A missa “una cum” é um problema?

Postado em 23-08-2021

  1. De acordo com a sã teologia da primeira, segunda e terceira escolásticas.

Pe. Domingo Bañez

O eminente teólogo dominicano Domingo Bañes (1528 -1604. Discípulo de de Domingo Soto e Melchior Cano na Universidade de Salamanca, autor de profundos comentários à Suma Teológica de Santo Tomás), comentando a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino e considerando a hipótese formulada por seu confrade o cardeal Tomás de Vio mais conhecido como Caetano (1468 – 1533) em sua obra De comparatione auctoritatis Papae et Concilii, explica que o Papa se, por pura hipótese investigativa, incorresse em heresia, continuaria Papa. Com efeito, a falta da graça santificante separá-lo-ia da alma da Igreja e a falta de fé do corpo da mesma, mas a jurisdição visível do pontífice romano não seria retirada porquanto esta concerne ao governo visível da Igreja, que é uma sociedade visível e não pode ser privada de uma autoridade primária visível que a governa por motivo da ausência nesta última de graça ou de fé, as quais são hábitos sobrenaturais invisíveis. (Qualquer que seja a forma de governo, o que importa antes de tudo é que haja um governo, de outra forma uma sociedade não ficaria de pé. Portanto, a existência de um governo é justificada pela ordem intrínseca que põe e conserva as relações entre os homens, os quais devem viver e vivem de fato em sociedade. Ora o governo de uma sociedade complexa, como é a sociedade civil ou o estado nacional – e com maior razão a sociedade espiritual universal que é a Igreja, ndr -, deve ser forte. isto é capaz de manter sob si e dirigir todas as atividades das famílias e de outros organismos que possam desenvolver-se dentro da dita sociedade. Cf.  Roberti e Palazzini – Dicionário de teologia moral)

Portanto, segundo Bañez (e Caetano na escola de Santo Tomás), o Papa hipoteticamente herético não seria membro vivo da Igreja por falta da graça, não faria mais parte do corpo da Igreja por erro contra a fé, entretanto seria sua cabeça visível em ato quanto ao governo e à jurisdição: “O papa não é cabeça da Igreja em razão da santidade ou da fé porque não é assim que pode governar os membros da Igreja, mas é cabeça da Igreja em razão do ofício ministerial, que o torna apto a dirigir e governar a Igreja mediante o governo externo e visível por meio da hierarquia eclesiástica, que é visível e palpável. Por conseguinte, segundo o influxo espiritual da graça e da fé não é membro da Igreja de Cristo, se não as tem; contudo, segundo o poder de governar e dirigir a Igreja é cabeça visível da mesma em ato.” (É interessante notar que Domingo Bañez, tratando deste problema, faz uma analogia entre o Rei e o Papa, entre o Estado e a Igreja, analogia negada por alguns que declaram o Papa degradado do Papado.)

Charles-René Billuart (1685- 1757)

Em sua obra De incarnatione Billuart retoma a tese de Bañez e ensina que “a cabeça governa e o membro recebe a vida da graça. Portanto, se o Papa incorresse em heresia, manteria ainda a jurisdição com a qual governaria a Igreja, mas não receberia mais o influxo da graça santificante e da fé do Cristo cabeça visível da Igreja e assim não seria membro de Cristo e da Igreja. Ora, em um corpo físico quem não é membro físico não pode ser sua cabeça física, mas em um corpo moral ou em uma sociedade a cabeça moral pode subsistir sem ser membro moral da mesma sociedade. Com efeito, um corpo físico sem vida não subsiste e uma cabeça física morta não governa o corpo físico, ao passo que a cabeça moral de uma sociedade ou corpo moral o governa ainda que sem a vida espiritual ou a fé. (cf. Billuart, Cursus theologiae, Veneza, 1787).

Padre Reginaldo Garrigou-Lagrange

Recentemente também um dos maiores teólogos do século passado, Padre  Reginaldo Garrigou-Lagrange (1877-1964), no seu tratado De Christo Salvatore (Turim, 1946), comentando Santo Tomás (Suma Teológica III parte, qq, 1-90) e retomando a doutrina dos dois doutores dominicanos contra-reformadores citados acima, precisa que um Papa hipoteticamente herético occulto continuaria membro da Igreja em potência, mas não em ato, e manteria a jurisdição pela qual governaria visivelmente a Igreja. O herético público, ao contrário, não seria mais membro da Igreja nem sequer em potência, como ensina Bañez, mas manteria o governo visível da Igreja.

É pacífico, portanto, para a sã e a mais alta teologia da primeira, segunda e terceira escolásticas (Santo Tomás, Caetano, Bañez e Garrigou-Lagrange) que, admitido e não concedido que o Papa incorra em heresia. manteria igualmente a jurisdição e continuaria chefe da Igreja, ainda que cessando de ser seu membro.

