Em torno de um livro de Thomas Storck

Postado em 04-01-2023

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

A ordem política católica e seus princípios fundamentais (Instituto Santo Atanásio, Curitiba, 2022) é um livro notável de Thomas Storck que merece ser lido com muita atenção e as devidas ressalvas.

O autor parte do princípio de que a doutrina católica sobre o Reinado Social de Cristo foi reafirmada e mantida em sua integridade pelo Vaticano II na declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis Humanae, a qual, embora aparentando estar em contradição com o magistério tradicional, na verdade confirma (adotando um tom diferente) a doutrina constante da Igreja sobre o erro do liberalismo e os deveres do Estado para com a religião verdadeira tal como explanada pelas grandes encíclicas de Pio IX, Leão XIII e Pio XI. Dignitatis Humanae representaria apenas um desenvolvimento da doutrina sobre a tolerância como a expôs Pio no seu  discurso aos juristas católicos Ci riesce, no qual o Papa Pacelli ensina que o dever de reprimir os desvios morais e religiosos não pode ser uma norma última de ação.

Acontece, porém, que Thomas Storck não consegue resolver o problema posto por Dignitatis Humanae, a qual não fala em tolerância religiosa, como o magistério precedente, mas sim em direito à liberdade religiosa, coisa jamais aceita pelo magistério tradicional, o qual sempre condenou a liberdade dos cultos como um mal. O autor tenta explicar essa inovação do Vaticano II estabelecendo uma distinção entre direito moral e direito político. No seu entender, Dignitatis humanae afirma um direito político à liberdade religiosa, direito que deve subordinar-se ao bem comum( e portanto pode ser limitado), não afirma um direito moral de o homem professar e propagar a heresia.

Cumpre dizer que tal distinção entre direito moral e direito político não passa de um argumento especioso sem nenhum fundamento na sã filosofia e à luz da reta razão. Como prelecionava o insuspeito filósofo Farias Brito, o qual, diga-se de passagem, considerava mortas todas as religiões: “Há, pois, uma norma de conduta consagrada pela própria consciência: é a moral. E há uma norma de conduta estabelecida pelo poder público: é o direito. São dois sistemas diferentes de leis? Não, porque a lei que o direito estabelece é a mesma lei moral (…) O direito é, pois, a própria moral, com esta diferença: que no direito a lei moral é assegurada coativamente  pelo poder público. Assim a moral é o todo de que o direito  é apenas uma parte, nem outra coisa se poderia imaginar, sendo que o direito nascido da política, que é uma concepção da sociedade, não poderia deixar de estar subordinado à moral…” ( A verdade como regra das ações)

Sendo, pois, o direito parte da moral, fica claro que não cabe falar em direito político a professar e propagar o erro. O que pode haver é que a autoridade política e religiosa, por medida prudencial,  não julgue oportuno reprimir o culto público das religiões falsas, o que caracteriza uma postura de tolerância religiosa e não uma concepção liberal do direito.

Diga-se, outrossim, que, para um católico, a política também é parte da moral, é a a virtude do bem comum. Negar isto é incidir no mais vil maquiavelismo.

É verdade que Thomas Storck defende a legitimidade de um Estado confessional católico e admite também o direito de um Estado católico coarctar o culto público das religiões falsas a fim de proteger o bem comum da sociedade, a qual tem na  unidade religiosa o seu valor mais precioso. O autor reconhece que a propagação das heresias faz um grande estrago em uma sociedade. Contudo, o autor não se mostra capaz de entender a diferença gritante entre a doutrina tradicional da Igreja, que afirma o dever de o Estado render um culto público a Deus por meio da religião verdadeira (que deve estar na condição de religião oficial do Estado) e o que diz Dignitatis Humanae, que admite a possibilidade do Estado confessional católico apenas como um regime excepcional sempre condicionado à garantia constitucional da liberdade religiosa.

Ademais, se restava alguma dúvida quanto à continuidade ou ruptura da Declaração Dignitatis Humanae com o magistério tradicional dos papas, os próprios atos da Santa Sé provam que houve uma ruptura: as reformas e derrogações das diversas concordatas com os antigos estados católicos após o Vaticano II, o diálogo inter-religioso, que demonstra que os homens do Vaticano modernista não querem converter mais ninguém à verdadeira religião, pois, de acordo com a nova teologia, a Igreja não é o reino de Deus, mas sim o mundo. De modo que basta dialogar com o mundo, com as “outras” religiões, para tentar melhorar as condições de vida na Terra.

