Art. 5 — Se os preceitos do decálogo estão convenientemente enumerados.

(III Sent., dist. XXXVII, a. 2, qª 2; III Cont., Gent., cap. CXX, CXXVIII; De Virtut., q. 2, a. 7, ad 10; Ad Rom., cap. XIII, lect. II).

O quinto discute-se assim. — Parece que os preceitos do decálogo estão inconvenientemente enumerados.

1. — Pois, o pecado, como diz Ambrósio é a transgressão da Lei divina e a desobediência aos mandamentos do céu. Ora, os pecados se distin­guem por pecar o homem contra Deus, contra o próximo, ou contra si mesmo. Entre os preceitos do decálogo porém, não há nenhum que ordene o homem para si mesmo, mas só há os que o ordenam para Deus e o próximo. Logo, é insuficiente a enumeração dos preceitos do decálogo.

2. Demais. — Assim como ao culto de Deus pertencia à observância do sábado, assim tam­bém lhe pertencia à observância das outras sole­nidades e a imolação dos sacrifícios. Ora, entre os preceitos do decálogo, há um pertencente à observância do sábado. Logo, também devia haver outros pertencentes às outras solenidades e ao rito dos sacrifícios.

3. Demais. — Contra Deus pode-se pecar, tanto perjurando, como blasfemando ou, de qualquer modo, mentindo contra a divina dou­trina. Ora, foi estabelecido um preceito proi­bindo o perjúrio, quando se disse: não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão. Logo, os pe­cados de blasfêmia e de falsa doutrina deviam ter sido proibidos por algum outro preceito.

4. Demais. — O homem tem amor natural tanto para com os pais como para com os filhos. Demais disso, o mandamento da caridade se estende a todos os próximos. Ora, os preceitos do decálogo se ordenam para a caridade, conforme àquilo da Escritura (1 Tm 1, 5): o fim do preceito é a caridade. Logo, assim como foi feito um preceito relativo aos pais, assim também deveriam ter sido feitos outros relativos aos filhos e aos demais próximos.

5. Demais. — Em qualquer gênero de pecados podemos pecar pelo desejo ou por obras. Ora em certos gêneros de pecados, como o do furto e do adultério, proíbe-se o pecado por obra, quando se diz — Não fornicarás, não furtarás, separadamente do pecado de desejo, quando se diz — Não cobiçarás os bens do teu próximo, e não cobiçarás a mulher do teu próximo. Logo, o mesmo se deveria ter feito em relação aos pecados do homicídio e de falso testemunho.

6. Demais. — O pecado tanto pode provir da desordem do concupiscível como da do iras­cível. Ora, certos preceitos proíbem a concu­piscência desordenada, como o que diz — não cobiçarás. Logo, o decálogo também devia con­ter certos outros proibitivos da desordem do irascível. Logo, parece que os dez preceitos do decálogo não estão convenientemente enume­rados.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Dt 4, 13): Ele vos mostrou o seu pacto, que ordenou que observásseis, e as dez palavras que escreveu em duas tábuas de pedra.

SOLUÇÃO. — Como já se disse (a. 2), assim como os preceitos da lei humana ordenam o homem para uma certa comunidade humana, assim os da lei divina, para uma certa comunidade ou república dos homens sob a direção de Deus. Ora, para que alguém possa fazer parte de uma comunidade, duas condições se exigem. A pri­meira é comportar-se devidamente para com o chefe da comunidade; a segunda, comportar-se devidamente para com os outros companheiros e co-participes dessa comunidade. Logo, era necessário que, na lei divina, se estabelecessem, primeiro, certos preceitos que ordenassem o ho­mem para Deus; e, segundo, outros que o orde­nassem para os próximos com quem convive simultaneamente, sob a direção de Deus.

