Proust e as lembranças involuntárias

Postado em 06-08-2011

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Um dos gêneros literários mais belos e agradáveis é a memorialística. É um prazer sentir-se transportado, através de um livro, ao passado que vai sendo redescoberto com arte pelo autor que viveu os fatos narrados. É como se deixássemos o presente e viajássemos pelo tempo. No entanto, o ofício de garimpar reminiscências pode tornar-se cacete e enfadonho tanto para quem escreve memórias quanto para quem as lê, quando o memorialista se esforça por ir, passo a passo ou cronologicamente, recordando os tempos idos e escrevendo de maneira automática suas lembranças.

Por isso, o grande recurso literário de que se valeram os maiores memorialistas foi justamente utilizar em alto grau as associações de idéias, “as explosões” da memória e as lembranças involuntárias ou espontâneas, em vez de ficarem queimando a pestana para evocar as recordações mais remotas. E o mestre admirável desse estilo foi o francês Marcel Proust, embora antes dele tivesse sido precursor o visconde de Chateaubriand, em Memorias do além túmulo.

Proust, nos sete volumes de Em busca do tempo perdido, rememora toda sua vida passada, partindo sempre de coisas presentes que o conduzem pelo tempo, de maneira que, em poucos minutos, revive sentimentos apagados, reencontra a pessoa que era e estava morta. É o próprio passado que se restaura na alma do romancista e nos é revelado maravilhosamente. Assim, por exemplo, é notável o capítulo de “A prisioneira”, 5º tomo da Recherche, no qual o escritor conta que, estando na biblioteca do palácio dos príncipes de Guermantes, toma em suas mãos um romance de Georges Sand e vê subitamente ressurgir nele o adolescente que era quando ganhou de sua avó um exemplar do mesmo livro. Recapturado, o tempo é revivido, ainda que por um instante, mas, como se sente pela leitura da Recherche, fazendo renascer a pessoa de então.

Como se sabe, Marcel Proust foi um apreciador da alta sociedade remanescente da antiga nobreza. De modo que muitas das lembranças narradas pela série de seus romances são retratos dos salões dourados do faubourg Saint-Germain, das estações balneárias freqüentadas pela aristocracia. Ao mesmo tempo, entremeados a essas lembranças, são dissecados os amores, paixões e tédios vividos pelo autor ou observados em seus amigos.

Entretanto, o aspecto mais admirável da Recherche é a introspecção da alma ou daquilo a que Proust chama “intermitências do coração”. Ele demonstra a fugacidade do tempo e a fragilidade das coisas de tal maneira que a vida e a condição humanas nos parecem desesperantes e condenadas a uma enlouquecedora volubilidade. Não resisto ao prazer de transcrever os trechos seguintes de À sombra das raparigas em flor”, 2º volume da “Recherche”: “Por causa de uma coisa que queremos hoje e amanhã nos será indiferente, negamo-nos a ver outra coisa que agora nada nos diz, mas que havemos de querer mais adiante, e que, se houvéssemos consentido em vê-la, talvez a tivéssemos desejado antes, abreviando assim nossas dores atuais, se bem que na verdade para substituí-las por outras.”

Tal pensamento de Proust expressa muito mais do que diz o adágio: A posse é a morte do desejo. Recorda aquela passagem do segundo livro dos Reis que conta o incesto cometido por Amon contra sua irmã Tamar. Apenas cometido o delito, Amon repele sua irmã pela qual ardia de paixão. Não se trata apenas de uma anomalia psicológica, de uma tara a ser remediada. É preciso ver a realidade em sua dimensão moral. O problema só se explica por aquele ensinamento paulino: a morte é o estipêndio do pecado.

Com efeito, nossos sonhos e veleidades, constituídos de um misto de fantasia e ilusão, quando alimentados pelo homem esquecido de Deus e de seu fim último, subsistem até que tenham aparente realização para em seguida se reduzirem a escombros e amarga decepção.

Em outra página do mesmo volume lê-se: “E esse medo a um futuro em que já não nos seja dado ver e falar aos entes queridos, cujo convívio constitui hoje a nossa mais íntima alegria, ainda aumenta em vez de dissipar-se quando pensamos que, à dor da separação, virá juntar-se outra coisa que atualmente nos parece mais terrível ainda: é que não a sentiremos como uma dor, e nos deixará indiferentes; pois então o nosso eu terá mudado e esqueceremos não só o encanto de nossos pais, de nossa amada, de nossos amigos, mas também o afeto que lhes tínhamos; e esse afeto que hoje constitui parte importantíssima de nosso coração, se desenraizará tão perfeitamente que poderemos folgar com uma vida que agora, só de a imaginar, nos horroriza; será pois uma verdadeira morte de nós mesmos, morte após a qual virá uma ressurreição, mas já de um ser diferente e que não pode inspirar afeto a essas partes do meu antigo eu condenadas à morte.”

Um texto, tão belo e tão claro como este, dispensa qualquer dissertação; provoca-nos apenas a admiração de ver como Proust soube exprimir em poucas palavras a realidade mais profunda da nossa alma. É a realidade que tantas vezes nos choca quando vemos pessoas viúvas em tão breve tempo contraindo segundas núpcias ou separando-se e partindo para segunda união. Pobre humanidade tão instável e inconstante em seus propósitos e sentimentos.  Acrescentaria ainda, à guisa de ilustração da realidade analisada pelo romancista, o que disse Napoleão quando exilado na ilha de Santa Helena: “Jesus Cristo quer o amor dos homens; quer o que é mais difícil de obter, o que um sábio pede em vão a alguns discípulos, um pai a seus filhos, uma esposa a seu esposo, um irmão a seu irmão, em uma palavra, o coração; eis o que Ele quer…Ele o exige, Ele o consegue. Daí concluo a sua divindade.”

Proust oferece-nos assim uma visão nítida da pobreza do amor humano às criaturas mais caras do mundo. Mas o grande romancista infelizmente não conheceu a psicologia religiosa e, por isso, não escreveu as páginas encantadoras (de que seria capaz) sobre o amor sobrenatural de Deus que assegura ao homem uma estabilidade emocional tão necessária para a sua felicidade. Esse amor foi cantado por Dante assim:

“Rege o nosso querer, em paz constante
A caridade, irmão: só desejamos
O que ora temos e não mais avante.”

De qualquer modo, Proust, com seu romance genial, incita o homem a cuidar da sua vida interior para não ser arrastado pelo turbilhão das paixões ao reboque do tempo que passa.