O sentido cristão da história

Postado em 07-03-2008

Apresentação

 

Pe. João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa

Com prazer apresentamos aos leitores de língua portuguesa a nossa tradução (ao que nos consta inédita no Brasil) do importante e sempre atual texto de Dom Prosper Guéranger O sentido cristão da história. Dom Guéranger (1805-1875) foi um célebre religioso beneditino francês, restaurador da Ordem de São Bento na França após a Revolução Francesa e abade da famosa Abadia de Solesmes. Sua formação intelectual desenvolveu-se sob a influência dos escritores católicos tradicionalistas e românticos do século XIX, merecendo especial menção Felicite de La Mennais (o primeiro La Mennais) e Chateaubriand.

Deve-se recordar que tal ambiente cultural sofria a deficiência de uma sólida metafísica que permitisse uma visão mais clara e rigorosa da realidade e dos problemas do mundo nascido da Revolução Francesa. Essa fundamentação filosófica só viria mais tarde com a renovação dos estudos tomistas propiciada pela encíclica Aeterni Patris de Leão XIII. Não obstante, o trabalho produzido pelos chamados apologistas católicos contra-revolucionários não deve ser menosprezado. Esses autores tiveram o mérito de apontar erros graves da ideologia revolucionária e o perigo de os católicos se deixarem contaminar.

No caso da obra de Dom Guéranger, cujo primeiro capítulo ora traduzimos, chama-nos a atenção o discernimento do autor quanto às diversas concepções da história, mostrando a necessidade de evitar uma visão naturalista ou humanitarista da história, que poderiam seduzir mais facilmente um espírito católico menos prevenido que uma  concepção da história abertamente fatalista ou materialista. Dom Guéranger sublinha desde o início que sem o elemento sobrenatural é impossível compreender o drama da história e cita diversos autores pagãos da Antigüidade que corroboram de alguma forma  sua tese. Para ele, Cristo é o Senhor absoluto da história, todos os acontecimentos, todas as vicissitudes  no transcorrer dos séculos se encadeiam e ordenam para o fim último do plano divino da Criação, a saber a salvação do eleitos pelo sacrifício do Filho de Deus feito Homem.

Como se vê, afirmando o elemento sobrenatural, Dom Guéranger estabelece a lei fundamental da história. Humanamente não se explicam certos acontecimentos históricos que superam as forças físicas e os fatores econômicos. Há uma Providência que conduz a história; há também a liberdade humana capaz de colaborar com a graça ou de a ela opor-se. Na história se dá o mesmo que na vida de cada homem. Assim como o homem pode julgar suas próprias ações como ordenadas ou não a seu fim último sobrenatural, assim também pode julgar os grandes fastos como frutos da sua colaboração com a graça para a realização do plano salvífico ou produtos da sua soberba de querer realizar na terra um reino independente de Deus.

Dessa forma, Dom Guéranger tira conseqüências práticas da vida espiritual  para a tarefa do católico  filósofo da história. Lendo esse belo texto de Dom Guéranger, o católico vê como é tacanha e ridícula a concepção marxista da história e se enche de entusiasmo pelo ideal de trabalhar para o reino de Cristo na história, pois se convence de que o tempo é dado à família humana para buscar a salvação eterna e, por maior que seja a malícia do homem que se deixa enredar pelo príncipe deste mundo e por frustrantes que sejam as derrotas dos homens de bem humilhados muitas vezes por aqueles que “fazem a história”, é no tempo que o homem se santifica ou se perde, mas o plano de Deus se cumpre e o resultado final será feliz. A história é, à luz da fé, um prolongamento da obra da Criação. Se não fosse boa, se não tivesse razão de ser, se não estivesse ordenada a um fim, se o Filho de Deus não fosse o seu herói, Deus não a manteria na sucessão dos séculos.

