Ratzinger e Bergoglio. O Vaticano e o mundo em 2015

Postado em 30-12-2014

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

Neste ano que finda amanhã várias coisas me deixaram desconcertado. Uma delas foi a ausência quase completa de uma celebração condigna de importante efeméride: o sesquicentenário do Syllabus de Pio IX. Este  documento do magistério da Igreja, tão realista na análise e condenação dos principais erros do mundo moderno, é profético na previsão das consequências nefastas que adviriam para a  toda a cristandade caso houvesse uma capitulação da Igreja ante os ídolos do homem moderno, como de fato ocorreu.

A Igreja aceita hoje, como algo normal, legítimo, bom, seu estatuto de  confissão religiosa em pé de igualdade com os outros credos perante a Nova Ordem Mundial que organiza a vida das nações à luz da ideologia democrática revolucionária, a qual afirma que não há outro poder soberano senão aquele que emana da vontade do povo. Bem sabemos quanta mentira se diz, quanta manipulação se faz em nome do povo. Mas este não é o problema mais grave. O problema capital é que a Igreja reconhece como legítima uma ordem política na qual o povo, seja ele enganado ou manipulado ou não, é a única fonte do direito, um sistema político em que o povo é livre para fazer e determinar o que quer sem submissão a nenhuma lei moral objetiva.

Contra esse erro monstruoso, contra esse delírio da enferma mentalidade revolucionária moderna, nos advertiu Pio IX na festa da Imaculada Conceição no ano de 1864, publicando o Syllabus que condena a seguinte proposição: “A razão humana, sem ter absolutamente em conta a Deus, é o único árbitro do verdadeiro e do falso, do bem e do mal; é lei de si mesma e por suas forças naturais basta para promover o bem dos homens e dos povos.”

O pior é que, desde o Vaticano II, a Igreja vem alimentando e animando esse sistema político, colaborando com suas instituições, favorecendo a implantação em escala mundial de regimes baseados no sufrágio universal e na soberania popular, revogando as concordatas com estados que tinham a Igreja Católica como sua guia espiritual.

O papa Bergoglio declarou há alguns meses que desejava estudar as razões que levaram diversos estados a introduzir em sua legislação o casamento igualitário, a tutela da união “homoafetiva”, enfim, os novos “modelos” de família. Se ele reler o Syllabus de Pio IX, encontrará ali a explicação de tudo que ocorre hoje no mundo para nossa desgraça.

A outra coisa que me deixou desconcertado estes últimos dias foi ver estabelecida por alguns tradicionalistas uma falsa antinomia entre Ratzinger e Bergoglio. Ledo engano. O próprio cardeal Ratzinger declarou que considera sua abdicação um gesto iluminado pelo Espírito Santo e o pontificado de seu sucessor uma bênção para a Igreja. Concedo que possa haver diferenças acidentais ou de estilo entre eles, resultantes dos ambientes distintos em que se formaram. Mas não tenhamos ilusões. O cardeal ratzingeriano Raimundo Burke disse que um cardeal não pode ter divergências doutrinárias com o papa mas apenas fazer-lhe ponderações de ordem pastoral.

Bem ao contrário agiram os cardeais Otaviani e Bacci diante de Paulo VI quando lhe remeteram o Breve Exame Crítico da missa nova dizendo que o novus ordo representava um impressionante afastamento do doutrina de Trento sobre o Sacrifício da Missa e pedindo-lhe que o ab-rogasse. Se amanhã os tradicionalistas chegarem a representar uma força que ameace a estrutura da Igreja pós-conciliar, os ratzingerianos se unirão aos bergoglianos contra os tradicionalistas, como ocorreu por ocasião do Vaticano II quando os progressistas mais comedidos se uniram aos mais radicais contra a “teologia tomista da cúria romana”. Nos últimos anos os ratizingerianos concederam aos bergoglianos tudo sem lhes exigir nada: foram nomeados bispos, foram feitos cardeais, foram festejados e celebrados até que chegaram a eleger o seu papa. Ao contrário, quando entabularam um diálogo com os “lefebvristas”, logo lhes exigiram  que aceitassem o Vaticano II e a missa nova. Mas nunca impuseram aos bergoglianos a hermenêutica da continuidade. Nunca os censuraram, mas antes os cobriram de exaltados elogios.

Declaro que, sob certo aspecto, admiro o papa Francisco. Considero-o o melhor intérprete dos documentos do Vaticano II. E nessa perspectiva creio que pode prestar-nos um grande serviço. Ele veio desmascarar a “manobra contábil” que até então tinha sido feita em torno do tesouro do Vaticano II. Veio lancetar um tumor. Bergoglio disse que tem a “humildade e pretensão” de levar o Vaticano II a produzir todos seus frutos. Se João Paulo II é santo, Francisco I é um arcanjo.

