A superação da dicotomia entre teoria e prática no pensamento de Heidegger

Postado em 07-03-2008

Seminário sobre o pensamento político de Martin Heidegger

Universidade Federal de Goiás

 

 Como o pensamento de Martin Heidegger supera a dicotomia entre teoria e prática

 

 Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa

 

 Introdução

 Neste trabalho pretendo, inicialmente, mostrar o problema da relação entre teoria e prática na Antigüidade e na Idade Média, a solução que se lhe deu então; em seguida, examinar como o problema   reaparece na modernidade com o pensamento de Descartes e Marx e, finalmente, a solução que me parece dar-lhe Martin Heidegger. Aludirei, outrossim, às considerações de Heidegger sobre a relação entre ser e logos e logos e pólis, pois que auxiliam o escopo desta monografia

Na conclusão, com base no pensamento de Heidegger sobre a relação entre teoria e prática, procurarei dizer o que ele teria dito sobre política se se tivesse ocupado especificamente do assunto

 

 

A relação entre teoria e prática na Antigüidade e na Idade Média

 

No primeiro livro da República, Platão, refutando os sofistas, faz ver a unidade da atividade humana, dizendo que as realizações que produzem um efeito exterior não podem considerar-se como o fim último do agir, isto é, o fazer técnico não pode substituir-se à praxis humana.

Vale a pena reproduzir aqui alguns trechos do primeiro livro da República sobre o problema de qual seria mais vantajosa: a justiça ou a injustiça. Com efeito, a discussão entre Trasímaco e Sócrates ilustra bem a questão relativa à suposta dicotomia entre teoria e prática.

 

Sócrates – E se a injustiça surgir em dois homens? Não ficarão divididos, cheios de rancor, inimigos um do outro e dos justos?

Trasímaco – Ficarão.

Sócrates – E se, maravilhoso amigo, a injustiça surgir em um único homem, ela perderá o seu poder ou o manterá intato?

Trasímaco – Penso que o manterá intato!

Sócrates – Portanto, não parece possuir o poder, seja qual for o lugar em que ela surja, cidade, tribo, exército ou sociedade, de tornar primeiramente cada um deles incapaz de agir de acordo consigo próprio, devido às dissenções e contendas que causa e, em seguida, de torná-lo inimigo de si mesmo, do seu oposto e do justo?

Trasímaco – Sem dúvida.

Sócrates – E creio que, num único homem, a injustiça produzirá os mesmos efeitos que está na sua natureza produzir; em primeiro lugar, tornará esse homem incapaz de agir, provocando a rebeldia e a discórdia; em seguida, irá transformá-lo em inimigo de si mesmo e dos justos. Não é?

Trasímaco – É

Sócrates – Acabamos de concluir que os homens justos são mais sábios, melhores e mais poderosos do que os homens injustos, e que estes são incapazes agir harmonicamente – e quando dizemos que às vezes levaram a bom termo um assunto em comum, não é,  de maneira nenhuma, a verdade, porque uns e outros não seriam poupados se tivessem sido totalmente injustos; por isso, é evidente que existia neles uma certa justiça que os impediu de se prejudicarem mutuamente, na época em que causavam dano às suas vítimas e que lhes permitu realizar o que realizaram; lançando-se em seus injustos empreendimentos, só em parte estavam pervertidos pela injustiça, visto que os inteiramente maus e os totalmente injustos são também inteiramente incapazes de fazer seja o que for.1

No diálogo transcrito fica claro como o filósofo quer demonstrar a unidade do ato humano, de modo que não há nenhuma prática que não suponha uma teoria prévia. De fato, a prática não seria humana se privada de reflexão e de repercussão ética.

Mais adiante, Platão, servindo-se de exemplos, mostra como cada órgão tem uma função dele decorrente. E por isso diz na seqüência do  diálogo entre Sócrates e Trasímaco:

 

Sócrates – Então, analisa agora isto: a alma não possui uma função que nada, a não ser ela, poderia desempenhar, como vigiar, comandar, deliberar e o resto? Podemos atribuir estas funções a outra coisa que não à alma e não temos o direito de dizer que elas lhe são peculiares?

Trasímaco – Não podemos atribui-las a nenhuma outra coisa.

