Maio de 1968 e a revolução global

Postado em 03-06-2008

Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa

Enfin, plus on examine les personages en apparence les plus actifs de la revolution, plus on trouve en eux quelque chose de passif et de mécanique. On ne saurait trop le repeter, ce ne sont point les homes qui mènent la revolution; c’est la revolution qui emploie les homes.

(Considerations sur la France, Joseph de Maistre)

Li há poucos dias uma surpreendente análise de Gilberto de Mello Kujawski sobre a chamada revolução da Sorbonne: maio de 1968 não tem nada que ver com a revolução socialista promovida pelas esquerdas, inclusive pela dita esquerda católica. Estas teriam visto com maus olhos os episódios de então.

Para o ilustre jornalista e pensador paulista, a revolução de maio de 1968 teria sido uma reação – só faltou dizer sadia – contra a fossilização da cultura ocidental, esclerosada, esgotada e estagnada no marasmo, sem nenhuma capacidade de inovação e originalidade.

Se bem entendi o ensaísta  de Ribeirão Preto, maio de 1968 teria sido uma erupção vulcânica de Eros, dando tônus à civilização ocidental, revigorando uma sociedade esterilizada e reprimida por tabus e preconceitos sobretudo na área do comportamento sexual. Os frutos que se produziram então  temô-los hoje à nossa disposição: libertação da mulher e aceitação da homossexualidade.

É de pasmar que um homem tão inteligente como o citado jornalista e pensador, sempre tão lúcido em suas reflexões e análises, tenha uma visão tão otimista e ingênua dos acontecimentos de 40 anos atrás.

Que o mundo moderno, modelado pelas instituições burguesas, nascido da Reforma e da Revolução Francesa, não fosse uma civilização apolínea, contra o qual se rebelasse o espírito dionisíaco da juventude de 1968 – para empregar categorias de Nietzsche – parece-me claro. Desde a crise nominalista do fim da Idade Média, a civilização ocidental veio deixando de orientar-se por princípios metafísicos e reduzindo a razão a instrumento da técnica, a serviço do domínio e destruição da natureza.

Maio de 1968 não foi um movimento ditado pela reta razão contra uma sociedade que havia ameaçado de morte a inteligência humana pelo rumo que vinha trilhando. Maio de 1968 foi uma rebelião dos instintos baixos do homem moderno contra o império debilitado de uma razão já destronada de sua nobre missão de investigar a verdade última das coisas e de  governar a vida moral do homem ocidental.

Quando a ética deixa de girar em torno do ideal de felicidade e do conceito de virtude para exaltar apenas a noção de lei natural racionalista (mas não racional) ao sabor de Grotius, quando o direito deixa de ser ars boni et aequi para ser apenas instrumento de conciliação dos arbítrios individuais como pretende Kant, quando tudo isto ocorre uma civilização já está agonizando. Sem o apoio das virtudes, a lei moral não se sustenta, torna-se uma abstração odiosa, contra a qual se revoltam as paixões de uma juventude já abandonada e desnorteada por gerações mais velhas de uma civilização que havia muito já tinha perdido o norte. Efetivamente, nos últimos séculos a história do Ocidente tem sido a história do agravamento de uma enfermidade espiritual.

Maio de 1968 foi, sim, uma explosão de Eros ou do espírito dionisíaco na forma de estertores de um organismo social moribundo, leproso e canceroso. Os jovens de maio de 1968 equivocaram-se ao pensar que contestavam ou liquidavam uma ordem oposta às suas idéias, quando, na verdade, só a prolongavam ou lhe davam um novo desdobramento. Pensavam voltar as costas para gerações  passadas que  lhes eram hostis quando na verdade os haviam gerado e queriam que eles dessem um passo adiante no processo revolucionário. A revolução é una, ainda que diversa em suas etapas e meios. A velha burguesia, pragmática, cientificista e hedonista, no fundo admirava os protestos dos universitários de 1968, como agora o confessa, dizendo que o que houve então foi um esforço de revitalização de uma cultura decadente.

Às lideranças de então faltou discernimento e prudência para ver a gravidade do problema. A exaltação da juventude foi e continua sendo um gravíssimo erro que solapa todas as instituições sociais, a começar pela família e pela Igreja. A vida tem de ser encarada como um projeto árduo, um desafio que os jovens devem enfrentar e, por isso mesmo, devem respeitar os mais velhos que já passaram por tal prova. Ao contrário do que diz Gilberto de Mello kujawski, a esquerda católica, ou melhor a Igreja do Vaticano II, viu com simpatia o movimento de rebelião juvenil e toda a contracultura dos anos sessenta. Documenta muito bem essa verdade histórica um singular discurso de Paulo VI aos hippies  que visitavam Roma em 1971 em uma manifestação pacifista. Monttini elogia então algumas atitudes de juventude moderna: espontaneidade, a libertação de certos vínculos formais e convencionais, a necessidade de ser ela mesma, o impulso de viver e interpretar o próprio tempo.

Como se vê, até a Igreja da “espontaneidade” e da “interpretação do próprio tempo” foi conduzida pela revolução, testificando as palavras de De Maistre. É incontestável que a Igreja, com sua nova atitude de abertura diante dos valores da modernidade, tornou-se muito mais um agente passivo dentro da sociedade, incapaz de fomentar a vida cultural dos nossos dias.

Se os comunistas  desprezaram o movimento de maio de 1968, é porque divergiam quanto à estratégia revolucionária mas não quanto ao fim. O fato de maio de 68 não ter sido provocado pelo conflito de classes não significa que tenha sido alheio à revolução global ou à dialética marxista. A mesma dialética que exacerba e explora os conflitos de interesse econômico pode exacerbar e explorar os conflitos de geração. Se hoje a direita liberal se congratula com os frutos de 1968 é porque é míope, não sabe ver o horizonte para onde conduz a revolução global. Só julga os acontecimentos da história pelo fator econômico, não vendo as implicações das profundas transformações culturais.

Uma civilização que aplaude o nascimento da chamada cultura gay e do feminismo, que não vê a ameaça que tudo isto representa para a  instituição natural da família, é uma civilização suicida. O próximo passo será a canonização da bestialidade.

Em maio de 1968 o espírito dionisíaco semeado por Nietzsche em fins do século XIX (ou a explosão de Eros de que falava o pensador do Anticristo) venceu a razão aviltada da civilização moderna. Em 1968 recusou-se a possibilidade de restaurar uma civilização fundada no Ágape cristão. Em maio de 1968 não se inovou nada, simplesmente porque não se olhou para o passado. Não se contestou a tradição, mas apenas se afundou ainda mais no pântano da modernidade. Ora, só se inova, só se projeta o futuro, quando se inspira no passado.