Razão, vida e mito

Postado em 12-04-2012

Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa

É preciso reconhecer que os verdadeiros católicos vivem dias angustiosos.

Educados na convicção de que o magistério da Igreja é guardião de uma doutrina imutável que só pode desenvolver-se em sentido homogêneo de uma maior e mais profunda compreensão do dogma, hoje, após a conclusão dos colóquios entre a Fraternidade Sacerdotal São Pio X e teólogos da Congregação para a Doutrina da Fé, os católicos  sentem-se perplexos ante o fato de que a verdade que sempre lhes foi ensinada como eterna  porque vinda do Pai das luzes, no qual não há mudança, nem sombra de vicissitude (Tiago, 1, 17) não tem realidade objetiva. Pois o que efetivamente importa, segundo a visão dos homens da Igreja de hoje, não é tanto sustentar uma doutrina perene quanto viver a  vida de uma Igreja sempre cambiante e adaptada aos tempos, que apenas supervisiona a experiência religiosa dos diversos períodos históricos, sem necessariamente ter de estar subordinada a uma doutrina constante.

Querer fechar os olhos diante de tal realidade, dizendo que o essencial da doutrina católica permanece imutável, que não houve mudança quanto à moral e à doutrina dos sacramentos, é uma tolice. É um escândalo, por exemplo, a mudança de posição da Igreja sobre o judaísmo talmúdico pós-cristão. Tal mudança fere a verdade contida nas Sagradas Escrituras.

Mas como agir em tal situação? Toda verdade conhecida intelectualmente tem de ser vivida pelo homem como um bem. Mas hoje a Igreja verdadeira, a Igreja Santa, parece só existir em sua parte triunfante no céu. Aqui na terra vivemos em meio aos escombros.

Tudo isso nos remete à filosofia platônica, que nos consola em tal calamidade. Como se sabe, Platão recuperou em seus diálogos a importância dos mitos de que se havia divorciado a filosofia em suas origens. Recuperou os mitos depurando-os e conferindo-lhes uma importância capital para o conhecimento da verdade.

Para Platão, o logos é insuficiente na captação da realidade, pois que esta tem aspectos que lhe escapam. A beleza, que se confunde com o bem, só pode ser contemplada com o auxílio de Eros, que arrasta o filósofo por meio de ascendentes “delírios” à mais alta contemplação.

Hoje, quando a razão nos coloca diante de um problema humanamente insolúvel  e de uma situação inexplicável da Igreja que nos dificulta a vida da fé, temos de alimentar nossa vida espiritual não tanto pela busca de uma compreensão racional das verdades de fé quanto por uma contemplação amorosa do Belo e do Bem expressos pelos mitos.

Por esse motivo tenho aplicado à crise que vivemos o mito do carro alado de que fala Platão no Fedro na tentativa de ilustrar o drama da Igreja em nossos dias. Tendo praticamente soçobrado a Igreja guardiã de uma verdade eterna e imutável, vejo o papa conduzindo a Igreja como um carro puxado por dois cavalos que representam as duas correntes da Igreja, os tradicionalistas e os progressistas de vários matizes. Um dos cavalos é de  raça pura, o outro, pangaré. Quando puxada pelo cavalo de raça, a Igreja se recorda das verdades eternas, aspira às alturas do céu, e, alimentada pela doutrina tradicional, dá a seus filhos a tão necessária segurança e firmeza em um mundo cheio de incertezas; quando à tração do cavalo reles, a Igreja faz concessões ao mundo moderno, aventura-se em experiências religiosas humanistas e desorienta seus filhos, como que esquecida de viver num exílio.

Com efeito,se é falsa a teoria do conhecimento de Platão sobre o mundo das ideias, não deixa, entretanto, de ser interessante pensar que, por uma iluminação divina, alcançamos o conceito de uma Igreja perfeita, uma Igreja arquétipo, uma Igreja detentora da verdade plena e imutável, não existente neste mundo. A ideia de tal Igreja ajuda-nos a sustentar a fé e a combater os desvios sofridos pela Igreja histórica em sua peregrinação terrestre.

Ora, a ideia de uma Igreja perfeita, de uma Igreja depositária de uma doutrina perene, não pode ser uma quimera. Deve corresponder a uma realidade existente ainda que seja em outro mundo. Não conceberíamos tal ideia se ela não procedesse do céu. Realmente, seria contraditório ter fé em uma Igreja imperfeita, em uma Igreja sempre em busca de uma verdade evolutiva. Se, pois, temos fé é porque a Igreja santa, a Igreja perfeita, a Igreja triunfante existe. A ela amamos, por ela suspiramos, por ela gememos e choramos no desterro deste mundo.

 

Anápolis, 12 de abril de 2012.
Quinta-feira da Páscoa.