Sócrates – E a vida? Não afirmaremos que é uma função da alma?

Trasímaco – Com certeza.

Sócrates – Portanto, afirmaremos que a alma também possui a sua virtude própria?

Trasímaco – Afirmaremos.

Sócrates – Então, Trasímaco, a alma executará bem essas funções se for privada da sua virtude própria? Ou será impossível?

Trasímaco – Será impossível.

Sócrates – Em decorrência disso, é obrigatório que uma alma má comande e vigie mal e que uma alma boa faça bem tudo isso

Trasímaco – É obrigatório.

 

A conclusão deste diálogo parece-me evidente: uma boa prática nada mais é que uma boa teoria, uma má prática decorre de uma má teoria.

Essas noções foram aprofundadas por Aristóteles em sua Ética a Nicômaco (livro I, 1-2), a quem seguiram em parte os medievais, mostrando que a atividade do homem se desenvolve em três domínios diversos entre si: theoresis (contemplação que enriquece o homem), poiesis (o fazer, que tem um caráter transitivo, pois consiste em modificar o mundo exterior), a práxis (o agir que aperfeiçoa o sujeito humano como tal, tornando-o bom).

Para a tradição cristã, portanto, theoresis, praxis e poiesis constituem a atividade humana integral, una e unitária, se bem que uma das dimensões resulte dominante em cada atividade: conhecimento, conduta ou produção. Deve-se distinguir, mas não separar. Entre estas dimensões há uma íntima compenetração e uma prioridade ontológica: assim como a pessoa supera em dignidade o mundo material, assim as dimensões contemplativa e ética superam a dimensão poiética.

Para  compreender  melhor a relação entre teoria e prática na tradição, convém, finalmente, examinar alguns artigos da Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino concernentes ao intelecto especulativo e prático e à virtude da prudência.

Na questão 79, da 1ª parte da Suma, artigo 11, Santo Tomás pergunta se o intelecto especulativo e o prático são potências diversas. Na reposta, diz o Aquinate:

 O intelecto prático e o especulativo não são potências diversas. E a razão é que o acidental, em relação ao aspecto do objeto a que se refere uma potência não diversifica a esta. Assim, é acidental ao colorido ser homem, grande ou pequeno; por isso, tais acidentes são apreendidos pela mesma potência visiva. Ora, é acidental ao que é apreendido pelo intelecto ser ou não ordenado à operação. E nisto está a diferença entre o intelecto especulativo e o prático; o que aquele apreende  não se ordena à operação, mas só a consideração da verdade; ao passo que o apreendido por este se ordena à operação.2

 

No mesmo sentido diz ainda Santo Tomás a propósito da virtude da prudência evidenciando sua concepção a respeito de teoria e prática:

 

Como se disse antes, à prudência pertence, não só o considerar racionalmente, mas também o aplicar-se à obra, fim da razão prática. Ora, ninguém pode convenientemente aplicar uma coisa à outra, sem conhecer a ambas, a saber, o que deve ser aplicado e o ao que deve sê-lo. Ora, os atos versam sobre o particular. Por onde e necessariamente, o prudente há de conhecer os princípios universais da razão e os casos particulares sobre que versam as ações.3

Vê-se, assim, que, para a filosofia escolástica a relação teoria e prática não representa um problema; para ela, não há separação entre ambas, das premissas teóricas decorre naturalmente a prática, se se ordena à ação.

 

O reaparecimento da dicotomia entre teoria e prática na mundo moderno através da obra de Descartes

 

A obra do pai da filosofia moderna, Renato Descartes, patenteia uma dicotomia entre o intelecto especulativo que, aplicando o método dedutivo, chega ao cogito ergo sum, verdade evidente e fundamento de toda ciência, e o intelecto prático incapaz de dirigir a ação humana mediante a aplicação de princípios teóricos aos casos concretos.

