Igreja descentralizada ou “individualizada”?

Postado em 22-10-2015

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Tenho acompanhado com interesse, como é natural, o desenrolar do Sínodo sobre a Família. Devo dizer, no entanto, que nada do que leio a respeito me surpreende ou preocupa. Tendo vivido sob os pontificados de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, só posso estar convencido de que tudo o que bispo de Roma hoje diz, defende e promove nada mais é do que consequência necessária do que disseram e fizeram seus predecessores citados. De modo que a única surpresa desagradável para mim é ver alguns ditos tradicionalistas escandalizados com Francisco I. como se ele ousasse temerariamente romper com a solidez doutrinária da Igreja pós-conciliar.

Ora, sabe-se que Paulo VI não estava intimamente persuadido do valor dos ensinamentos da encíclica Humanae Vitae, tanto assim que deixou que se questionasse por alguns anos a doutrina da Igreja sobre a paternidade responsável e nomeou bispos que a contradiziam abertamente.

João Paulo II, com sua visão personalista, acentuava os preceitos da ordem moral mais como decorrentes de uma exigência da natureza humana do que propriamente uma lei divina imposta ao homem. Seus ensinamentos sobre a moral familiar e a ética sexual estão, em geral, em harmonia com a tradição da Igreja, embora, em alguns pontos, discrepem, como, por exemplo, a questão da hierarquia de fins do matrimônio e do casamento misto. Mas nomeou bispos que não ensinavam a doutrina tradicional e fez, na maioria dos casos, vista grossa.

O bispo Ratzinger, antes de ser eleito papa, levantou a questão da comunhão dos recasados e depois, como papa, seu ensinamento mais chocante em matéria de ética sexual foi a defesa do uso do preservativo pelos prostitutos. Ademais , foi um ardoroso apologista da liberdade de consciência. Há um famoso discurso dele que diz que, se tivesse de brindar à autoridade e a consciência, brindaria primeiro à consciência e depois à autoridade.

No momento, só me acodem à memória estes exemplos, que, certamente, poderiam multiplicar-se. Bastam, porém, para provar que Francisco I tem toda razão de dizer que apenas quer levar ao pleno cumprimento as disposições do Vaticano II. A muita gente causou raiva Bergoglio ter citado a intenção de João Paulo II de encontrar uma nova modalidade de exercício do ministério petrino para resolver os “desafios pastorais” do mundo contemporâneo.  À mesma classe de gente desagrada o fato de Francisco  I querer solucionar, de forma pragmática, sem muita especulação teológica, as dificuldades que vê no dia-a-dia da Igreja nas dioceses e paróquias espalhadas pelo mundo afora. Como se também nesse ponto Francisco divergisse dos seus ilustres predecessores da Igreja pós-conciliar. Ora, ninguém de boa fé me contestará que, embora fossem mais mais cultos e profundos na teologia,  Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI não eram absolutamente modelos de rigor doutrinário. Pelo contrário. Não obstante citações de São Tomás e do magistério de Pio XII, exerceram sua autoridade guiados pela nefasta nova teologia condenada pela Humani generis, de Pio XII.

A mim me parece hoje que a proposta de uma Igreja descentralizada que confiaria aos bispos e conferências episcopais a missão de encontrar para os diversos problemas pastorais soluções inspiradas no magistério da Igreja nada mais é que um sofisma. Porque, de fato, na imensa maioria das paróquias hoje o que prevalece é a soberania da consciência individual. O que ocorre na realidade é que Igreja apenas acompanha, anima, conforta, consola, aconselha os fiéis que a procuram, mas não há um exercício efetivo de uma autoridade. Cada um toma a decisão que quer. Isto está conforme o ensinamento de Francisco: cada um tem sua concepção de bem e deve segui-la. Neste ponto também Bergoglio se mostra em continuidade com João Paulo II, na medida em que parece influenciado pelo personalismo de Scheler que diz que o homem é o lugar único da divinização e que é um grave equívoco querer construir a ética sobre o dever ser normativo e não sobre sobre o dever ser ideal. (Cf. A filosofia contemporânea ocidental, I. M. Bochenski, Herder, SP, 1962). Na minha modesta opinião, é isto o que explica as diversas declarações e pronunciamentos  procedentes do Sínodo, no sentido de reduzir a doutrina moral da Igreja a um “ideal” a ser proposto e não uma norma a ser imposta.

Portanto, não se trata, na verdade, de uma descentralização, mas do reconhecimento, por parte da própria Igreja,  dos limites de sua ação no mundo moderno. Trata-se, realmente, de reconhecer que a imensa maioria dos católicos brinda primeiro a sua própria consciência e depois à autoridade.

Por último, que resultará do Sínodo? Creio que, se Francisco I vir que não triunfa a estratégia da “descentralização” (aliás, curiosamente contestada até por adeptos da inovações pastorais), redigirá depois um documento bem vago, bem misericordioso, em que reiterará mais uma vez sua doutrina da soberania da consciência individual. Igreja descentralizada não, mas individualizada, democratizada, roussseauniana, de um povo soberano e sacerdotal. Uma igreja em que o culto de Deus e o culto do homem dizem coexistir em paz.

Anápolis, 22 de outubro de 2015.