Que falta nos faz um Carlos Lacerda

Postado em 03-05-2014

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Infelizmente, no Brasil há poucos políticos que mereçam o respeito e a gratidão da sociedade. E isso não é de hoje. Embora responda a uma triste realidade a máxima atribuída a Joseph De Maistre (cada povo tem o governo que merece), há uma justa indignação da parcela sã do povo brasileiro com os seus homens públicos, diante de tantos desmandos e abusos.

Entretanto, tal indignação não pode justificar uma falta de reconhecimento  àqueles poucos homens que realmente ambicionaram o poder para promover o bem comum. E Carlos Lacerda, cujo centenário de nascimento se comemorou dia 30 de abril último, foi um desses poucos brasileiros que sonharam chegar à presidência da República para conduzir o Brasil à grandeza de que é capaz.

Não tenho idade bastante para ter acompanhado de perto a atuação política de Carlos Lacerda. Mas conheço-o bem pelo testemunho idôneo de pessoas mais velhas que com ele tiveram alguma relação significativa e, sobretudo, pela leitura de seu “Depoimento” (Nova Fronteira, 1977), bem como de outras fontes.

Efetivamente, Lacerda merece o respeito e a gratidão do povo brasileiro por diversos títulos: 1) como parlamentar sempre empenhado em fazer bom uso da tribuna na defesa dos interesses da sociedade; 2) como intelectual e homem de ideias na análise dos problemas e desafios da realidade brasileira; 3) como administrador do Estado da Guanabara; 4) como ser humano capaz de reconhecer seus próprios erros.

Basta recordar o que ele disse sobre a dilapidação das divisas que o Brasil tinha recebido pela sua participação na Segunda Guerra Mundial. Vargas e Dutra deixaram que fossem para o ralo, sem nenhuma visão das reais necessidades do país. Na época, Lacerda denunciou tal miopia dos governantes que acarretava a perda de uma grande oportunidade. Hoje, não temos nenhum Lacerda denunciando a falta de visão e bom senso em torno da riqueza do Pré-Sal, que talvez venha a ser mais uma riqueza maldita do Brasil. Mas o pior é que parece que a nossa sina é realmente perder as oportunidades de progresso e talvez, por isso, a Providência Divina já não nos mande mais homens como Lacerda que clamam no deserto intelectual do Brasil.

Basta recordar o que disse Lacerda sobre a conjuntura política do Brasil por ocasião do suicídio de Vargas, quando fez ver que tamanha comoção comprometia a qualidade do sufrágio tolhendo a capacidade de um voto racional, ainda mais considerada a índole sentimental do povo brasileiro.

Recorde-se também que Carlos Lacerda explicou melhor que ninguém as raízes ideológicas do Estado Novo e do getulismo, aquele veneno do autoritarismo positivista que tinha sido uma das causas da queda da monarquia.

Como se sabe, Lacerda é comumente acusado de ter sido um golpista. Mas isto, sinceramente, não me parece um defeito. Antes pelo contrário. Parece-me uma qualidade que revela um verdadeiro estadista consciente de que a legitimidade fundamental do poder  não resulta tanto da sua origem quanto do seu exercício em prol do bem comum. De nada vale um governo ser eleito segundo a lei se depois atenta contra a própria lei e não promove o bem comum. E tal era, sem dúvida, o caso de Vargas (ao menos em seu segundo mandato), de JK e, especialmente, de Jango.

Cometeu erros e imprudências? É inegável. Mas não creio que tenha sido oportunista e contraditório. Dou alguns exemplos, talvez pouco conhecidos. Quando houve a convenção para a escolha do candidato da UDN à presidência da República, Lacerda foi a São Paulo apoiar o nome de Jânio Quadros. Porém,  o melhor da UDN paulista apoiava Milton Campos, que era um antípoda de Jânio, representante do populismo mais rasteiro. Os paulistas, com razão, reagiram, dizendo-lhe que não se imiscuísse em São Paulo. E parece que levou até uns tabefes no momento mais acalorado das discussões. De fato, não tinha cabimento preferir Jânio Quadros a Milton Campos. A história deu razão aos paulistas contra Carlos Lacerda.

Pouco mais tarde, porém, Lacerda deu a uns políticos paulistas uma boa lição de prudência. Já se vivia aquele clima de insegurança total fomentado pelo janguismo que desembocaria no contra golpe de 31 de março de 1964. Um udenista do interior de São Paulo tinha escrúpulo de disputar uma eleição com apoio do famigerado Adhemar de Barros. Lacerda disse-lhe que ganhasse a eleição, pois o inimigo pior não era Adhemar, mas sim João Goulart.

É inegável, também, que Lacerda se iludiu com a perspectiva de vencer as eleições presidenciais previstas para 1966 e se precipitou em retirar seu apoio aos militares, tendo chegado a comparar Castello Branco com Campos Salles, a quem acusava equivocadamente de ter atrasado o Brasil. Foi um erro lamentável.

E, finalmente, quanto à figura humana de Carlos Lacerda, é preciso recordar algo que não se tem mencionado nos festejos de seu centenário de nascimento. Fala-se de seu rompimento com os comunistas, mas não se diz nada sobre sua conversão ao catolicismo que se deu  em torno do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro e do Centro Dom Vital, sob o influxo de Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção. O próprio Carlos Lacerda confessa como a sua conversão, ocorrida por volta de 1946, marcou toda sua vida, sua visão do mundo e da política. Chegou, assim, a compreender, como nenhum outro político brasileiro, os malefícios da democracia cristã.

Nos dias de hoje, quando praticamente não há oposição no Brasil com coragem e inteligência para denunciar os malfeitos do lulopetismo, sentimos muita falta de um Carlos Lacerda. Hoje, quando o lulopetismo ameaça perpetuar-se no poder por meio do rito idolátrico do sufrágio universal, destruindo  os valores e as instituições fundamentais da Nação, sentimos falta de um Lacerda francamente golpista que entenda bem o que significa a legitimidade do poder.

 

Anápolis, 2 de maio de 2014
Festa de Santo Atanásio, pontífice e doutor.