A  propósito, vale a pena reproduzir alguns trechos do Discurso sobre o método relativos à célebre moral provisória de Descartes. Com efeito, estes textos manifestam um gritante contraste entre o rigor da razão especulativa exigido pelo filósofo e a fragilidade da razão prática

Diz Cartésio:

 

E enfim, como não basta, antes de começar a reconstruir a casa onde se mora, derrubá-la, ou prover-se de materiais e arquitetos, ou adestrar-se a si mesmo na arquitetura, nem além disso, ter traçado cuidadosamente o seu projeto; mas cumpre também ter-se provido de outra qualquer onde a gente possa alojar-se comodamente durante o tempo em que nela se trabalha; assim, a fim de não permanecer irresoluto em minhas ações, enquanto a razão me obrigasse a sê-lo, em meus juízos, e de não deixar de viver desde então o mais felizmente possível, formei para mim mesmo uma moral provisória, que consistia apenas em três ou quatro máximas que eu quero vos participar.

A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, retendo constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância, e governando-me, em tudo o mais, segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso, que fossem comumente acolhidas em prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de viver.

(…)E, assim como as ações da vida não suportam às vezes qualquer delonga, é uma verdade muito certa que, quando não está em nosso poder o discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis; e mesmo, ainda que não notemos em umas mais probabilidades do que em outras, devemos, não obstante, decidir-nos por algumas e considerá-las depois não mais como duvidosas, na medida em que se relacionam com a prática, mas como muito verdadeiras e muito certas, porquanto a razão que a isso nos decidiu se apresenta como tal. E isto me permitiu, desde então, libertar-me de todos os arrependimentos e remorsos que costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e vacilantes que se deixam levar inconstantemente a praticar, como boas, as coisas que depois julgam más.4

Efetivamente, parece-me desconcertante ouvir isto de um pensador que se havia proposto rever todos os conceitos e instaurar um novo sistema que se caracterizasse pela certeza e segurança. No entanto, como se sabe, a influência de Descartes sobre a cultura moderna foi notável e a tendência a separar a teoria da prática só fez aumentar nos pensadores posteriores a ele.

A conseqüência disto, a meu ver, será uma exaltação da poiésis (do fazer técnico) em detrimento da theoresis e da práxis, quer dizer, da vida espiritual e moral, levando o homem a sentir-se, ao mesmo tempo, um demiurgo e um escravo do mundo material. Isto está claro no plano sócio-econômico moderno, cujas leis se assemelham às leis físicas e cujo desenvolvimento se dá exclusivamente pelo fazer exterior (laissez faire, laissez passer). E não há diferença essencial entre liberalismo e socialismo quanto a esta questão: ambos privilegiam a poiésis  seja privada ou estatal.

Com efeito, se a teoria se desliga completamente da  realidade, se não há verdade a contemplar, só resta a ação, o fazer técnico.

Dirá Marx: “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diferentes modos, do que se trata é de transformá-lo.”5

 

 

A superação da dicotomia entre teoria e prática pelo pensamento de Martin Heidegger

 

A obra de Martin Heidegger contém várias passagens que demonstram como o seu autor tinha presente o problema da separação entre teoria e prática na filosofia moderna e se propunha dar-lhe uma solução.

Nesta monografia transcrevo algumas frases de Heidegger que me parece contêm seu pensamento sobre a relação entre teoria e prática. A solução que dá o filósofo a este problema parece-me encontrar-se sobretudo em suas considerações sobre como pensar a verdade do ser.

Na Carta sobre o humanismo há algumas passagens significativas sobre a questão que passo a transcrever:

 

O pensar que questiona a verdade do ser e nisto determina o lugar essencial do homem, a partir do ser e em direção a ele, não é nem ética, nem ontologia. E, contudo, a sua pergunta, pensada mais originariamente, retém um sentido e um peso fundamentais.

Pois deve perguntar-se: se o pensar, pensando a verdade do ser, determina a essência da humanitas como ex-sistência a partir do fato de pertencer ao ser, permanece então este pensar apenas um representar teórico do ser e do homem, ou é possível retirar, ao mesmo tempo, de um tal conhecimento, indicações para a vida ativa?