Com efeito, o Vaticano II disse na Dignitatis Humanae que os ateus têm o direito de não ser impedidos de professar publicamente seu ateísmo assim como os adeptos de qualquer confissão religiosa. Portanto, proclamou a soberania da consciência humana. Não importa que tenha dito que subsiste o dever de procurar a verdade. O que importa é que ninguém pode ser impedido de professar publicamente seus erros, resguardada a ordem do estado democrático laico. A última palavra pertence ao homem; à Igreja compete-lhe tão-somente aconselhar o homem a investigar a verdade. Ao Estado compete garantir a liberdade de cultos. O que prevalece é a vontade do homem e não a lei divina. Esta é a doutrina liberal do Vaticano II em contradição com todo o magistério precedente. Na mesma perspectiva antropológica de garantir sempre ao homem o primeiro lugar em tudo, o  Vaticano II disse na Gaudium et Spes que não há hierarquia de fins do matrimônio. O homem tem de realizar-se, satisfazer-se em todas suas inclinações; não tem de em primeiro lugar cumprir uma ordem do Criador na transmissão da vida. Ora,  quando Bergoglio diz que cada um tem sua própria concepção de bem e deve segui-la, quando diz que a Igreja se torna estéril querendo dirigir as consciências, quando diz que se deve ter compreensão com os recasados e misericórdia com outros comportamentos um tanto estranhos, Bergoglio aplica fielmente o Vaticano II que, efetivamente, refundou a Igreja.

Logo após o Vaticano II, quando os progressistas começaram a aplicá-lo em todos os campos, houve uma publicação muito infeliz O que o Concílio não disse tentando pôr panos quentes nas horas mais convulsionadas, tentando deitar água fria na fervura dos tradicionalistas que reagiam com indignação aos piores desmandos que vinham de Roma, mas sempre com a preocupação de levá-los a aceitar o Vaticano II e suas reformas. Hoje, infelizmente, parece que alguns tradicionalistas repetem o mesmo erro primário do autor do referido livro.

Em conclusão destas mal traçadas linhas e mantendo longe de mim qualquer espírito profético, desejaria dizer o que espero para 2015 na Igreja e no mundo.

Creio que o papa Francisco (se não for ele, será seu sucessor) levará  a cabo as reformas anunciadas no Sínodo Extraordinário sobre a Família, bem como outras reformas já programadas, em torno das quais já há muito rumor. Creio que os inimigos de Bergoglio serão esmagados ou silenciados. Não haverá nenhum novo monsenhor Lefebvre ou dom Mayer, como já se pôde ver em Ciudad del Leste.

No mundo, espero que a Rússia, apesar da enorme dificuldade econômica que enfrenta em razão do embargo imposto pelos EUA e a União Europeia, continuará sendo um grande obstáculo para a Nova Ordem Mundial. Felizmente. E poderá causar problemas ainda mais sérios para as democracias liberais. Deo gratias.

Cuba, com bastante mão de obra barata e mais qualificada, será um paraíso para o capitalismo internacional. Como a China. Certamente, vão instalar-se ali, junto do porto construído pelo Brasil e próximo dos EUA, muitas empresas que vão faturar grosso sem grande benefício para a população. Capitalismo sem ética e socialismo arcaico de mãos dadas, sob as bênçãos do papa Francisco e os aplausos de Washington.

E o Irã e Israel? E o Estado Islâmico e o talebam? O Irã, juntamente com a Rússia e a Venezuela, os maiores prejudicados da grande manipulação do mercado do petróleo, poderão reagir a sua maneira e dar uma lição aos EUA. E Israel poderá ter dolorosas consequências. E finalmente, por culpa da apostasia do Ocidente, os cristãos do Oriente vão continuar sendo degolados, trucidados por aquelas bestas-feras do Estado Islâmico. E o talebam certamente vai valer-se da negligência dos EUA para continuar seu trabalho de proselitismo.

Os anos vão se passando. A antiga cristandade continua dormindo nas trevas e na sombra da morte, renegando com obstinação suas tradições e valores. Entrementes, o castigo de Deus se vai preparando. O Islão, dentro de poucos anos, ocupará literalmente, com consequências incalculáveis, vastas regiões da Europa. Mas o homem que apostatou não se importa, só quer saber se hoje tem dinheiro e sexo.

Vinde, Nossa Senhora de Fátima, não tardeis! Vinde também, rei Dom Sebastião!

Anápolis, 30 de dezembro de 2014.