Se se tratasse de uma cabeça física, explica Padre Garrigou-Lagrange, isto seria impossível, mas é possível se se trata de uma cabeça moral e ademais “vice gerens“, ou seja se trata do vigário visível de Cristo invisível assunto ao céu e chefe principal da Igreja.

A razão é que a cabeça física de um corpo não pode influir e ordenar ao membros do seu corpo, se dele estiver separada fisicamente porque não recebe mais a vida da alma separada da cabeça e do corpo (por exemplo, João é decapitado e morre, a sua alma deixa o seu corpo e a sua cabeça não  dirige mais, através do cérebro, todos os seus órgãos), ao passo que uma cabeça moral de uma sociedade ou de um ente moral (temporal como o Estado ou espiritual como a Igreja) pode exercer a jurisdição sobre o ente moral também se está separado  (por erro contra a fé ou por pecado) da Igreja (1) e do influxo vital interno e sobrenatural de Cristo. Isto, ainda que seja anormal e excepcional, é possível (2),

(1) João Hus (1369 – 1415) afirmava, como os donatistas, que os sacerdotes privados da graça santificante não conferem os sacramentos validamente (DS 1208). Ele estendia esse princípio também ao poder concernente ao governo e à jurisdição da Igreja. Em outras palavras, segundo Huss, um papa que não segue São Pedro nos bons costumes e na confissão da fé não é papa, sucessor de  de Pedro, mas é vigário de Judas Iscariotes (DS 1212-1213); se o Papa é mau ou infiel, então, à semelhança de Judas, é um demônio, um ladrão, destinado à eterna ruína, e não é chefe de uma santa Igreja militante, não sendo sequer membro desta (DS 1220). Segundo Huss, isto vale para todos os cardeais e bispos e também para os titulares dos poderes civis: “ninguém é pública autoridade civil desde o o momento em que se acha em estado de pecado mortal” (DS 1230). Cf. G. Perini, I sacramenti, Bolonha, 1999; verbete Huss, in Enciclopédia Católica).

(2) Não é absolutamente ou metafisicamente possível ainda que por  milagre só o que repugna (por exemplo que um triângulo, continuando tal, tenha quatro ângulos); é fisicamente possível por milagre que um peso deixado no vácuo não caia sobre a terra se Deus suspende as leis naturais; ao contrário, só de maneira excepcional e anormal é moralmente possível que uma mãe deteste e mate seu filho indo contra a inclinação natural.

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2) O sedevacantismo e a questão da Missa “una cum”

Uma questão espinhosa

Resolve-se, assim, a famosa e espinhosa questão da Missa celebrada “una cum famulo tuo Papa N.” (Paulo VI-Francisco I). De fato, assim como o Papa hipoteticamente herético não seria membro vivo da Igreja por falta de graça, nem faria parte do corpo da Igreja por erro contra a fé, mas seria, todavia, sua cabeça visível quanto ao governo ou à jurisdição segundo a melhor teologia tomista do Aquinate ( falecido em 1274), assim também para os teólogos da Contra-Reforma (século XVI), bem como para Billuart (século XVIII) e para o Padre Garrigou Lagrange (falecido em 1964) é absolutamente lícito citar no cânon da missa o Papa (eventualmente) herético, que não é membro da Igreja, o qual, entretanto, no que concerne ao poder de jurisdição, é a sua cabeça, dizendo, como reza o cânon: in primis, quae tibi offerimus pro Ecclesia tua sancta catholica: quam pacificare, custodire, adunare et regere digneris todo orbe terrarum: una cum famulo tuo Papa nostro N. et antistite nostro N. / Em primeiro lugar oferecemo-vos estes dons pela vossa santa Igreja católica para que vos digneis pacificá-la e governá-la em todo o mundo juntamente com (una cum) o vosso servo o nosso Papa N., e com o nosso bispo N.” Pede-se, com efeito, ao Senhor que pacifique, custodie, reúna e governe a Igreja juntamente com o Papa e com o bispo do lugar onde se celebra. Em suma, roga-se pela Igreja, pelo Papa e pelo bispo; nada de mais, nada de menos. Esta é a tradução exata das palavras “una cum”  do cânon da missa. (cf. G. Campanini – G. Carboni, Vocabolario Latino-Italiano, Italiano-Latino, verbete “cum”: “preposição com ablativo indicante companhia. […]. Una cum, juntamente com.

Os sedevacantistas pretendem que essas palavras signifiquem: “…a vossa santa Igreja católica que é uma só coisa com o vosso servo o nosso Papa N.”. Ora, ainda que assim fosse e se dissesse, no cânon da Missa, que a Igreja e o Papa são uma só coisa porque o Papa é o seu fundamento e cabeça visível, à luz de quanto ensinado pelos teólogos retro-citados não haveria nenhum inconveniente. Portanto o Papa pode ser nomeado no Canon Missae também segundo esta tradução inexata sem cometer nenhum pecado.