A resposta é: este pensamento não é nem teórico nem prático. É antes desta distinção que ele acontece e se realiza. Este pensar é, na medida em que é, a lembrança do ser e nada além disso. Pertencendo ao ser, porque por ele jogado na guarda de sua verdade e para ela requisitado, ele pensa o ser. Um tal pensar não chega a um resultado: não produz efeito. Ele satisfaz a sua essência, enquanto é.” (…)

Quais as relações que mantém, entretanto, o pensar do ser com o comportamento teórico e prático? Isto ultrapassa toda a consideração porque se preocupa com a luz na qual pode residir e mover-se um ver da teoria. O pensar atenta para a clareira do ser, enquanto deposita o seu dizer do ser na linguagem como habitação da ex-sistência. Deste modo,  o pensar é um agir. Mas um agir que, ao mesmo tempo, supera toda a praxis. O pensar perpassa a operar e a produzir, não pela grandeza dos seus resultados nem pelas conseqüências da sua atuação, mas através do mínimo do seu consumar destituído de sucesso.”6

 

Vale a pena transcrever um comentário de François Fedier a estas idéias de Heidegger: “O que significa ter que fazer a experiência da maneira de ser que realiza a humanidade no homem? Pode-se fazer esta experiência sem ter que ser, neste sentido original? Será ainda possível, aí, distinguir alguma coisa como uma prática e uma teoria? (No mesmo escrito, Heidegger destaca: “O pensamento age naquilo em que ele pensa”).7

Observa ainda Fedier que evidentemente Heidegger quis mais do que agir apenas em pensamento. Ele quis fazer passar o pensamento para a realidade, ao assumir, por exemplo, o cargo de reitor em 1933. Mas este trânsito do pensamento para a realidade concreta supera, por meio de uma nova determinação da essência do ser humano (dasein), a dicotomia entre teoria e prática.

Igualmente interessante assinalar a análise etimológica feita por Heidegger na Carta sobre o Humanismo do fragmento 119 de Heráclito que elucida a relação entre ética e ontologia. Diz Heidegger que o vocábulo ethos, em sua significação fundamental, designa uma meditação da habitação do homem, ou seja, é um pensar que pensa a verdade do ser como o elemento primordial do homem enquanto alguém que ex-siste, de modo que este pensar não é apenas Ética, porque é Ontologia.8

Em Introdução à Metafísica Heidegger, explicando os vários sentidos de ser e a relação entre ser e pensar, torna mais clara a questão quando diz que tal relação é anterior à distinção entre sujeito e objeto. Esta distinção, mal entendida, é responsável pela dicotomia entre teoria e prática. Diz Heidegger:

 

Quanto à distinção, Ser e Pensar, porém, o que se distingue do Ser o pensar, não somente pelo conteúdo, mas também pelo sentido da contraposição, se diferencia essencialmente tanto do Vir a ser, como da Aparência. O Pensar se contrapõe ao Ser de tal modo, que o Ser se lhe a-presenta (vor-gestell) e assim se lhe opõe como o que se lança contra (Gegen-s-tand).(…) Assim o pensar não é apenas o membro de uma distinção, de certo modo, diferente mas se torna o fundamento e a base a partir da qual se decide sobre o que se contrapõe, e isso a tal ponto de o Ser, como tal, ser interpretado a partir do pensar.9

Em seguida, examinando o significado da lógica e a essencialização do pensar, Heidegger aponta as conseqüências da redução do ser a objeto da episteme:

 

Como quer que seja, o recurso à lógica, com o fim de delimitar a essencialização  do pensar, já se torna uma empresa problemática pelo simples fato de a lógica, como tal, e não apenas algumas de suas doutrinas e teorias particulares, ser algo por demais questionável. Por isso, a “Lógica” tem de se pôr em aspas. Isso, porém, não significa nenhuma pretensão de querermos negar o que é lógico (no sentido de pensado corretamente). A serviço do próprio pensar procuramos lograr justamente aquilo, a partir do qual a Essencialização do pensar se determina, a alétheia e a physis, o Ser, como re-velação, aquilo que se perdeu precisamente com a lógica.