 

 O sentido cristão da história

 

Dom Guéranger

 

Capítulo I

O sobrenatural na história

Assim como, para o cristão, a filosofia separada da fé não existe, assim também, para ele, não existe história puramente humana. O homem foi divinamente chamado para o estado sobrenatural; este estado é o fim do homem; os anais da humanidade devem oferecer um traço dessa realidade. Deus podia deixar o homem no estado natural; aprouve a sua bondade chamá-lo a uma ordem superior, comunicando-se a ele, e chamando-o, por fim, à visão e a possessão da sua divina essência; a fisiologia e a psicologia naturais são ineptas para explicar o homem em seu destino. Para o fazer completamente e exatamente, é mister recorrer à revelação, e toda a filosofia que, abstraindo a fé, pretende determinar apenas pela razão o fim do homem, é, portanto, acoimada de heterodoxia. Somente Deus podia ensinar ao homem pela revelação tudo que está realmente no plano divino; só na revelação se acha a chave do verdadeiro sistema do homem. Sem dúvida a razão pode, em suas especulações, analisar os fenômenos do espírito, da alma e do corpo, mas justamente porque ela não pode captar o fenômeno da graça que transforma o espírito, a alma e o corpo, para uni-los a Deus de uma maneira inefável, ela não está em condições de explicar plenamente o homem tal como é, seja quando a graça santificante habitando-o faz dele um ser divino, seja quando esse elemento sobrenatural repelido pelo pecado, ou não tendo ainda penetrado, o homem se acha abaixo de si mesmo.

De maneira que não há, nem pode haver verdadeiro conhecimento do homem, fazendo-se abstração do dado da revelação. A revelação sobrenatural não era necessária em si mesma: o homem não tinha nenhum direito a ela; mas desde que Deus a deu e promulgou, a natureza só não basta para explicar o homem. A graça, a presença ou ausência da graça, entram em primeira linha no estudo antropológico. Não há em nós uma faculdade que não seja chamada a ter um complemento divino; a graça aspira a percorrer o homem inteiro, a fixar-se nele em todos os graus; e é a fim de que nada falte a essa harmonia do natural e do sobrenatural nessa criatura privilegiada, que o Homem-Deus instituiu seus sacramentos que a arrebatam, elevam, deificam, desde o momento do nascimento até os umbrais da eternidade, do bem supremo que ela já possuía, mas que ela não podia perceber senão pela fé.

Mas se o homem não pode ser conhecido inteiramente sem o auxílio da luz revelada, presume-se que a sociedade humana, em suas diversas fases que se chama história, possa ser explicável se não se recorre a essa mesma luz que nos ilumina sobre nossa natureza e nosso destino individuais? A humanidade teria porventura outro destino diferente do homem? A humanidade seria então algo diverso do homem multiplicado? Não. Chamando o homem à união divina, o Criador convida igualmente a humanidade. Vê-lo-emos bem no último dia quando de todos esses milhares de indivíduos se formar á direita do soberano juiz, esse povo imenso, “que é impossível contar, diz-nos São João (Apoc. VII, 9). Entrementes, a humanidade, quero dizer, a história é o grande teatro sobre o qual a importância do elemento sobrenatural se manifesta à luz do dia, seja que pela docilidade dos povos à fé ele domina as tendências baixas e perversas que se fazem sentir nas nações como nos indivíduos, seja que ele arrefeça e pareça extinguir-se pelo mau uso da liberdade humana, que seria o suicídio dos impérios, se Deus não os tivesse criado “restauráveis” (Sab. I, 14).

Por conseguinte, a história deve ser cristã, se ela quer ser verdadeira; pois o cristianismo é a verdade completa; e todo sistema histórico que faz abstração da ordem sobrenatural na exposição e apreciação dos fatos é um sistema falso que não explica nada e deixa os anais da humanidade em um caos e contradição permanente com todas as idéias que a razão concebe acerca dos destinos da nossa espécie na terra. É justamente porque o sentiram, que os historiadores dos nossos dias que não têm a fé cristã se deixaram arrastar a estranhas idéias, quando quiseram fazer o que chamam filosofia da história. Essa necessidade de generalização , não existia no tempo do paganismo. Os historiadores dos gentios não tiveram uma visão de conjunto sobre os anais da humanidade. A idéia de pátria é tudo para eles, e não se percebe jamais uma preocupação do narrador, por menor que seja, com relação ao gênero humano considerado em si mesmo. De resto, é somente a partir do cristianismo que a história começou a ser tratada de maneira sintética; o cristianismo, conduzindo sempre o pensamento aos destinos sobrenaturais do gênero humano, acostumou nosso espírito a ver além do círculo estreito do egoísmo nacionalista. É em Jesus Cristo que se revelou a fraternidade humana e, desde então, a história geral tornou-se um objeto de estudo. O paganismo não teria podido jamais escrever senão uma fria estatística dos fatos, se ele estivesse em condições de escrever de uma maneira completa a história universal do mundo. Ainda não se fez notar suficientemente: a religião cristã criou a verdadeira ciência histórica, dando-lhe por base a Bíblia, e ninguém pode negar que hoje, a despeito das lacunas, estamos mais avançados no conhecimento dos povos da Antigüidade do que o foram os historiadores que essa mesma antigüidade nos legou.

