mas também dignos Ministros do Senhor, seus arautos nas Ordens religiosas masculinas e femininas, seus apóstolos na sociedade civil.

A cura contra a rebelião é a obediência. A cura contra a heresia é a fidelidade ao ensinamento da Tradição. A cura contra o cisma é a devoção filial aos Sagrados Pastores. A cura contra a apostasia é o amor de Deus e da Sua Santíssima Mãe. A cura contra o vício é a prática humilde da virtude. A cura para a corrupção dos costumes é viver constantemente na presença de Deus. Mas a obediência não se pode perverter em servilismo obstinado; o respeito pela autoridade não se pode perverter em adulação. E não esqueçamos que se é dever dos leigos obedecer aos seus Pastores, é ainda mais grave dever dos Pastores obedecer a Deus, usque ad effusionem sanguinis.

† Carlo Maria Viganò, Arcebispo

Por Dies Iræ 02 setembro