Desde quando existe a lógica, que ainda hoje determina todo nosso pensar e dizer e, desde cedo, vem condeterminando essencialmente a concepção gramatical da língua e com isso a posição fundamental do Ocidente frente à linguagem? Desde quando se iniciou a formação da lógica? Desde quando a filosofia grega entrou em seu fim, convertendo-se numa atribuição das escolas, da organização e da técnica. Isso se deu, quando o eon, o Ser do ente, aparece como idéia, e, como tal, se tornou o “ob-jeto” da episteme. A lógica se originou no círculo das atividades didáticas das escolas platônico-aristotélicas. É uma invenção dos mestres de escola, não dos filósofos.”10

 

Portanto, a meu ver, para Heidegger, a dicotomia entre teoria e prática é uma decorrência desta distinção entre ser e pensar que se cristaliza na lógica, que, por sua vez, determinará o pensamento técnico calculador. Em conseqüência disso, perde-se o ser como revelação, pois que o ser do ente se tornou objeto, e a percepção do ser como physis se degrada.

Na página 147 da referida obra Heidegger diz que é tarefa importante lutar contra esta excrecênscia do intelectualismo, esta desfiguração do pensar, sendo necessário para tanto o regresso à questão sobre  a referência essencial do Pensar com o Ser. Quer dizer, é necessário um pensar mais originário, mais rigoroso, pertencente ao Ser.

Ainda em  Introdução à Metafísica , no capítulo II sobre a gramática e a etimologia da palavra ser, Heidegger, analisando a interpretação de Heráclito sobre polemos (disputa), diz algo que interessa ao objeto desta monografia, a superação da dicotomia entre teoria e prática:

De certo, onde se extingue o embate, lá o ente não desaparece, mas o mundo se retrai. O ente já não se afirma (i.e. não se conserva, como tal). Aí o ente é apenas achado. Torna-se um achado. O perfeito já não é o que se estabelece dentro de limites (i.e. que alcança a plenitude de sua forma) mas só o que está pronto e, como tal, à disposição de todo mundo. É o objetivamente dado, onde já não se instaura nenhum mundo. Ao invés, o homem põe e dispõe do disponível. O ente se converte em objeto, seja para a contemplação (aspecto e imagem) seja para a ação produtiva, como produto e cálculo. O que instaura mundo originariamente, a physis, decai e degrada-se em modelo de imitação e cópia. A natureza se transforma numa esfera especial, distinta da arte e de tudo que se pode produzir e planificar. (…)

Sem dúvida o ente continua sendo. Sua aglomeração é maior e mais larga do que nunca dantes! Mas o Ser se retirou dele. O ente ainda conserva uma aparência de constância, por se haver tornado “objeto” de uma atividade sem fim e rica de variações”11

 

Em suma, quando a perspectiva originária do polemos cede lugar à lógica, a distinção entre sujeito e objeto, surge a dicotomia entre teoria e prática, pois o ente se converte em objeto seja para a contemplação seja para a ação produtiva.

Outro texto de Heidegger que ajuda a entender sua concepção de um pensar mais originário que respeita, por assim dizer, o ser e supera a dicotomia entre teoria e prática é o Discurso do Reitorado. Referindo-se à atitude teórica grega, diz o filósofo:

 

Mas o que é a teoria para os gregos? Responde-se: a pura consideração, que permanece ligada ao que está em questão, na sua plenitude e exigência. Este comportamento de consideração não deveria até, se nos referirmos aos gregos, ter lugar senão em função de si mesmo. Mas esta referência não é justa. Porque em primeiro lugar a “teoria” não tem lugar em função de si mesma, mas unicamente na paixão de ficar próxima do ente enquanto tal e submetida a ele. Por outro lado, os gregos lutavam justamente com o fim de compreenderem e de cumprirem esse questionamento como uma modalidade mais elevada da atividade humana. Não pensavam em alinhar a praxis sobre a teoria, mas inversamente procuravam entender a teoria como uma praxis correta.12

 

Finalmente, convém examinar o que diz Heidegger em sua conferência Hegel e os gregos sobre a noção de desvelamento do ser (alétheia), como o pensar originário. Diz Heidegger:

 

Verdade é para Hegel a evidência absoluta do sujeito que se sabe a si  mesmo. Para os gregos, porém, segundo sua explicação, o sujeito ainda não se manifesta enquanto sujeito. Por conseguinte, a Alétheia não pode ser o elemento determinante para a verdade no sentido da certeza.