Os narradores não cristãos do XVIII e do XIX séculos emprestaram, pois, ao método cristão o modo de generalização; mas dirigiram-no contra o sistema ortodoxo. Eles sentiram com argúcia que, dominando a história e colocando-a a serviço de suas idéias, aplicavam o duro golpe ao princípio sobrenatural; tanto é verdade que a história testemunha a favor do cristianismo. O sucesso desses historiadores foi enorme sob esse aspecto; nem todos têm a capacidade de perceber um sofisma; mas todos compreendem um fato, um encadeamento de fatos, sobretudo quando o historiador conhece esse acento particular que cada geração exige daqueles aos quais ela concede o privilégio de encantá-la. Três escolas exploraram sucessivamente e às vezes simultaneamente o campo da história. A escola fatalista, a que chamaríamos atéia, a qual não vê senão a necessidade nos acontecimentos, e mostra a espécie humana prisioneira do invencível encadeamento de causas brutais seguidas de inevitáveis efeitos. A escola humanista que se prostra diante do ídolo do gênero humano, cujo desenvolvimento progressivo, apoiado nas revoluções, filosofias, religiões ela proclama. Essa escola consente facilmente em admitir a ação de Deus, ao início, como tendo dado princípio à humanidade; mas a humanidade uma vez emancipada, Deus a deixou fazer seu caminho, e ela avança pela via de uma perfeição indefinida,  despojando-se em seu percurso de tudo que poderia fazer obstáculo à sua marcha livre e independente. Enfim, temos a escola naturalista, a mais perigosa das três, porquanto apresenta uma aparência de cristianismo, proclamando em cada página a ação da Providência divina. Essa escola tem por princípio fazer constantemente abstração do elemento sobrenatural; para ela, a revelação não existe, o cristianismo é um incidente feliz e benfazejo no qual aparece a ação de causas providenciais: mas quem sabe se amanhã, se em um século ou dois, os recursos inesgotáveis que Deus possui para o governo do mundo, não conduzirão a outra forma mais perfeita ainda, com a ajuda da qual se verá o gênero humano correr, sob o olhar de Deus, em demanda de novos destinos, e iluminar-se a história de um esplendor mais vivo?

Afora essas três escolas só resta a escola cristã. Esta não procura nada, não inventa nada e não hesita. Seu procedimento é simples: consiste em julgar a humanidade, como ela julga o homem individual. Sua filosofia da história está baseada na fé. Ela sabe que o Filho de Deus feito homem é o rei desse mundo, que “todo poder lhe foi dado no céu e na terra” (MT. XXVIII, 18). O advento do Verbo Encarnado é para ela o ponto culminante dos anais humanos; é por isso que ela divide a duração da história em duas grandes partes: antes de Cristo, depois de Cristo. Antes de Jesus Cristo, numerosos séculos de espera: após Cristo, uma duração cujo segredo nenhum homem conhece, por que nenhum homem conhece a hora do nascimento do último eleito; por que o mundo não se conserve senão para os eleitos que são a causa da vinda do Filho de Deus encarnado. À luz desse dado certo de uma certeza divina, a história não tem mais mistérios para o cristão. Se ele volta seus olhos para o período que escoou antes da Encarnação do Verbo, tudo se explica a seus olhos. O movimento das diversas raças, a sucessão dos impérios é o caminho aberto pela passagem do Homem-Deus e dos seus profetas; a depravação, as trevas, as calamidades inauditas são sinais da necessidade premente da humanidade de ver Aquele que é ao mesmo tempo Salvador e Luz do mundo; não que Deus haja condenado à ignorância e ao castigo esse primeiro período da humanidade; longe disso,  os recursos lhe foram assegurados; a esse período pertenceu Abraão, o pai de todos os crentes do futuro; mas é justo que a maior efusão da graça se tenha dado pelas mãos divinas Daquele sem o qual ninguém pode ser justo, seja antes, seja depois da sua vinda.

