O realismo político de Machado de Assis

Postado em 07-03-2008

João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Tem-se estudado a obra de Machado de Assis sob vários aspectos, tão inesgotável e atual é o seu conteúdo. Mas há uma faceta do grande escritor que me parece esquecida ou  despercebida, apesar da sua importância: o pensamento político de Machado de Assis. Alguns estudiosos dizem que Machado de Assis era um homem que vivia encerrado em si mesmo, entregue à produção de sua obra literária e indiferente ao mundo que o cercava. Outros autores se limitam a atribuir-lhe uma  índole conservadora que o manteria distante das reivindicações sociais do seu tempo. Tudo isto me parece um equívoco de um simplismo deplorável.

Tendo-me dedicado há algum tempo à leitura da obra machadiana, especialmente seus contos e crônicas compilados por Raymundo Magalhães Júnior (Editora Jackson do Rio de Janeiro), pude apurar a notável capacidade do grande escritor de observar e acompanhar, sempre com comentários perspicazes, os fatos e debates políticos da sua época. Machado de Assis não demonstra, em suas crônicas e folhetins, interesse apenas por assuntos culturais e artísticos da sua querida cidade do Rio de Janeiro, mas um sadio cosmopolitismo, uma visão ampla sobre tudo aquilo que de transcendente acontecia pelo mundo afora e lhe chegava ao conhecimento através dos parcos meios de comunicação daquele tempo.

Proponho-me neste artigo analisar os principais argumentos desenvolvidos por Machado de Assis em suas considerações sobre as idéias políticas do seu tempo para mostrar o seu realismo, suas limitações (porque também as tinha, devido, em parte, à falta de uma formação filosófica sistemática) e o seu bom senso ante as contingências da vida política. Creio que se podem distinguir duas ordens de reflexões políticas desenvolvidas por Machado: umas resultam de situações concretas que lhe chamavam a atenção, outras mais genéricas, ou teóricas, que revelam seu pendor filosófico, sua visão de mundo. Estas duas ordens de reflexões se complementam, se esclarecem, permitindo-nos conhecer melhor o grande escritor.

Inicialmente, convém oferecer uma prova  do interesse de Machado de Assis pelos assuntos políticos do seu tempo: a severa crítica que dirige à classe política de então. Diz Machado, em uma crônica de 5 de março de 1867, véspera de eleições legislativas: “Eu creio que há em todo o império uma soma de políticos capaz de formar cinco ou seis câmaras. É que não há outra classe mais numerosa no Brasil. Divide-se essa classe em diversas seções: políticos por vocação, políticos por ambição, políticos por vaidade, políticos por interesse, políticos por desfastio, políticos por não terem nada que fazer. Imagino daqui o imenso trabalho que há de ter V. Exa. em escolher os bons e úteis dentre tantos. E esse é o meu desejo, essa é a necessidade do país.”

Como se vê, o grande romancista perscrutador da alma humana aplicava o seu largo tirocínio também à análise do caráter do homem público.

Cumpre dizer que Machado de Assis era um partidário convicto do regime representativo, o que se pode verificar em várias de suas crônicas. Não obstante, tinha consciência de que esse regime, entre nós, apresentava um vício de origem: a sociedade simplesmente não  julgava que os parlamentares representassem seus  anseios perante o Estado. Em uma crônica datada de 21 de janeiro de 1885, Machado se reporta à questão do subsídio  parlamentar que fora muito discutida anos antes pelo deputado Paula Cândido, o qual queria encontrar uma solução para o que lhe parecia uma injustiça: um eleitor ter de arcar  com o ônus do subsídio parlamentar quando não elegeu seu candidato. O justo seria fazer pagar os subsídios pelos eleitores do deputado eleito. A questão parece cômica e descabida, mas impõe uma interrogação: não há amplos setores da sociedade que não estão representadas perante o Estado e, todavia, concorrem com seus impostos para a manutenção de uma instituição que não defende seus interesses?. Machado trata a questão com muita ironia, propondo uma alternativa que garantiria as eleições mais tranqüilas e pacíficas: “A minha idéia é que basta decretar a idéia de Paula Cândido para termos boas eleições, pacíficas e solenes, sem fraude nem murro. Decreta-se que cada eleitor, ao entregar a sua cédula, depositará na mão do presidente uma nota de vinte mil réis, e aqui está como se passarão as coisas.”

O leitor deduz por si as conseqüências de tal decreto. Machado acompanhava com vivo interesse os debates parlamentares, comentando-os com agudeza, empregando trocadilhos espirituosos. Dizia que parlamentar, na verdade, muitas vezes é paralamentar; que muitos dos parlamentares em seus discursos andam de jaqueta diante de seus contemporâneos e depois, corrigindo os tropeços de sua fala, querem passar de casaca para a posteridade, mas que ele os faria passar nus. Com efeito, lendo suas crônicas, conhecemos melhor as figuras da nossa monarquia parlamentar.