Este é o estado da questão para Hegel. Se, porém, a Alétheia, encoberta e impensada como for, impera sobre o começo da filosofia grega, devemos então perguntar: não depende justamente a certeza, em sua essência, da Alétheia, uma vez estabelecido que não a interpretemos de maneira indefinida e arbitrária como verdade no sentido de certeza – mas a pensemos como desocultação?(…)

(…) Pois Hegel experimenta o ser quando o concebe como o indeterminado imediato, como posto pelo sujeito que determina e compreende. Conseqüentemente, não é ele capaz de libertar o ser no sentido grego, o einai, da referência ao sujeito para então entregá-lo à liberdade de seu próprio acontecer fenomenológico. Este, porém, é o pre-sentar, quer dizer, o surgir contínuo desde o velamento para o desvelamento.(…)

Qual o lugar da Alétheia mesma se libertada da perspectiva sobre a verdade e o ser tiver que ser entregue à liberdade que lhe é própria? Possui já o pensamento o horizonte para ao menos conjeturar sobre o que acontece na desocultação e mesmo na ocultação de que necessita qualquer desocultação?

O enigmático da Alétheia se torna mais compreensível, mas ao mesmo tempo o risco de nós a hipostasiarmos num ser fantástico se torna maior.

Observou-se ainda, já várias vezes, que não poderia dar-se um desvelamento em si, que desvelamento sempre é desvelamento “para alguém”. E com isso estaria provada sua “subjetivação”.

Deve, todavia, ser o homem em que aqui se pensa necessariamente determinado como sujeito? Significa “para o homem” já obrigatoriamente: posto pelo homem? Ambas as coisas podemos negar e nos vemos levados a lembrar que a Alétheia, pensada em sentido grego, sem dúvida alguma, impera para o homem, mas que o homem permanece determinado pelo logos. O homem é aquele que diz. Dizer, no alemão arcaico, sagan, significa: mostrar, fazer aparecer e ver. O homem é o ser que pelo dizer faz surgir o presente em sua presença e assim percebe o aí-jaz-presente. O homem apenas sabe falar na medida em que é aquele que diz.”13

 

Como se vê, pois, para Heidegger, o ser é anterior à estrutura sujeito-objeto. A lógica, sim, supõe uma adequação do sujeito ao objeto. A tecnocracia, que esvazia o ente do ser, se apóia na estrutura sujeito-objeto, pois que reduz o ente a objeto da ação produtiva e instaura assim a dicotomia entre teoria e prática.

Ademais, há algumas considerações de Heidegger acerca da relação entre ser e logos, logos e pólis que reproduzo em seguida, pois que lançam uma luz sobre o pensamento político do filósofo.

Procurando determinar o significado autêntico de logos a partir da análise de um fragmento de Heráclito, diz Martin Heidegger que para os gregos logos e ser são a mesma coisa: “Logos é a reunião (Sammlung) constante, a unidade de reunião, consistente em si mesma, do ente (die in sich stenhende Gesammeltheit des Seienden), i. e, o Ser. (…) Logos caracteriza o Ser de um ponto de vista novo e antigo, ao mesmo tempo: o que é ente, o que é consistente e estável, acha-se reunido em si mesmo por si mesmo, e se mantém nessa reunião.”14

E mostrando que a pólis pertence ao logos, diz a seguir Heidegger:

 

O eon, o ente, é, em sua essencialização, xynon, presença reunida. Xynon não significa o “universal” mas o que reúne tudo em si e o mantém junto. Um tal xynon é, segundo o fragmento 114, o nomos para a pólis, a legislação (legislar entendido aqui como reunir), a estrutura interior (das innere gefüge) da pólis, não um universal, não algo, que flutua sobre tudo e ninguém apreende, mas unidade originariamente unificante do que tende a separar-se.(…)