 

 

O Messias chega, e a humanidade, cujo progresso estava estagnado, lança-se na via da luz e da vida; o historiador cristão segue melhor ainda os destinos da sociedade humana nesse segundo período onde todas as promessas são cumpridas. Os ensinamentos do Homem-Deus revelam-lhe com uma soberana clareza o modo de apreciação que ele deve empregar para julgar os acontecimentos, sua moralidade e alcance. Só há uma medida, quer se trate de um homem ou de um povo. Tudo que exprime, mantém ou propaga o elemento sobrenatural é socialmente útil e vantajoso; tudo que o contradiz, debilita ou nega é socialmente funesto. Por esse procedimento infalível, ele tem inteligência do papel dos homens de ação, dos acontecimentos, das crises, das transformações, das decadências; ele sabe de antemão que Deus age em sua bondade, ou permite em sua justiça, mas sempre sem revogar seu plano eterno, que é o de glorificar seu Filho na humanidade.

Mas o que torna sempre mais firme e mais serena a reflexão do historiador cristão é a  certeza que lhe dá a Igreja que marcha diante dele como uma coluna luminosa e alumia  divinamente todo os seus juízos. Ele sabe que vínculo estreito une a Igreja ao Homem-Deus, como ela é assegurada por sua promessa contra todo erro no ensinamento e na direção geral da sociedade cristã, como o Espírito Santo a anima e conduz; é, pois, nela que ele buscará o critério dos seus juízos. As fraquezas dos homens da Igreja, os abusos temporais não o escandalizam, por que ele sabe o Pai de família houve por bem tolerar o joio em seu campo até a ceifa. Se ele deve narrar, ele não omitirá os tristes episódios que testemunham as paixões da humanidade e atestam ao mesmo tempo a força do braço de Deus que sustenta sua obra; mas ele sabe onde se manifesta a direção, o espírito da Igreja, seu instinto divino. Recebe-os, aceita-os, confessa-os corajosamente; aplica-os em seu trabalho de historiador. Igualmente, nunca  trai, nunca sacrifica; diz que é bom o que a Igreja julga bom, mau o que a Igreja julga mau. Que lhe importam os sarcasmos, as chacotas dos covardes medíocres? Ele sabe que está com a verdade por que está com a Igreja e que a Igreja está com Cristo. Outros não quererão ver senão o lado político dos acontecimentos, voltarão ao critério pagão; ele ficará firme, por que está seguro de não se enganar.

Se hoje as aparências  parecem  ser contra seu julgamento, ele sabe que amanhã , os fatos cujo alcance ainda não se revelou, darão razão à Igreja e a ele. Essa posição é modesta, concedo; mas gostaria de sabe que garantias comparáveis têm a apresentar o historiador fatalista, o historiador humanitarista, o historiador naturalista. Eles emitem previamente seu juízo pessoal: cada um tem, então, o direito de dar-lhes as costas. Para chegar ao historiador cristão, é necessário antes demolir a Igreja sobre a qual ele se apóia. É verdade que há dezenove séculos que os tiranos e filósofos trabalham para isso; mas suas muralhas são tão solidamente construídas que até hoje não puderam arrancar-lhe uma pedra sequer.

Mas se nosso historiador  se aplica a buscar e a assinalar, na seqüência dos acontecimentos  desse mundo, o vínculo que liga de perto ou de longe cada um deles ao princípio sobrenatural, com mais forte razão evitará ele  calar, dissimular, atenuar os fatos que Deus produz fora da conduta ordinária, e têm por fim certificar e tornar mais palpável ainda o caráter maravilhoso das relações que ele fundou entre si mesmo e a humanidade. Inicialmente, há três grandes manifestações do poder divino e dão pelo milagre um sinete divino aos destinos do homem sobre a terra. O primeiro desses fatos é a existência e o papel do povo judeu no mundo. O historiador não pode abster-se de frisar a aliança que Deus primeiramente estabeleceu com esse pequeno povo, os prodígios inauditos que o distinguiram; a esperança da humanidade depositada no sangue de Abraão e Davi, a missão conferida a essa raça frágil e desprezada de conservar o conhecimento do verdadeiro Deus e os princípios da moral, em meio à defecção sucessiva de quase todos os povos; as migrações de Israel para o Egito primeiro, mais tarde para o centro do império assírio, sempre à medida que o teatro dos negócios humanos se altera e se estende; de sorte que à véspera do dia em que Roma, herdeira momentânea  dos outros impérios, vai ser rainha e senhora da maior parte do mundo civilizado, o judeu a terá precedido por toda parte; ele estará lá com seus oráculos traduzidos doravante na língua grega; ele será conhecido de todos os povos, isolado, infusível, sinal de contradição, mas dando diariamente testemunho da chegada cada vez mais próxima daquele que deve unir todas as nações e “reunir em um só corpo os filhos de Deus até então dispersos” (São João XI, 52).