Ora, para com o chefe da comunidade o ho­mem tem três obrigações: primeiro, a fideli­dade; segundo, a reverência; terceiro, o famu­lado. — A fidelidade para com o senhor consiste em não deferir a outro a honra do principado. E é isto que visa o primeiro preceito, quando diz: não terás deuses estrangeiros. — Em se­gundo lugar, a reverência para com o senhor exige que não se lhe faça nada de injurioso. E isto visa o segundo preceito, quando diz: não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão. — Por fim, o famulado é devido ao senhor em re­compensa dos benefícios que dele recebem os súbditos. E isto visa o terceiro preceito, sobre a santificação do sábado, em memória da criação das coisas.

Quanto aos próximos, para com eles proce­demos devidamente, em especial e em geral. — Em especial, pagando o débito aos a quem deve­mos. E isto visa o preceito de honrar os pais. — Em geral, em relação a todos, não causando dano a ninguém, nem por obras, nem por pala­vras, nem por intenção. — Pois, por obra cau­samos dano ao próximo, ora atingindo-lhe a existência pessoal; o que é proibido pelo mandamento que diz — não matarás. Ora, atingindo uma pessoa que lhe é conjunta, para a propagação da prole, o que proíbe o preceito quando diz: não fornicarás. Outras vezes, causamos-lhe dano no bem que ele possui, que se ordena para uma e outra coisa; e isto visa quando diz: não furtarás. — Causar dano por palavras é proibido quando se diz: não dirás falso teste­munho contra o teu próximo. — Por fim, o dano por intenção e proibido quando se diz: não cobiçarás

Ora, de acordo com esta diferença, podem-se distinguir três preceitos, que ordenam para Deus. Dos quais o primeiro respeita a obra, e por isso diz: não farás imagem de escultura. O segundo, à palavra, quando diz: não tomarás o nome do Senhor teu Deu; em vão. O terceiro, à intenção; porque na santificação do sábado, enquanto preceito moral, se preceitua o descanso do cora­ção em Deus. — Ou, segundo Agostinho, pelo primeiro preceito reverenciamos a unidade do primeiro princípio; pelo segundo, a verdade divina; pelo terceiro, a sua bondade, pela qual nos santificamos, e na qual descansamos, como no fim.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Podemos dar dupla resposta. — A primeira é que os preceitos do decálogo se referem ao man­damento do amor. Pois, era necessário dar ao homem um preceito sobre o amor de Deus e do próximo, porque, neste ponto, a lei natural ficou obscurecida pelo pecado. Mas, não era necessá­rio preceituar sobre o amor de si mesmo, por que neste ponto, vigorava a lei natural. Ou porque o amor de si mesmo se inclui no de Deus e do próximo; pois, o homem verdadeiramente se ama a si mesmo, ordenando-se para Deus. Por isso, os preceitos do decálogo só se referem ao próximo e a Deus.

