Algumas ideias políticas de Alexandre Herculano e Jonas de Orléans

Postado em 06-06-2017

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Quando a política degenera completamente e se torna um caso de polícia, quando a sociedade perde a noção de lei natural e praticamente já não tem mais uma reserva moral, quando não se divisam mais lideranças confiáveis, quando a imensa maioria dos autores em voga e dos formadores da opinião pública estão cegos ou dominados pelas ideias falsas que levaram o mundo moderno para a ruína dos nossos dias, que restará ao homem de bem e de fé, além da oração e da penitência, senão voltar sua atenção para o grande tesouro da tradição, para os mestres da verdadeira arte política, para os grandes exemplos do passado e haurir deles esperança de que no futuro a nossa sociedade possa redescobrir o caminho da civilização e  restabelecer as instituições que em outros tempos asseguravam às famílias ordem e liberdade para consecução dos seus fins?

É o que tenho feito neste século de desolação. Reli há poucos dias páginas admiráveis do terceiro volume da História de Portugal, de Alexandre Herculano, em que o grande historiador, explanando os dois princípios que presidem à origem e desenvolvimento de todas as associações humanas, diz que a Idade Média, por meio da instituição do município ou concelho (como se chamava antigamente), aplicando à política o preceito da caridade  cristã, remediou os conflitos entre a liberdade individual e a desigualdade entre os homens. Diz Alexandre Herculano:

“Na essência de todas as associações humanas, em todas as épocas e por toda a parte atuam dois princípios: um da ordem moral, íntimo, subjetivo; outro da ordem material, visível, objetivo. É o primeiro o sentimento inato da dignidade e liberdade pessoal; é o segundo o fato constante e indestrutível da desigualdade entre os homens. As revoluções interiores das sociedades, as suas lutas externas, as mesmas mudanças lentas e pacíficas da sua índole e organização constituem fases mais ou menos perceptíveis do ascendente que toma um ou outro desses dois princípios em luta perpétua entre si.(…) Fatos ambos inegáveis e indestrutíveis, a grande questão social é equilibrá-los, e não tentar o impossível, pretendendo anular um ou outro; porque foi Deus quem estampou um na face da terra, ao passo que escrevia o outro no coração do homem.(…) Nunca a liberdade e a paz poderão subsistir enquanto concessões mútuas não tornarem possível a coexistência e a simultaneidade dos dois princípios.”

E mais adiante, escrevendo linhas que parecem ter inspirado Leão XIII na redação da famosa encíclica Immortale Dei sobre a constituição cristã dos Estados, enaltece a Idade Média como o solo fértil em que germinou e se desenvolveu a a instituição do município:

“Alumiada pelo clarão do evangelho triunfante, a idade média, época da fundação das modernas sociedades da Europa, oferece no complexo das suas instituições e tendências um começo de solução ao problema que o mundo antigo não soubera resolver. Causas diversas prepararam, durante os séculos XIV e XV, o estabelecimento das monarquias  absolutas, que impediram o desenvolvimento lógico daquelas instituições, na verdade bárbaras e incompletas, mas que, apesar da sua imperfeição e rudeza, continham os elementos do equilíbrio entre a desigualdade e a liberdade. Longe de negar ou condenar com cólera infantil as diferenças de inteligência, de força material e de riqueza entre os homens, ou de tentar inutilmente destruí-las, a democracia da Idade Média, representante do princípio de liberdade, confessava-as, aceitava-as plenamente, aceitava-as até em demasia; mas por isso mesmo, mostrava instintos admiráveis em organizar-se e premunir-se contra as tendências antiliberais dessas superioridades. Foram semelhantes instintos que produziram os concelhos ou comunas; esses refúgios dos foros populares, essas fortes associações do homem de trabalho contra os poderosos, contra a manifestação violenta e absoluta do princípio de desigualdade, contra a anulação da liberdade das minorias.” ( História de Portugal, Casa da Viúva Bertrand e Companhia, Lisboa, 1848).

É algo  digno de reparo que um autor romântico e liberal como Alexandre Herculano tenha tido a honestidade intelectual de reconhecer que a Idade Média, graças ao preceito evangélico da caridade, foi capaz de resolver um problema insolúvel na antiguidade pagã, época em que a lei era os ricos espezinharem os mais pobres, como bem mostra Fustel de Coulanges na Cidade Antiga.

O mundo de hoje, influenciado ainda pelas ideias do iluminismo, despreza a Idade Média e vai restabelecendo a sua maneira os costumes e instituições da antiguidade pagã, ao mesmo tempo que propala a falácia do igualitarismo. E por isso mesmo insiste na ideia de uma democracia baseada na partidocracia e no sufrágio universal igualitário e individualista. Insiste na utopia de que todos os homens são capazes de se autogovernar por meio de um regime de falsa representação popular.

Mas salta aos olhos que esse regime faliu, não só no Brasil, mas em vários países onde a ideologia revolucionária de Rousseau corrompeu os espíritos. É cada vez maior o número de pessoas que, se pudessem, condenariam à forca todos os políticos com  os seus familiares, as suas  concubinas e apaniguados.

Neste cenário caótico é preciso ter muita prudência e ideias claras. É preferível deixar esse regime apodrecer e sangrar até o fim e depois sepultá-lo. As pessoas de bem, assim me parece, deveriam ficar longe desse jogo democrático visceralmente corrupto e corruptor. Somente depois de reconstruída a sociedade civil com fundamentos sólidos em famílias bem estruturadas e em outras instituições, como, por exemplo, boas paróquias, boas escolas católicas, associações profissionais inspiradas na caridade cristã, é que poderemos restabelecer a política católica, a política a serviço de Cristo Rei, a política que, nas palavras de Sardá y Salvany, nada mais é que a aplicação dos princípios do Evangelho à cidade.