Essa influência milagrosa do povo judeu que foge a todas a leis ordinárias da história, o narrador a fará ver com prazer através das profecias confiadas a esse povo, as quais não são apenas para nós uma luz do passado, mas inquietaram tão vivamente os gentios, durante os  séculos que precederam e seguiram a vinda do Filho de Deus. Cícero  havia ouvido dela um eco quando falou, com uma espécie de terror misterioso, do novo império que se preparava; Virgílio, no mais harmonioso dos seus cânticos, repete os acentos de Isaias; Tácito e Suetônio atestam que o universo inteiro se volta, com expectativa, para a Judéia, e que o pressentimento geral é de ver chegar desse país homens que vão fazer a conquista do mundo. Rerum potirentur. Negar-se-á ainda que a história, para ser verídica, deva tomar o tom e as cores do sobrenatural?

O segundo fato que se encadeia ao primeiro é a conversão dos gentios para além do império romano. O historiador cristão deverá mostrar que esse imenso resultado procede diretamente da mão de Deus, que, para operá-lo, franqueou leis simplesmente providenciais. Aí assinalará, com Santo Agostinho, o milagre dos milagres; com Bossuet, fará ver algo tão estupendo que não tem semelhança senão com o momento em que a criação saiu do nada para a glória do seu Criador. Ele contará a grandeza colossal do fim e a exigüidade dos meios; as preparações significativas com uma tão grande mudança que pressagiam  que esse mundo deve pertencer a Jesus Cristo, ao mesmo tempo que elas são por si mesmas um obstáculo a mais a todo sucesso humano de empreendimento; os apóstolos , armados somente da palavra e do dom dos milagres que a confirma e a faz penetrar; as profecias judias estudadas, comparadas, aprofundadas em todo o império, e tornando-se, como no-lo atestam os escritos dos três primeiros séculos, um dos mais poderosos instrumentos das conversões; a constância sobre-humana dos mártires, cuja imolação quase incessante, longe de extirpar a nova sociedade, a propaga e a fortifica; enfim, a cruz, o cadafalso do filho de Maria, coroando após três séculos o diadema dos Césares; as idéias, a linguagem, as leis, os costumes, em uma palavra todas as coisas transformadas segundo o plano que haviam trazido da Judéia  os conquistadores da nova espécie que o império esperava, e que souberam triunfar dele, derramando seu sangue sob sua espada.

Em meio a todos esses prodígios o historiador cristão está à vontade e nada o espanta, porque ele sabe e proclama que tudo na terra é para os eleitos e que os eleitos são para Cristo. Cristo está com ele na história; portanto, é claro que não possa explicá-la sem Ele, e que com Ele ela apareça em toda sua clareza e em toda sua grandeza. A seqüência dos anais da humanidade responde ao começo; mas desde a publicação do Evangelho, os destinos do mundo tomaram um novo curso; depois de ter esperado seu rei, a terra agora o possui. A preparação sobrenatural que se tinha manifestado no papel do povo judeu, essa outra preparação ao mesmo tempo natural e sobrenatural que tinha aparecido na marcha sempre progressiva do poderio romano chegaram a seu cume. Tudo está consumado, Jerusalém cede seus direitos e suas honras a Roma; Tito é o executor das altas obras do Pai celeste que vinga o sangue de seu Filho Eterno. O milagre do povo judeu não cessa entretanto aí; transforma-se, e as nações terão sob seus olhos, até a vigília do último dia, não mais o espetáculo de um povo privilegiado, mas de um povo amaldiçoado por Deus. Quanto ao império pagão, ele edificou, sem o saber, a capital do Reino de Jesus Cristo; ser-lhe-á dado sediá-lo por três séculos; é de lá que partirão os editos  sanguinários que não terão outro efeito que o de mostrar aos séculos futuros o vigor sobrenatural do cristianismo; pois quando chegar o tempo, ele cederá lugar, ele irá refugiar-se em Bósforo, e a indefectível dinastia dos Vigários de Cristo que não abandonou o posto desde o martírio de Pedro, seu primeiro elo cingirá a coroa na cidade de sete colinas. O império cairá pedra por pedra sob os golpes dos bárbaros; mas antes de lhe infligir  a humilhação e o castigo que crimes seculares acumularam sobre ele, a justiça divina esperará que o cristianismo, vitorioso das perseguições, haja estendido bem alto e bem longe seus ramos para dominar em todas as paragens os vagalhões desse novo dilúvio; ver-se-á então o império cultivar novamente, e com pleno sucesso, a terra renovada e rejuvenescida por essas águas mais purificadoras ainda que devastadoras.