 

Prima Sedes a nemine judicatur

 

No caso de um Papa mau, que conduza a Igreja na direção de uma grave crise na fé e nos costumes, assim como nenhuma autoridade humana é superior ao Papa pode-se rogar a Deus que o converta ou que o tire desta terra como Santo Tomás de Aquino ensina: “o mau prelado pode ser corrigido pelo inferior que recorre ao superior denunciando-o, e se não há um superior (como no caso do Papa, cujo superior é só Cristo, ndr), recorra a Deus a Deus a fim de que o corrija ou o tire da face da terra” (IV Sent., dist. 19, q. 2, a. 2). Em nenhum caso se pode julgar o Papa ( com um veredito jurídico, entende-se) e depô-lo do Papado: “Prima Sedes a nemine judicatur”. O Concílio Vaticano I (IV sessão, constituição dogmática Pastor Aeternus) definiu dogmaticamente o princípio da “injudiciabilidade” do Papa por qualquer autoridade humana e eclesiástica:

“Ensinamos e declaramos que, segundo o direito divino do primado papal, o Romano Pontífice é o juiz supremo de todos os fiéis (…) Ninguém poderá julgar um pronunciamento da Sé Apostólica, pois não há autoridade maior que ela. Portanto, quem afirma ser lícito recorrer contra  as sentenças dos Romanos Pontífices ao concílio ecumênico, como a uma autoridade superior ao Sumo Pontífice está afastado do reto sentir da verdade (DS. 3063-3064).

O Código de Direito Canônico de 1917, no cânon 1556, retomando a definição dogmática do Vaticano I, estabeleceu o princípio: Prima Sedes a nemine judicatur, retomado tal e qual também pelo Código de Direito Canônico de 1983, cânon 1404.

Por conseguinte, no cânon da Missa é lícito rogar a Deus que ajude a Igreja juntamente com o Papa e o bispo do lugar (una cum famulo tuo Papa nostro N. et Antistite nostro N.) e que, se não há outro remédio, tire da face da terra “Papa nostro Francisco” e o acolha no seio da sua misericórdia. Observe-se, porém, que desejar a danação de quem quer que seja é pecado mortal.

3) Conclusão

Não há, pois, nenhum pecado em nomear no Canon Missae o nome do Papa considerado, mas não demonstrado, degradado do pontificado, porque, admitido e não concedido, que não seja membro da Igreja por eventual indignidade ou heresia, continua a ser a cabeça e o fundamento visível da mesma Igreja quanto ao governo. É lícito também assistir à missa una cum sem cometer pecado mortal

Um batizado criminoso por sua vida imoral e falta de fé, se eleito canonicamente Papa, não é membro vivo ou não é de fato membro da Igreja, porém continua a ser sua cabeça (ainda que indigno) quanto ao poder de jurisdição. De modo que a governa visivelmente e deve ser nomeado no cânon da Missa sem por isso macular-se de pecado e emporcalhar a Igreja, que é santa quanto à sua natureza (Corpo místico de Cristo), ao seu fim (o céu), à sua origem (Cristo) e aos seus meios ( sacramentos, magistério infalível, leis), mas é composta, por divina vontade, de membros tanto os santos quanto os pecadores. O Papa como membro pode ser um pecador também contra a fé, hipoteticamente poderia ser considerado “herético”, mas só de maneira puramente investigativa ou dubitativa, como quando Santo Tomás se pergunta, de forma ficticiamente dubitativa “An Deus sit/ Se Deus existe” (S. Th. 1ª q. 2. a. 3), contudo em ambos os casos continuaria a ser cabeça visível (ainda que indigno) da Igreja quanto ao seu governo.

Privar hoje, neste mundo contemporâneo literalmente “infernal”, os fiéis da missa tradicional porque é celebrada nomeando no cânon o nome do Papa eleito canonicamente e reinante publicamente ainda que mal é uma aventura criminosa, que expõe a maior parte dos fiéis ao risco próximo de não poder viver habitualmente em estado de graça, privando-os de todos os sacramentos administrados “una cum”.

Aos fiéis é lícito ir a qualquer missa tradicional (celebrada também não “una cum“) porque é o ministro que responde  a Deus por suas escolhas, enquanto o fiel deve só responder se observou o 3º mandamento: “Recorda-te de santificar as festas”.

Não esqueçamos jamais o ensinamento do Angélico segundo o qual “Deus não abandona jamais a sua Igreja ao ponto de não poder encontrar ministros suficientes para as necessidades do povo” ( S. Th., Suppl. q. 36, a. 4, ad. 1). Ora, se os únicos sacramentos lícitos fossem aqueles administrados sem o “una cum“, os ministros católicos seriam talvez uma centena sobre um milhão e meio de fiéis católicos. Seriam, portanto, totalmente insuficientes para a necessidade do povo e a Igreja não seria mais “católica” ou seja dispersa pelo mundo inteiro, seria uma igrejola nem sequer nacional, mas só regional.

Petrus

Tradução do italiano do periódico católico anti-modernista  Si Si No No, 15 de dezembro de 2016.