Domingo da Sexagésima – 2019

Postado em 25-02-2019

“Exsurge, quare obdormis, Domine? Et ne repellas in finem.

(Levantai-vos, Senhor, por que dormis? Levantai-vos e não nos rejeiteis para sempre)

Meus caros irmãos.

Podemos dizer que a missa de hoje expressa toda a angústia, todo o sofrimento e toda tribulação dos filhos de Deus que querem viver conforme a sabedoria, que querem fazer a vontade do Pai, e produzir bons frutos para a vida eterna.

Este sentimento de angústia (não de desespero) está patente no belo intróito desta missa que, segundo Santo Agostinho, representa o grito dos mártires  que crêem firmemente na ressurreição do Senhor, que crêem que o Senhor se levantou e não dorme, e entretanto clamam: “Desperta, por que dormes, Senhor?”.

Clamam assim  porque os pagãos que os perseguem não crêem na ressurreição do Senhor, de modo que os mártires  pedem ao Senhor que ressuscite também para os pagãos, porque para estes o Senhor dorme. Se cressem no Ressuscitado, não perseguiriam os cristãos.

O intróito, portanto, expressa a causa principal de todo sofrimento moral do justo que não sofre apenas em sua carne uma perseguição movida pelos inimigos de Cristo, mas sente, sobretudo, uma angústia diante da incredulidade do ímpio que calca aos pés o sangue de Cristo e despreza o Senhor da glória.

Este intróito nos ensina a rezar pelos inimigos da cristandade, para que o Senhor ressuscite para eles, como ressuscitou para Saulo, o  qual, depois de convertido, se tornou o grande apóstolo do Ressuscitado.

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Depois, na Epístola, vemos o apóstolo como que a contragosto, como que constrangido por ter de falar de si mesmo e como que tentando dissimular tudo e atribuindo a uma terceira pessoa suas revelações, vemos o apóstolo confirmando todo o ensinamento do intróito. 

Que heroísmo, que generosidade a do apóstolo das nações, como o chama a oração desta missa, padecendo todo tipo de perseguição e crueldade por amor do nosso Divino Salvador! E suportou tudo apoiado na graça de Cristo: “De boa vontade me gloriarei nas minhas fraquezas para que habite em mim o poder de Cristo.”

Realmente, meus caros irmãos, a vida de São Paulo nos convence de que não há verdadeira vida cristã sem sofrimento. Quando abraçou a fé no Ressuscitado depois de ter caído por terra na estrada de Damasco, lhe foi mostrado pelo próprio Senhor, como se lê nos Atos dos Apóstolos, quanto havia de sofrer por amor de Jesus.

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No Evangelho de hoje, explicado pelo Divino Mestre, então, nem se diga como está clara a lei do sofrimento; como está clara a doutrina que diz que a palavra de Deus só brota e produz fruto pela paciência naqueles que têm um  coração bom e perfeito, quer dizer, naqueles que sabem sofrer por amor do reino do céu.

A parábola do Semeador, apesar de explicada pelo Senhor, talvez corra o risco de ser mal interpretada no mundo de hoje. A parábola nos fala dos vários elementos da natureza que se opuseram ao desenvolvimento da semente.

Talvez o homem moderno seja logo tentado a pensar que, realmente, a natureza é caótica, que nada está ordenado, nada obedece a um fim.

Talvez um maniqueu moderno até ouse dizer que a parábola do Semeador prova que o mundo foi criado por um deus mau porque todo o mundo físico parece levantar-se contra o Espírito de Deus.

 De maneira que, diante de um meio tão hostil e desordenado, diante de um mundo que parece não estar submetido à sabedoria das leis eternas, ao homem só compete vencer, por meio da ciência e da técnica, os obstáculos e desafios que  encontra pela frente para poder dominar tudo, para poder libertar-se de todo sofrimento e, enfim, ser vitorioso e feliz neste vale de lágrimas. Que ilusão! 

Quem pensa assim quer na verdade espalhar pelo mundo todo a desordem que reina apenas em seu coração.

Quem pensa assim jamais terá um coração reto capaz de acolher a palavra de Deus, a única que pode ajudar o homem a descobrir o sentido das dores que o afligem ao longo da sua vida.

É verdade que o homem tem de lutar contra vários elementos hostis da natureza para sobreviver e progredir, mas isto não significa que tudo seja caótico na natureza e que caiba ao homem ordenar tudo.

Ao homem cabe apenas descobrir a sabedoria e a bondade de Deus inscritas na natureza e respeitar a verdade das coisas.  E diante das dificuldades e mistérios da vida terrena, lhe cabe pedir as luzes do Espírito Santo para descobrir a vontade do Pai, os desígnios de Deus em vista da salvação da sua alma, sem jamais cometer a blasfêmia de dizer que Deus o condenou a viver em um mundo caótico, cheio de sofrimento e dores, onde nada tem sentido. Sem jamais nutrir a ilusão de que, por suas próprias forças, poderá resolver todos seus problemas. 

Mesmo porque nesta vida muita coisa não é problema, mas apenas mistério. E mistério só se encara com a luz da fé, com a sabedoria do alto, e não com uma ciência presunçosa.

Realmente, meus caros irmãos, diante do mistério da dor e do sofrimento ( e prestem atenção porque digo mistério da dor e não o problema da dor), não bastam os avanços da ciência e da medicina. A cruz estará sempre à nossa vista e à nossa espera.

Diante da cruz a única resposta, a única atitude, é a que nos dá a fé: temos de nos configurar com Cristo sofredor para merecermos o céu; temos de ter um coração bom e perfeito para reter a semente da palavra de Deus e fazê-la produzir pela paciência. Temos de ter consciência da nossa fraqueza, da nossa impotência diante das forças da natureza criada por Deus e aceitar os desígnios de Deus. Porque quando somos fracos é que habita em nós o poder de Deus, como diz o apóstolo.

Meus caros irmãos, para encerrar estas pobres meditações sobre um tema que nos causa calafrios a todos, desejaria citar um pensamento de Léon Bloy que nos ajuda a compreender melhor todo o alcance dos ensinamentos desta missa. 

“A Dor! Eis aí a palavra maior! Eis a solução de toda a vida humana sobre a terra! O trampolim de todas as superioridades, o crivo de todos os méritos, o critério infalível de todas as belezas morais! Mas não se quer absolutamente compreender que a dor é necessária. Aqueles que dizem que a dor é útil não compreendem nada. A utilidade supõe sempre alguma coisa de adjetiva e de contingente, e a dor é necessária. Ela é a coluna vertebral, a essência mesma da vida moral. O amor se reconhece por esse sinal, e quando esse sinal lhe falta o amor não passa de uma prostituição da força ou da beleza. Digo que alguém me ama quando esse alguém aceita sofrer por mim ou em meu lugar.”

Então, meus caros irmãos, roguemos a Rainha Dolorosa uma graça especial: a graça de servir sempre a Deus, seja no pleno gozo da saúde ou no leito de um hospital, seja na riqueza ou na pobreza, seja no gozo da boa reputação ou na humilhação da infâmia.

 Servir a Deus talvez nos cause menos espanto que sofrer por Deus, a nós pobres homens sensuais do mundo moderno.