Posto que o Ser, entendido como Logos, é reunião originária e não amontoamento e entulho, em que tudo valeria igualmente tanto e tão pouco – convém e lhe pertence eminência e predomínio. Para se poder re-velar, tem que possuir e conservar em si mesmo uma posição proeminente. O fato de Heráclito falar de multidão, como de cachorros e jumentos, caracteriza essa posição. Ela pertence essencialmente à existência grega. Quando hoje se é partidário, às vezes com demasiado fervor, da Polis dos gregos, não se deveria subestimar esse lado, do contrário o conceito de Pólis se torna facilmente inocente e sentimental. O eminente é o mais forte. Por isso o Ser, o Logos, entendido, como a harmonia reunida, não é facilmente e de modo igual acessível a todo mundo mas oculto, em contra-posição àquele acordo, que significa nivelamento, aniquilamento de tensões, igualdade. (…) O verdadeiro não é para todo mundo, mas somente para os fortes.14

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

conclusão

 

 

Creio poder dizer que, se Martin Heidegger se tivesse dedicado especificamente à reflexão política, teria desenvolvido, na medida em que  permite a lógica do seu sistema, uma teoria caracterizada pelo esforço de conciliar o exercício da autoridade com a liberdade, a liberdade do ser que se expande e desvela.

Com efeito, a pólis pertence ao logos, que é o ser. Assim, o ser desvela-se pela ação criadora dos poetas e filósofos que manifestam o irromper de novas eras. De modo que pensar o ser, que é apolítico, é a condição de possibilidade de uma política compatível com a dignidade humana, a fim de que a physis não se degrade mas brote, se desprenda e em si mesma permaneça.

Tendo em vista a grande preocupação do filósofo com o problema da Universidade e do sentido autêntico da ciência, bem como suas reflexões sobre a relação entre pólis e logos, é lícito dizer também que Heidegger em seu pensamento político sublinhava a necessidade de uma elite dirigente e não dava muito valor à idéia de participação igualitária do povo na vida política.

Poder-se-ia ainda dizer, por derradeiro, que o pensamento de Heidegger encerra vários subsídios que auxiliariam muito a realização das inovações científicas e tecnológicas dentro de uma ordem de unidade da atividade humana mencionada no início desta monografia. O império da tecnocracia que hoje ameaça a dignidade humana decorre da falta de unidade da atividade humana, da dicotomia entre teoria e prática, que o pensamento de Heidegger supera .

Bibliografia

 

 

Fontes principais (obras de Martin Heidegger)

 

Introdução à Metafísica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969.

Carta sobre o Humanismo, Lisboa, Guimarães Editores, 1985.

Hegel e os gregos, São Paulo, Abril Cultural, 1973.

Discurso do Reitorado, Instituto Piaget.

 

Fontes secundárias (obras sobre Heidegger e outros)

 

ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Milão, Biblioteca Universale Rizzoli, 1993.

COLOM, Enrique. Chiesa e societá. Roma, Armando Editore, 1996.

DESCARTES. Discurso do Método, São Paulo, Nova Cultural, 1997.

FEDIER, François. Heidegger, Anatomia de um escândalo, Petrópolis, Vozes, 1989.

MARX, Karl. La ideologia alemana, Barcelona, Grijalbo, 1947.

PLATÃO. A República, São Paulo, Nova Cultural, 1997.

SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, Livraria Sulina Editora, 1980.


1 PLATÃO, A REPÚBLICA. Nova Cultural, 1997, livro primeiro, 36-37

2 Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Livraria Sulina Editora, 1980, 1ª parte, tradução de Alexandre Correia.

3 Suma Teológica, II II, q. 47, artigo 3.

4 DESCARTES, Discurso sobre o método, São Paulo,  Nova Cultural, 1996, livro III, p. 83-84.

5 MARX, La ideologia alemana, Barcelona,  Grijalbo, 1974, p. 668.

6 MATIN HEIDEGGER, Carta sobre o humanismo, Lisboa, Guirmarães Editores, 1985, p.89-90,94.

7 FRANÇOIS FEDIER, Heidegger, anatomia de um escândalo, Petrópolis, Vozes, 1989, p. 112.

8 Carta sobre o humanismo, p.88.

9 O. c. p. 142.

10 O. c. p.146.

11 O. c. p. 90-91.

12 Martin Heidegger, Escritos Políticos 1933-1966, Instituto Piaget, p. 96.

13 Martin Heidegger, Hegel e os gregos,  São Paulo,  Abril Cultural, Os pensadores, 1973, p. 409-411.

14 Introdução à Metafísica, p. 155.

14 O. c. p. 157-58.