O choque de civilizações e o direito natural

Postado em 07-03-2011

(Nenhum povo se organizou até hoje sobre os princípios da ciência e da razão; não houve uma única vez semelhante exemplo, a não por um instante, por tolice.  A razão e a ciência, hoje e desde  o início dos séculos, sempre desempenharam apenas uma função secundária e auxiliar; e assim será até a consumação dos séculos. Os povos se constituem e são movidos por outra força que impele e domina, mas cuja origem é desconhecida e inexplicável – Os demônios  Dostoievski)

 

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

A atual crise política dos países árabes tem suscitado através da grande imprensa interessantes comentários e análises.

Deixando de lado a questão geopolítica, sobre a qual não me julgo apto a emitir uma opinião, desejaria apenas fazer algumas observações sobre um tema que tem relevância moral.
Refiro-me ao critério fundamental de que se têm valido alguns analistas para julgar quais serão os possíveis desdobramentos dos últimos fatos ocorridos no mundo árabe. Sempre com a cautela de evitar a pecha de profeta ou filho de profeta, vários comentaristas dizem que esses conflitos expressam o anseio universal pela democracia, pela liberdade individual, pelo respeito à dignidade da pessoa humana, valores que seriam mais patentes no mundo ocidental. Nota-se um otimismo com o rumo dos acontecimentos. Paul Wolfowitz, ex-subsecretário da Segurança de Bush, disse que os EUA têm tido êxito em sua luta para implantar a democracia de modelo ocidental em países de formação histórica tão diversa do ocidente, como, por exemplo, a Indonésia.

O critério fundamental que está subjacente a todas essas análises parece-me ser um resquício ou um resíduo da  doutrina do direito natural de matriz racionalista. Mas um resíduo que serve como ideologia para aqueles que querem impingir ao mundo inteiro uma padronização, uma uniformização das instituições políticas a partir do modelo da democracia ocidental moderna.

Com efeito, o sr. David Brooks, analisando  O choque de civilizações, obra de Samuel Huntington que se celebrizou como uma original reflexão sobre a política internacional posterior à guerra fria, diz que, para além das diferenças culturais que poderiam gerar conflitos entre as nações ocidentais e o mundo árabe, existe uma civilização universal, existem aspirações universais por dignidade, por sistemas políticos que ouçam, respondam e respeitem a vontade do povo. Segundo Brooks, existe o poder dos valores políticos universais, o anseio pelo pluralismo, pela abertura e pela democracia. Em suma, a consciência dos direitos humanos universais, o amor à liberdade. E qualquer homem são, não importa qual seja sua cultura, sua religião, sente-se injuriado quando esses valores supremos são espezinhados.

Ora essa análise do sr. Brooks nada mais é do que uma vulgarização da concepção racionalista do direito natural fomentada em ambientes iluministas que não resistiu à crítica do positivismo jurídico, como bem o demonstrou o ilustre professor José Pedro Galvão de Sousa.

O verdadeiro direito natural, fundamento e salvaguarda da dignidade da pessoa humana, tem de encarnar-se em instituições jurídicas e políticas que concretizem os primeiros princípios da razão prática em que consiste a lei natural. Por exemplo, assim como o decálogo, enquanto não se concretizar na vida do homem por meio das virtudes morais que são a segunda natureza do homem, não tem efeito prático nenhum, assim também os princípios universais do justo  e do bem no plano político, enquanto não se encarnarem em instituições costumes e tradições e não se revestirem de formas culturais, serão letra morta.

Ademais, um direito natural secularizado ou ateu, que recuse um fundamento último em Deus, não tem valor nenhum. Não é à toa que o insuspeito Giambattista Vico, em sua obra Ciência Nova, diz que direito (o jusdos romanos) deriva de Júpiter, porque se trata de ordens divinas.

Por isso, cumpre dizer que a democracia moderna, na medida em que consagra a liberdade do homem como valor supremo e não a subordina à lei de Deus, na medida em que não protege a vida humana inocente autorizando o aborto, não pode pretender ser um modelo de sistema político fundado nos primeiros princípios universais. Com efeito, constitui como fonte da norma suprema a vontade de um ser contingente e destrona o Ser Absoluto, sob cuja autoridade haveria possibilidade de algum diálogo entre homens de culturas e religiões as mais diversas.

Diria, pois, que se pode distinguir direito natural e cultura, mas não é possível separá-los, porquanto é a história ou a cultura que realiza o direito natural. Evidentemente, hoje há um abuso do conceito de cultura.   Qualquer coisa hoje pretende ter a pomposa qualificação de cultura, sob o patrocínio do  governo petista.

Utilizando-se dos recursos naturais, aprimorando o legado dos seus maiores, o homem é um ser cultural à proporção que aperfeiçoa e desenvolve os bens de que dispõe para sua própria conservação e progresso  sempre com vista às gerações futuras. Assim surgem e progridem as civilizações. Não quando abusa dos seus bens e se degrada física e moralmente.

Mas voltando ao problema da crise política no mundo árabe e os valores universais, o que me parece preocupante é  que tal visão otimista de alguns analistas, além de descurar o fator cultural religioso do islamismo (fator muito mais poderoso que o correspondente fator  na sociedade podre e decadente em que vivemos), na hipótese de ser correta, isto é, na hipótese de, realmente, a “cultura” ocidental secularizada ser tão avassaladora a ponto de fazer soçobrar toda a tradição religiosa islâmica com seus costumes antiqüíssimos e exercer um fascínio e um mimetismo sobre aqueles povos, certamente se verificará o problema do abstracionismo político, tão bem estudado pelo citado professor Galvão de Sousa.

Com efeito, o erro do abstracionismo político representou e representa ainda, sobretudo para os povos latino-americanos, enormes prejuízos, porque suas lideranças políticas, imbuídas de idéias novas, idéias nascidas do enciclopedismo e da ilustração, ficaram alheias à índole e à formação histórica dos seus próprios povos e passaram a querer construir sobre os ares, e não sobre a realidade concreta da sociedade com suas virtudes e mazelas, instituições políticas artificiais. Daí resultou a nossa desastrosa instabilidade política,  porque quisemos copiar o constitucionalismo liberal norte-americano.

De modo que cabe perguntar, sem nenhum intuito de ser profeta de desgraças, que será daqueles infelizes povos do norte do continente africano ou do Oriente Médio se quiserem enveredar por esse caminho ridículo de macaqueação universal do execrável  modelo norte-americano.

Sinceramente não creio que será esse o caminho a ser trilhado pelos árabes. Dominados pela força de uma heresia, contando com as riquezas incalculáveis do petróleo, eles têm tudo para nutrir um plano de hegemonia política e ser o flagelo de Deus contra a apostasia do Ocidente, realizando, assim, os desígnios da Providência Divina no mistério da história.

Anápolis, 7 de março de 2011

Festa de Santo Tomás de Aquino