De outro modo, podemos dizer, que os preceitos do decálogo são os que o povo imedia­tamente recebeu de Deus. Por isso, diz a Es­critura (Dt 10, 4): Escreveu em tábuas o que antes tinha escrito, as dez palavras que o Senhor vos tinha falado. Por onde, era necessário fossem esses preceitos tais que pudessem logo entrar na mente do povo, pois, um preceito tem natureza de obri­gação devida. Ora, que o homem, necessaria­mente tem deveres para com Deus e o próximo, é facilmente compreensível para qualquer e, principalmente, para um fiel. Mas não é facilmente compreensível que, pelo que a si mesmo lhe pertence, e não a outrem, um homem tenha necessariamente algum dever para com outro. Pois, parece, ao primeiro aspecto, que cada um é livre quanto ao que lhe pertence. Por isso, os preceitos, que proíbem as desordens do homem para consigo mesmo, chegaram ao povo mediante a instrução dos prudentes. Donde o não per­tencerem ao decálogo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Todas as soleni­dades da lei antiga foram instituídas em comemoração de algum benefício divino, ou já reali­zado no passado, ou prefigurado, para o futuro. E semelhantemente, todos os sacrifícios eram oferecidos por isso. Ora, entre todos os bene­fícios de Deus a serem comemorados, o primeiro e o principal é o da criação, comemorado na santificação do sábado. Por onde, a Escritura, como razão deste preceito, diz (Ex 20, 11): Porque o Senhor fez em seis dias o céu e a terra etc. Quanto a todos os benefícios futuros, que deviam ser prefigurados, o principal e final era o repouso da mente em Deus, no presente, pela graça, ou, no futuro, pela glória, o que também estava figu­rado na observância do sábado. Por isso, diz a Escritura (Is 58, 13): Se apartares do sábado o teu pé, o fazer a tua vontade no meu santo dia, e chamares ao sábado delicado e santo para glória do Senhor. Pois, estes benefícios estão, primeira e princi­palmente, na mente dos homens, sobretudo, fiéis. Quanto às outras solenidades, eram cele­bradas por causa de alguns benefícios temporais passageiros; como a celebração da Páscoa, por causa do benefício da passada libertação, do Egito, e por causa da paixão futura de Cristo, realizada no tempo, e que nos conduz ao repouso do sábado espiritual. Por onde, preteridas todas as outras solenidades e sacrifícios, só do sábado se faz menção nos preceitos do decálogo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz o Após­tolo (Heb 6, 16), os homens juram pelo que há maior que eles, e o juramento é a maior segurança para terminar todas as suas contendas. Por onde, sendo o jura­mento comum a todos, a desordem em relação a ele é especialmente proibida por um preceito do decálogo. O pecado porém de falsa doutrina não é senão de poucos; por isso, não era neces­sário fazer menção disso entre os preceitos do decálogo. Embora, segundo um modo de entender, o preceito — não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão — proíba a falsidade da dou­trina; pois, uma Glosa expõe: não dirás que Cristo é uma criatura.

RESPOSTA À QUARTA. — A razão natural logo dita ao homem que a ninguém faça injúria; e por isso, os preceitos que proíbem o dano es­tendem-se a todos. A razão natural, porém, não dita imediatamente que se deva fazer alguma coisa em benefício de outrem, senão para com quem se tenha algum dever. Ora, os deveres do filho para com o pai são tão manifestos a ponto de não poderem ser negados por nenhuma tergi­versação. Porque o pai é o principio da geração e do ser e, além disso, da educação e da ins­trução. Por isso, não está entre os preceitos do decálogo, que devamos prestar algum benefício ou obséquio a alguém, salvo aos pais. Os pais porém não são considerados como devedores aos filhos, por quaisquer benefícios que deles houvessem recebido, mas, ao contrário. Pois, o filho é algo do pai, e os pais amam os filhos como algo deles, segundo diz o Filósofo. Por onde, pelas mesmas razões, não se estabeleceram nenhuns preceitos, no decálogo, relativos ao amor dos filhos, como também nenhuns, que orde­nassem o homem para si mesmo.

RESPOSTA À QUINTA. — O prazer do adul­tério e a utilidade das riquezas são desejáveis por si mesmos, enquanto têm a natureza de bem deleitável ou útil. E por isso os preceitos haviam necessariamente de proibir, não só a obra, mas também, a concupiscência. Ao con­trário, o homicídio e a falsidade são em si mesmos horríveis; pois, o próximo e a verdade são naturalmente amados e não são desejados senão por causa de outra coisa. Por onde, não era necessário, quanto aos pecados de homicídio e de falso testemunho, proibir o pecado de inten­ção, mas, só o de obra.

RESPOSTA À SEXTA. — Como já se disse (q. 25, a. 1), todas as paixões do irascível derivam das do concupiscível. Por isso, nos preceitos do decá­logo, que são quase os primeiros elementos da lei, não se deviam mencionar as paixões do iras­cível, mas, só as do concupiscível.