Havendo exposto todas essas maravilhas, o historiador cristão mudará o tom do sua narrativa? Incorrerá ele em uma explicação simplesmente providencial dos fastos da terra? O maravilhoso é porventura o ponto central dos anais da humanidade, de sorte que doravante a ação divina deva permanecer velada sob as causas segundas até o fim dos tempos? Deus não queira que assim seja! Um terceiro fato sobrenatural, fato que deve durar até a consumação dos séculos chama-lhe a atenção  e reclama-lhe toda eloqüência. Esse fato é a conservação da Igreja através dos tempos, sem corrupção da sua doutrina, sem alteração da sua hierarquia, sem interrupção da sua duração, sem sucumbência em sua marcha. Milhões de coisas humanas foram inventadas, desenvolveram-se e decaíram: a conduta ordinária da Providência velou por elas durante sua duração; hoje elas têm apenas um traço na história. A Igreja continua de pé; Deus a sustenta diretamente, e todos os homens de boa fé, capazes de aplicar as leis da analogia, podem ler nos fatos que lhe concernem essa promessa imortal de durar sempre, que ela traz inscrita pela mão de Deus em seu fundamento. As heresias, os escândalos, as defecções, as conquistas, as revoluções, nada a fere de morte; repudiada em um país, ela dirige-se a outro; sempre visível, sempre católica, sempre vitoriosa e sempre provada. Esse terceiro fato, que é uma conseqüência dos dois primeiros, acaba de dar ao historiador cristão a razão de ser da humanidade. Ele conclui com evidência que a vocação da nossa espécie é uma vocação sobrenatural; que as nações sobre a terra não pertencem somente a Deus que criou a primeira família humana, mas que elas são também, como disse o Profeta, o domínio particular do Homem-Deus. De maneira que, quanto mais mistérios na sucessão dos séculos, quanto mais vicissitudes inexplicáveis, tudo enfim se resume nesse dado divino.

Sei que é necessário hoje muita coragem, sobretudo quando não se faz parte do clero, para tratar a história sob essa ótica; crê-se sinceramente; não se quer por nada desse mundo admitir as teorias das escolas fatalista e humanitária; mas a escola naturalista é tão influente pelo número e talento; ela é tão benévola com o cristianismo, que se torna difícil criticá-la em tudo e não passar a seus olhos por um escritor místico, por um poeta, quando se aspira, ao contrário, ser tido na conta de homem de ciência ou filósofo. Tudo que posso dizer é que a história foi tratada, do ponto de vista que me permiti expor, por dois grandes gênios cristãos, cuja reputação está acima de qualquer dúvida. A Cidade de Deus de Santo Agostinho, os Discursos sobre a História Universal de Bossuet são duas aplicações da teoria que explanei acima. O caminho, portanto, foi traçado por mão de mestre, e pode-se incorrer, a despeito de tais homens, nos fúteis juízos do naturalismo contemporâneo. É muito bom, sem dúvida, regular a própria vida interior pelo princípio sobrenatural; mas seria uma inconseqüência, uma falta de responsabilidade, que esse mesmo princípio não guiasse sempre a pluma. Vejamos a humanidade em suas relações com Jesus Cristo seu chefe; não a separemos dele jamais em nossos juízos nem em nossos trabalhos historiográficos, e quando nossos olhos se detêm sobre o orbe terrestre, recordemo-nos antes de tudo de que temos sob os olhos o império do Homem-Deus e de sua Igreja.