Deixando de lado por ora essas considerações políticas de natureza circunstancial, vale a pena examinar uma crítica de cunho mais filosófico que tece Machado de Assis a um escrito de Victor Hugo, por quem, aliás, nutria grande admiração. Contradizendo Victor Hugo que preconizava ao povo espanhol a adoção do regime republicano, Machado de Assis recorda, em uma crônica de 13 de dezembro de 1868, que, em política, se deve evitar o erro do abstracionismo, isto é, pretender que haja um modelo político de valor universal aplicável a todos os casos. Diz Machado:

Como partidário de uma idéia, andou Victor Hugo perfeitamente. Como pensador e estadista, queiram perdoar-me; encosto-me antes a Montesquieu.

Para ser pensador é mister olhar as coisas por cima do ombro do seu partido.

Nisto incluo republicanos e monarquistas, socialistas e absolutistas, todos quantos querem organizar o mundo como um tabuleiro de xadrez, e dar a forma predileta de suas convicções como a panacéia universal de todas as doenças políticas, sem atenção à índole, estado, tendências, desenvolvimento histórico e moral dos povos.

(….)

Os Vitrúvios do século querem fazer da política uma arquitetura, e esquecem justamente que a arquitetura compõe-se de linhas curvas e linhas retas.

Será  remédio a política, será; mas é mister não esquecer o equívoco de Figaro que, tendo a seu cargo uma repartição de drogas, dava muita vez aos homens bons medicamentos de cavalo. – o que lhe inspirou esta reflexão sensata, mas tardia: Ah! Ah! Não há remédio universal!

(…)

admirador do grande desterrado da França, admiro também outro desterrado não menos digno da minha admiração.

– O Bom Senso! Ó desterrado do século! Quando voltarás a este mundo para repor as coisas nos seus eixos? Sem ti matam-se e decompõem-se os homens, fazem-se e desfazem-se governos, cruzam-se os interesses, campeia a vaidade, domina a força, sob todas as formas, da espada e do número, sem ti andamos em perpétuo conflito, sem ti vamos ter a política-xadrez, a política-unifomidade, a política-alinhamento. Quando voltarás a este mundo, ó Bom Senso, ó meu amigo?

Note-se que a crítica de Machado de Assis abrange não só os republicanos que pretendiam uma república que servisse de modelo universal a ser copiado por todos os povos, mas também adeptos de outras correntes políticas. É importante observar isto, pois Machado de Assis, embora defendesse a legitimidade do império do Brasil, reconhecia que a nossa monarquia parlamentar não podia ser uma cópia servil do sistema inglês. Neste ponto o grande escritor mostrava-se muito mais arguto que os estadistas brasileiros que pretenderam transplantar para o Brasil um modelo de sistema representativo que não tinha raízes em nossa tradição de origem hispânica alheia ao regime de partidos políticos.

Na verdade, Machado de Assis estava convencido de um equívoco político chamado voluntarismo ou contratualismo. Há uma importante crônica de 1883 em que, por meio de graciosas comparações, desenvolve um raciocínio para mostrar que, em matéria de organização socio-política, a liberdade humana é muito limitada, encontrando-se sujeita a fatores e leis históricas que escapam da esfera de competência do homem. Diz Machado de Assis:

Sendo, porém, difícil ou impossível a decretação de um tal governo ( a anarquia), não há remédio senão escolher entre os outros. Qual deles? A autocracia, a democracia, a aristocracia ou a teocracia?

Vou dar uma solução. Os governos são como as rosas: brotam do pé. Os jardineiros podem crer que eles é que fazem brotar as rosas, mas a realidade é que elas desabotoam de dentro do arbusto, por uma série de causas de leis anteriores aos jardineiros e aos regadores. Portanto, e visto que não podemos fazer governos como Mlle. Natté faz rosas, aproveito a circunstância auspiciosa de não ser presidente do conselho, para citar dois versos de Molière, que me parecem dar a solução verdadeira do caso, e é cá a do povo miúdo:

Le veritable Amphytrion,

C’est l’Amphytrion où l’on dîne.

Digno de nota é que Machado de Assis diz que a solução que propõe é a do povo miúdo e compara o governo a um anfitrião. Na porfia de entender e interpretar a natureza humana com suas grandezas e mesquinharias  alcançou ele uma visão realista tão ampla que abrangia o problema político, de maneira que não fazia maiores ilusões sobre um governo perfeito ou sobre a vantagem do regime republicano em relação à monarquia.  Deste modo, torna-se mais fácil compreender sua posição objetiva, e aparentemente fria, sobre a escravatura. Em suas crônicas poucas vezes falou do assunto e, mesmo assim, com muita discrição. Por isso, chegou a ser acusado injustamente de escravocrata.