Feitas essas ressalvas e outras mais referentes às suas considerações sobre o avanço tecnológico ( o autor, por exemplo, critica a invenção do automóvel que teria reduzido as pequenas cidades a cidades dormitórios, causando a quebradeira dos pequenos negócios locais) deve dizer-se que o livro do Sr. Thomas Storck, que é um protestante convertido ao catolicismo, tem dois capítulos notáveis: um sobre a legitimidade e necessidade da censura intelectual e outro sobre a democracia.

Sobre a censura diz com razão Storck: “Se um homem não tem o direito de lesar o seu semelhante atirando nele com uma arma de fogo ou dando-lhe uma substância mortal, por acaso deve ele ter o direito de lesar o seu próximo envenenando a sua mente e intoxicando a sua moralidade?

De um modo similar, se uma comunidade pode proteger-se das ameaças à sua saúde física, não permitindo, por exemplo, que alguém derrame veneno no seu reservatório de água, por que ela não poderia proteger-se contra as ameaças e danos à sua saúde intelectual e moral?”

Em seguida, o autor esclarece que, em âmbito acadêmico, deve haver liberdade de investigação de toda a produção intelectual, todos os filósofos, por mais errôneos e nocivos que sejam, devem ser estudados e refutados por mestres competentes. Entretanto, não se admite a apologia e a divulgação pelos meios de comunicação social de autores que defendam idéias falsas. Em suma, o autor defende o famoso Index, infelizmente abolido por Paulo VI; defende a figura dos censores do Estado, incumbidos de proteger a cultura católica contra os ataques de seus inimigos.

Semelhantes considerações sobre a censura são muito oportunas, sobretudo para nós brasileiros católicos, porque as críticas à censura política injusta imposta pelo Superior Tribunal Eleitoral no último período eleitoral acabaram tendo a conseqüência negativa de levar muitas pessoas a combater qualquer tipo de censura. Há, sim, censura justa e necessária.

O capítulo sobre a democracia tem o mérito de distinguir claramente a democracia moderna, fruto de uma sociedade individualista e massificada, e a democracia medieval em que o poder político se achava descentralizado através dos corpos intermediários: as guildas e municípios que gozavam de grande autonomia e tinham diversos privilégios, decorrentes da força de uma sociedade orgânica cheia de vitalidade. Storck faz ver que na democracia medieval “prevalecia uma concepção de governança na qual os governantes são convocados, acima de tudo, a respeitar as tradições sustentadas pela povo, as tradições da comunidade. Além do mais, se o rei não agia com retidão, ele perdia o seu direito de governar.  O rei tinha de responder, então, não a um complexo processo político – um processo passível de ser manipulado por aqueles que detêm o poder -, mas a alguns simples fatos: Ele violou a justiça? Ele traiu as tradições do seu povo? Se ele tivesse feito essas coisas,  ainda poderia, talvez, até se aferrar ao poder, mas todos saberiam que ele, na verdade, não era mais rei” (cf. p. 195) E disto conclui Storck: “Quanto mais um povo for capaz de conservar suas tradições, mais tenazmente ele se apegará à sabedoria tradicional e mais manterá esse bom senso que pode funcionar como um corretivo para os seus governantes” (ibidem).

A obra de Thomas Storck, portanto, deixando-se de lado seu equívoco sobre o problema da Declaração Dignitatis Humanae, merece ser lida, meditada, apreciada e divulgada. Além dos tópicos que resenhei, o autor tece considerações valiosas sobre a necessidade de uma cultura católica para a fé ser bem vivida. São belas suas reflexões sobre o direito de constituir uma família : o pobre também tem direito à casa e à família! Dá o que pensar, também, o que Storck diz sobre a organização econômica moderna. Como estamos longe da justiça e da ética cristã!

Recomendo, pois, ao eventual leitor destas mal traçadas linhas a leitura de A ordem política católica e seus princípios fundamentais (Instituto Santo Atanásio, coleção Política e cristandade, tradução de Luiz de Moraes).

 

Anápolis, 4 de janeiro de 2023.