Neste mundo que desmorona diante dos nossos olhos ainda não apareceu um Carlos Magno com o qual se possa colaborar para reerguer a civilização. Poderemos, quando muito, propagar boas idéias, ajudar os homens retos a ter uma visão mais exata das raízes e causas do drama que vivemos e como procurar um caminho para o futuro.

Na corte de Carlos Magno havia um clérigo de grande capacidade intelectual, que depois de tornou bispo, Jonas de Orléans, que escreveu para o rei Pepino, neto de Carlos Magno, uma admoestação sob o título Admonitio et opusculum de munere regio, traduzida para o francês pela Editora Cerf como Le Métier de Roi. Na admoestação, Jonas de Orléans desenvolve os princípios da verdadeira política cristã como um dever de caridade e dá ao príncipe conselhos sempre atuais e úteis.

Lendo Le Métier de Roi, convencemo-nos ainda mais de que as instituições políticas da Idade Média, enaltecidas por Alexandre Herculano, só foram possíveis porque então se concebia realmente a política como um exercício da virtude da caridade. O texto de Jonas de Orléans é todo ele ilustrado por passagens da Sagrada Escritura, especialmente trechos do Antigo Testamento que contam como Moisés tinha disposto o governo do povo de Deus, bem como passagens dos Profetas e do livro dos Provérbios que sublinham a importância da justiça e da prudência como qualidades indispensáveis de um bom governante. Jonas de Orléans recorda a Pepino a vaidade e efemeridade das coisas do mundo, a necessidade de buscar a Deus pela prática das boas obras, pela meditação das Escrituras. Exorta o príncipe a cultivar a harmonia em sua própria família, nas relações com seu pai, Luís o piedoso, e com os seus irmãos, de modo que isso lhe venha a granjear o respeito dos seus súditos: “Convém, ou antes é necessário, que Vossa Majestade e seus irmãos, nossos senhores, permaneçais indissoluvelmente unidos pelo amor mútuo, e que concedais ao vosso pai a submissão que convém, consoante o respeito paterno, bem como a ordem e o preceito divino; é necessário que conserveis a honra que lhe é devida e lhe testemunheis um amor manifesto, a fim de que vosso pai exercendo o reino temporal e vós obedecendo-lhe segundo o direito, mereçais para o povo que vos foi confiado uma vida tranquila e pacífica, e para vós, em troca de uma administração valorosa e fiel da função que Deus  vos confiou, um reino eternamente feliz com Cristo.” (Le Métier de Roi, Editions de Cerf, Paris, 1995, p. 165)

Alta sabedoria política encerram essas palavras de Jonas de Orléans. Na antiguidade já tinha dito Aristóteles que a sociedade política é um reflexo do que são as famílias que constituem a sociedade civil. No regime monárquico organizado em torno de uma família a boa ordem no seio da sociedade doméstica ganha ainda maior relevância.

São igualmente notáveis as advertências de Jonas de Orléans, baseadas nos escritos de Santo Isidoro de Sevilha, para que o príncipe Pepino cumpra fielmente seus deveres:

“O rei deriva seu nome do fato de agir retamente. Se, com efeito, ele reina com piedade, justiça e misericórdia, é a justo título que se chama rei; se ele falta a essas virtudes, ele perde o nome de rei. De fato, os antigos chamavam tiranos a todos os reis. Mas, depois, aqueles que reinaram com piedade, justiça e misericórdia obtiveram o nome de rei. Sem nenhuma dúvida, não é nome de rei, mas o de tirano que se adapta àqueles que governam na impiedade, na injustiça e na crueldade.

Portanto, visto que é o fato de reinar que dá seu nome ao rei, ele deve, antes de tudo, esmerar-se, com o auxílio da graça de Deus, na própria pureza e na purificação da sua casa das obras más e em fazê-la abundar em obras boas, a fim de que todos os outros recebam sempre o bom exemplo.” (O. c. p. 185)

Em seguida, Jonas de Orleans, citando a Escritura (Rectorem te posuerunt – Eclesiástico, 32, 1), admoesta Pepino contra a soberba e lhe recorda o dever de ser um servidor do seu povo: “Em verdade, a justiça do rei consiste em não se servir de seu poder para oprimir quem quer que seja, consiste em julgar sem acepção de pessoa entre um homem e seu próximo, em ser defensor dos estrangeiros, dos órfãos e das viúvas…”

E depois, citando Santo Isidoro de Sevilha “quando os reis são bons, é um dom de Deus; mas quando são maus, a culpa é do povo”, Jonas de Orléans diz, com base na Sagrada Escritura (Deus faz reinar o hipócrita por causa dos pecados do povo – Jó 34, 30), que, quando Deus está em cólera, os povos recebem um chefe à medida dos seus pecados e chega a suceder que os reis sejam transformados pela malignidade do povo, e aqueles que pareciam bons antes se tornem injustos quando coroados.

Le Métier du Roi tem muitas outras lições de sabedoria e prudência políticas que conservam plena atualidade  transcorrido mais de um milênio desde o período carolíngio. Mas o que nos causa mais admiração é o autor conceber a autoridade política como o magistrado supremo de um reino a quem Deus confiou o dever de governar o seu povo pelo caminho das virtudes assegurando à grande família da cristandade justiça, ordem, paz, segurança e prosperidade. Bens estes negados ao homem moderno porque pretende ser independente de qualquer vínculo com o seu Criador.

Anápolis, 6 de junho de 2017.

São Norberto, bispo e confessor.

Dentro da oitava de Pentecostes.