A nobreza, a revolução e o rei da Espanha

Postado em 09-03-2010

Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa

A notícia de que o rei da Espanha sancionou uma lei que amplia consideravelmente a possibilidade de praticar aborto naquele país suscitou um interesse pelo papel da realeza e da nobreza no mundo moderno.

É preciso reconhecer que há muito equívoco, muita confusão em torno da idéia de nobreza. A inveja e a soberba que sempre amesquinharam o coração do homem sem Deus encontraram em nossos dias um poderoso aliado na campanha difamatória da revolução mundial contra o próprio conceito de nobreza. Por outro lado, cumpre dizer que muitos membros da nobreza trabalham para a sua própria ruína mostrando-se tão arrogantes e empertigados, tão endeusados, que precisam cair num abismo de opróbrios para que se lembrem de que são simples mortais. Acham que, sendo assim tão altivos, combatem o igualitarismo da democracia moderna, quando, na verdade, só ajudam a passar uma imagem antipática e impopular da monarquia.

Hoje, em conseqüência da ideologia revolucionária, confunde-se a nobreza com o odioso regime de castas, em que a sociedade se divide em classes incomunicáveis, uma estratificação social fundada numa visão fatalista do destino do homem, como ocorria no antigo hinduísmo. Nada mais falso. A nobreza cristã, principalmente a portuguesa, sempre conheceu a mobilidade social, conforme demonstram com muitos documentos históricos Gilberto Freyre em Casa grande e Senzala e Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Diz este autor que “a nobreza permaneceu aberta ao mérito ou ao êxito, não se enquistando, como noutros países; e ao se tornar acessível com certa facilidade, favoreceu a mania geral de fidalguia. (Em Portugal somos todos fidalgos, diz Fradique Mendes numas das cartas).[1]

Que significa nobreza? Transmite-se ela pelas gerações? Tem ainda algum valor para a sociedade hodierna a antiga nobreza da Europa? Proponho-me analisar essas questões.

Quando se fala em nobreza, a primeira idéia que acode à mente do homem é ser o antônimo de vileza. Vil é aquilo que não tem valor, desprezível, indigno. Portanto, nobre é aquilo que é valoroso, magnânimo, generoso, liberal.

Nada mais incompatível com a nobreza do que a avareza,  a perfídia e a crueldade. Admite-se um nobre luxurioso, mas um nobre avaro e traidor dos valores tradicionais é inconcebível. O vício, com efeito, será sempre um grave senão, sobretudo em um príncipe que não deve jamais estar sujeito à vontade alheia e ser sempre senhor da sua própria vontade. Mas a história  prova que houve grandes monarcas que não se notabilizaram pela pureza de costumes e, não obstante, foram magnânimos e valorosos na defesa da cristandade e do império.

Recorde-se, a propósito, a figura  do rei da Ludwig da Baviera, que terminou seus dias demente e foi tão bem retratado por Luchino Visconti. O infeliz era nobre apesar das suas debilidades morais, pois era um homem generoso e mentor das artes. Maria Madalena, descendente de nobre prosápia israelita, pobre cortesã, ainda assim conservava sua nobreza, porque seu coração ansiava pelo Salvador e com isso se distinguia dos outros homens cínicos e vulgares. Grande mulher! Que belo quadro lhe traçou Plínio Salgado em paginas realmente antológicas da sua  Vida de Jesus. Mas, a rigor, ser nobre é viver uma vida santa segundo os ensinamentos da Santa Igreja. Não é por acaso que muitos solares fidalgos contam entre seus antepassados grandes santos.

A segunda questão é saber se a justo título a nobreza se transmite por gerações sucessivas. Em princípio, sim, ainda que haja o perigo da degenerescência. Diria que a nobreza de sangue tem fundamento cientifico se a ligarmos ao dado biológico da Lei de Mendel que a sociologia considera como o fator hereditariedade para o estudo da sociedade e a boa pedagogia leva em conta para descobrir e explorar as aptidões do educando.

Com efeito, a experiência ordinária nos ensina como a simples recordação do bom nome dos antepassados ajuda o homem a portar-se bem, a não querer desonrar a memória dos seus avós. Ai de quem não tem berço! O poeta Manuel Bandeira tem um poema encantador em que apela para o brio de uma ilustre estirpe brasileira:

 

Hoje, afilhado, és pirralho.

Mas a infância terá fim

E a herança ilustre comanda:

Álvaro, olha que és Carvalho!

Olha que és Cesário Alvim!

Olha que és Buarque de Holanda! [2]

 

É claro que sempre haverá o risco de a nobreza ser tão antiga, tão remota que quase já se extinguiu com a inclemente sucessão dos séculos que tudo devora. É raro um caso como o de São José, da real casa de Davi, que tinha trocado o cetro havia tanto tempo por um pobre serrote de carpinteiro sem perder sua dignidade régia. Muitos nobres destronados, infelizmente, subsistem de forma pouco decorosa, não imitando o santo patriarca.

A terceira questão é saber que significado poderá ter ainda hoje a antiga nobreza. Diria que tem, sim, uma função dentro da sociedade. Não só porque, realmente, há ainda nobres dignos de sua ilustre origem, mas também porque, na mesma medida em que fazem questão de se apresentar como tais, dão à sociedade o direito de exigir-lhes a prática das virtudes e o cumprimento dos deveres de seu estado. Ser valoroso sem pertencer a ilustre solar, mas só por bom uso da liberdade, é mérito pessoal, é algo inusitado que nos chama atenção pela sua singularidade (Normalmente, filho de peixe peixinho é!), mas ser valoroso como membro da nobreza é dever indeclinável.

Em conclusão, que pensar da nobreza hoje, que dizer do rei da Espanha? Se, por um lado, a atitude que tiveram há uns vinte anos o rei da Bélgica e mais recentemente o grão-duque do Luxemburgo recusando-se a sancionar a lei do aborto nos encheu de alegria e nos edificou ao ver que em nossos dias ainda há alguns príncipes católicos que honram suas tradições e fazem jus à fidelidade de seus súditos católicos, por outro lado, o rei Juan Carlos se despojou de toda sua nobreza, envileceu-se, tornou-se um rei desprezível como Herodes. Por medo de perder um trono já combalido pelo republicanismo do nosso triste tempo, desonrou a memória do seu avô o rei Afonso XIII, que consagrou a Espanha ao Sagrado Coração de Jesus e não se submeteu à intimidação da maçonaria para filiar-se à seita secreta. Juan Carlos de Bourbon é antípoda da nobreza cristã: covarde, sanguinário, oportunista, pérfido. Que os espanhóis providenciem outra dinastia!

 

Anápolis, 9 de março de 2010.

Festa de Santa Francisca Romana

 


[1] – BUARQUE DE HOLANDA, Sergio. Raízes do Brasil, p. 14, SP. 2007.

[2] – BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. RJ, 1993.