Outra crônica muito expressiva de Machado data de 11 de agosto de 1878 em que ele conta o Apólogo Persa para fustigar o partido republicano que, segundo ele, “não obstante as convicções dos seus correligionários, nasceu de um equívoco e de uma metáfora: a metáfora do poder pessoal; e a este respeito contarei um apólogo… persa.” Este apólogo é a história de um rapaz cujo pai se preocupa com a vadiagem do filho e lhe diz que procure um trabalho. Então o mandrião  sai a percorrer a Pérsia observando vários ofícios e afinal se decide a cultivar as famosas limas da Pérsia. Mas, apesar de todo seu interesse,  fracassou o lavrador que, em vez de reconhecer a sua própria falta de experiência, culpou o sol. E conclui Machado: “se soubéssemos um pouco mais de química social….”

A expressão “química social” empregada por Machado é muito significativa e indica que o autor concebia a sociedade à maneira de um corpo em que os indivíduos não podem ser vistos sem os vínculos sociais que os prendem ao todo. Se se soma esta expressão “química social” à sua convicção  de que a sociedade tem uma vida própria independente de toda ação individual, como se evidencia pela sua analogia da sociedade comparada à roseira, pode-se concluir que Machado de Assis, não obstante sua profissão de fé liberal,  se aproximava, sob este aspecto, dos autores contra-revolucionários do século XIX que combateram o individualismo. Como explicar esta contradição? A meu ver, em razão de uma falsa compreensão do que seja liberdade, Machado de Assis, dotado de um espírito eclético, se aproximava, por um lado, dos liberais em seu discurso em defesa da liberdade de consciência (batalhou pela liberdade de cultos), mas, por outro, como bom observador da realidade e da condição humana, percebia que não passava de uma quimera a pretensão de transformar o mundo a partir de uma pura teoria que excogitasse a melhor das organizações sociais possíveis. Assim, via que a sociedade guarda semelhança com um corpo, de modo que os indivíduos, à maneira de células, constituem uma “substância social”. Daí sua apologia das instituições tradicionais como fruto de um desenvolvimento orgânico da sociedade. Suas considerações sobre os problemas político-sociais do século parece serem sempre um esforço de conciliação entre a tradição e a modernidade.

Há uma saborosa crônica de 5 de março de 1867, sob o título À opinião pública, primeira da série Cartas fluminenses, em que Machado de Assis externa suas convicções políticas:

Quanto às minhas opiniões políticas, tenho duas, uma impossível, outra realizada. A impossível é a república de Platão. A realizada é o sistema representativo. É sobretudo como brasileiro que me agrada esta última opinião, e eu peço aos deuses (também creio nos deuses) que afastem do Brasil o sistema republicano porque esse dia seria o do nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais alumiou…

Não freqüento o paço, mas gosto do imperador. Tem as duas qualidades essenciais ao chefe de uma nação: é esclarecido e honesto. Ama o seu país e acha que ele merece todos os sacrifícios.

 O que me chama mais atenção nesse precioso texto machadiano é o reconhecimento de uma importante função exercida pela realeza. Esta tinha o condão de não apenas sujeitar ao seu brilho e prestígio toda elite social, impedindo-a de cometer excessos de arrogância, bem como o de possibilitar uma mobilidade social mais calma.

Em seu romance Esaú e Jacó, publicado em 1904 e ambientado nos estertores do império, Machado de Assis, através de seus personagens irmão gêmeos e inimigos irreconciliáveis, Paulo (republicano) e Pedro (monarquista), faz uma penetrante observação psicológica. Diz que Paulo em seus vitupérios contra a coroa não envolvia o título de nobreza conferido à sua família. Isto mostra como as oligarquias, em sua ânsia de prepotência e mando, se coadunam muito mais com uma república do que com uma monarquia, que, ao contrário, tende a frear os impulsos de ambição e a manter uma ordem social mais harmoniosa.

Este bosquejo das idéias políticas de Machado de Assis ficaria incompleto se a ele não acrescessem, ainda que por alto, as considerações do grande escritor sobre a maçonaria e a Igreja.

