Considerações sobre o espírito de Assis

Postado em 13-02-2011

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Entre as más notícias que recebemos logo no princípio deste ano, a notícia de que o papa Bento XVI tencionava promover a terceira edição do encontro inter-confessional irenista de Assis em comemoração do vigésimo quinto aniversário do primeiro encontro de triste lembrança foi a que mais assombrou os católicos. Muitos alimentavam, com base em rumores, a esperança de que o papa quisesse coibir abusos na área do ecumenismo sincretista que vinha devastando a Igreja nos últimos anos.

Devo dizer que hesitei muito antes de escrever estas mal traçadas linhas. Mas cheguei a persuadir-me de que estou obrigado, diante de Deus, a manifestar respeitosamente minha discordância, na esperança de que possa ajudar assim a reparar o inevitável escândalo que tal iniciativa do santo padre causará, na medida em que expressa uma mentalidade relativista e indiferentista.

Santa Catarina de Siena dizia que o silêncio tudo corrompe. E chegou a dizer ao papa Gregório XI que, se não era capaz de remediar à corrupção da Igreja, renunciasse ao pontificado. O Salmista diz no salmo 115Credidi, propter quod locutus sum. Embora esteja longe da santidade de Santa Catarina e do samista, resolvi falar simplesmente como presbítero católico para dar meu testemunho sem nenhum espírito de insubordinação.

Alguns católicos dizem que, em si, o encontro inter-confessional não representa um problema, pois está afastado, por várias medidas, qualquer   perigo de sincretismo. O problema residiria apenas na exploração midiática do encontro de oração. A impressa mundial é que fabricaria e venderia a idéia e a imagem de que as religiões hoje se confraternizam e rumam juntas para uma futura unidade em prol do gênero humano cada vez mais aflito diante de tantas ameaças.

Discordo desta posição que de alguma forma inocenta os responsáveis pelo desastroso evento. Faço uma comparação que me parece explicar bem a idéia que está por detrás do encontro ecumênico. Imagino-me (por absurdo) na organização de semelhante reunião. Se fosse uma pessoa influente na sociedade e convidasse representantes das diversas confissões a vir rezar nas intenções da paz  mundial, cada um separadamente, nas dependências da minha residência e, no encerramento, tirássemos fotos, todos juntos, e disséssemos que todos somos irmãos e nos amamos e respeitamos, que cultuamos o Ser Supremo e queremos viver em paz como irmãos etc, poderia eu pensar  no meu íntimo que os adeptos das outras religiões professam religiões falsas e que é meu dever trabalhar para que venham a abraçar a verdadeira religião? Poderia eu pensar que a Igreja Católica é necessária para a salvação? Poderia eu crer que fora da Igreja não há salvação? Poderia eu crer que existe a questão da salvação  e o perigo da condenação eterna? A resposta negativa se impõe. Se o inferno existe, está vazio, isto é o que explica o espírito de Asssis. Ou se existe, está reservado para os tradicionalistas-integristas-intolerantes.

Sinceramente, quando penso em um evento como o de Assis, a idéia que me ocorre é que, de fato, a própria idéia de religião degenerou. Há hoje uma vaga religiosidade que se mescla ainda, como um resquício de algo do passado, com o moderno humanismo, no qual o conceito de Deus ainda persiste como um subalterno a serviço do homem. Em suma, a teologia transformou-se em antropologia.

Por outro lado, é preciso dizer que o espírito de Assis é o espírito do mundo. Atende às mais altas instâncias da modernidade. Paulo VI disse que a ONU representava a última esperança de paz para a humanidade. A mesma ONU que declarou em 1948, no artigo 26, que a educação deve fomentar a amizade entre os grupos religiosos.  Que amizade pode haver entre Cristo e Belial a não ser que Cristo e Belial não signifiquem mais nada para os seus seguidores? Não diz a Sagrada Escritura que todos os deuses dos gentios são demônios e que aquilo que os gentios sacrificam sacrificam-no aos demônios?

Os mártires morreram à toa. É preciso inventar um novo tipo de mártir. Um mártir ecumênico que tenha morrido na defesa dos direitos humanos, mas não por ter defendido a fé verdadeira revelada por um Deus que está acima dos homens. Daí a idéia de um novo martirológio ecumênico.

Os organizadores do encontro de Assis podem querer defender-se fazendo alguns discursos teóricos que não terão nenhum efeito prático. Discursos que na verdade não expressarão claramente a verdade da fé, porque não existe dicotomia entre teoria e prática. Se Assis acontece é porque  na inteligência de muitos a fé periclita. É porque uma nova concepção de religião emerge.

Se o problema não se situa no plano teórico, se a doutrina da fé se mantém íntegra e o problema se acha apenas na ordem prática das coisas, é porque então vivemos um eclipse da virtude da prudência na Igreja. Os homens da Igreja manteriam ainda a doutrina sagrada mas não saberiam traduzi-la em gestos concretos no governo da Igreja. Daí a convocação de Assis III que seria um gesto de inconcebível imprudência.

Efetivamente, assistimos hoje na Igreja ao triunfo da prudência da carne. Quanta astúcia nas manobras de controle eclesiástico do chamado movimento tradicionalista! Não seria de espantar que Assis III refletisse um gesto de prudência da carne: vamos congraçar os credos para evitar uma catástrofe mundial!

Mas salta aos olhos que o espírito de Assis representa uma anomalia fragorosa que, estou convencido, nem sequer o papa pretenderá honestamente que se possa coadunar com a tradição católica, na perspectiva da sua propalada hermenêutica da continuidade, apesar das suas poéticas loas a um suposto pacifismo de um desfigurado São Francisco. Trata-se de um desvio gravíssimo das diretrizes históricas da Igreja que não se justifica nem sequer como um gesto político em defesa dos interesses da Igreja. Bem ao contrário do espírito de Assis, a liturgia romana tradicional prevê a seguinte antífona do ofertório no comum dos sumos pontífices, extraída de Jeremias 1, 9-10: “Eis que pus as minhas palavras na tua boca e te estabeleci sobre os povos e sobre reinos, para que arranques e destruas, edifiques e plantes.”

Desejaria encerrar estas reflexões (que faço em consciência  diante Deus pedindo a graça de guardar a fé)  parafraseando Tertuliano:

“Como você pode adorar a um só Deus, se promove (no original faz) tantos outros? Como pode adorar ao Deus verdadeiro, se promove  tantos deuses mentirosos? – Promovo-os, mas não os adoro. – A razão que proíbe adorá-los é a mesma que proíbe promovê-los: em ambos os casos, trata-se de ofensa a Deus. Mas você os adora, pois por você outros os adoram.” (De idolatria, c. 6, apud A ilusão liberal, Luís Veuillot, Editora Permanência, 2010).

Anápolis, 13 de fevereiro de 2011.

São Valentim, presbítero e mártir