Parecem-me ambíguas as posições de Machado de Assis a respeito, refletindo um pouco o seu espírito dividido entre a tradição e a modernidade. Por um lado, numa crônica datada de 10 de janeiro de 1884, Machado de Assis profliga a contradição da maçonaria contando que Dom João VI, em 1817, tendo apurado que dois de seus mais próximos colaboradores, o marquês de Angeja e o conde de Parati, eram maçons, aceitou, da parte do primeiro, em sinal de arrependimento, toda a prata para as urgências do Estado, e ao segundo obrigou-o a envergar pelos corredores do paço o hábito de irmão da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência. Conclui Machado: “força é dizer que o absolutismo tinha coisas boas.” E observa que aquilo que o conde fez obrigado é justamente aquilo que a maçonaria anos mais tarde queria fazer na questão episcopo-maçônica. Mas, por outro lado, em crônicas relativas à questão religiosa, não obstante as loas ao caráter intrépido de Dom Vital, Machado não demonstra simpatia pela posição dos dois grandes bispos que se opuseram à infiltração maçônica na Igreja.

Finalmente, vale a pena recordar o interesse de Machado de Assis  pelos temas polêmicos que agitaram o pontificado de Pio IX: a unificação da Itália com a conseqüente extinção dos Estados pontifícios, a condenação do liberalismo e a proclamação do dogma da infalibilidade pontifícia. Sobre todas estas questões Machado de Assis se pronunciou. No entanto, o grande romancista, profundo conhecedor da natureza humana, sempre tão realista e capaz de desmascarar os projetos utópicos de reforma do mundo, mostrou-se de uma miopia lamentável. Não compreendeu o combate de Pio IX, empregou um estilo furibundo contra o papa e seu grande apologista, Luís Veuillot, alinhou-se a monsenhor Dupanloup, bispo liberal que se opusera ao dogma da infalibilidade pontifícia. E cometeu a mesma falta que tanto imputava ao seus adversários ultramontanos: o uso de uma linguagem imprópria da mansidão evangélica.

 

À guisa de conclusão

Para entender o realismo político de Machado de Asssis, creio ser necessário levar em conta dois aspectos expressivos da personalidade do grande escritor: seu gosto pela leitura da Sagrada Escritura (que considerava o “livro dos livros”) e a influência de Pascal sobre a sua formação espiritual. A Bíblia, sobretudo os livros sapienciais, Jó e o Eclesiastes, deu-lhe um conhecimento ímpar da natureza humana que o afastou de qualquer utopia. Quantas vezes não terá ele refletido as palavras do Eclesiastes: “O que foi é o que será: o que acontece é o que há de acontecer. Não há nada de novo de baixo do sol..?” Machado de Assis tinha, como poucos, uma consciência viva da precariedade e contingência da condição humana na terra. Para ele, a política, sempre vulnerável às nódoas da ambição e da vaidade humana, jamais poderia realizar um paraíso terreno. Por outro lado, a influência de Pascal sobre Machado ajudou-o, a meu ver, a perceber e a respeitar as peculiaridades da índole de cada povo. Aquela famosa frase de Pascal “Verdade aquém dos Pirineus; erro, além” é recorrente na pena de Machado. Isto não significa que Machado de Assis fosse um adepto do relativismo, um agnóstico em matéria moral, mas sim que sabia reconhecer que a organização social está sempre sujeita às vicissitudes históricas que têm um peso enorme sobe o comportamento humano.

De tudo isto resulta  claro o interesse de Machado de Assis pela política. Um interesse expresso muitas vezes em tom sarcástico mas  real e profundo. Um interesse que revela uma preocupação ética constante pelas exigências da justiça e do bem comum. A concepção machadiana da política é um aspecto da sua concepção filosófica da vida. Uma concepção que, à primeira vista, parece agnóstica, céptica. Mas para o leitor atento e assíduo de Machado será fácil superar essa impressão superficial da obra do grande mestre e penetrar-lhe o sentido mais profundo e descobrir uma visão espiritualista e bíblica da vida e da história. Na verdade, o pensamento político de Machado de Assis, que, a partir de alguns de seus textos, parece indicar uma concepção determinista, encerra a sua crença na Providência Divina no destino dos povos, pois quando diz que o homem, por mais que se agite e arroste aos fatos, a sociedade se organiza por si mesma ( como se depreende da sua imagem da roseira e do jardineiro), ele põe o homem na condição de causa eficiente segunda do ser social. A sucessão das sociedades e impérios ao longo do história, que nem sempre premia os bons e castiga os maus, está subordinada a um plano divino.  Os homens lutam e pleiteiam na terra em demandas intermináveis pelo poder, mas só perante o tribunal da Divina Providência é que se pronunciará a sentença inapelável. Só assim, a meu ver, se pode entender  a referida analogia empregada por Machado.

Enfim, ler Machado de Assis não é apenas reviver um período tão pitoresco da história nacional ou apreciar o português mais bem escrito entre nós, é aprender a ser mais humano, é ver a grandeza de um talento artístico e a nobreza de um coração voltados para a elevação do espírito humano. Daí o seu valor estético e moral perene.