Art. 2 — Se Deus ama todos os seres.

Infra., q. 23, a. 3, ad 1; Ia IIae., q. 110, a. 1; II Sent., dist. XXVI, a. 1; III, dist. XXXII a. 1, 2; I Cont. Gent., cap. CXI; III, cap. CL; De Verit., q. 27 a. 1; De Virtut., q.2, a. 7, ad 2; in Ioan., cap. V, lect. III; De Div. Nom., cap. IV, lect. IX.

O segundo discute-se assim. — Parece que Deus não ama todos os seres.

1. — Pois, o amor põe o amante fora de si e, de certo modo, o transfere para o amado1. Ora, é impróprio dizer que Deus, exteriorizando-se a si mesmo, se transfere aos outros seres. Logo, é inadmissível que Deus ame seres diversos de si.

2. Demais. — O amor de Deus é eterno. Ora, os outros seres, diferentes de Deus, não existem abeterno senão em Deus. Logo, Deus não os ama senão em si mesmo. Mas, enquanto estão nele, dele não diferem. Portanto, Deus não ama seres diversos de si.

3. Demais. — O amor é duplo: de concupiscência ou de amizade. Ora, Deus não ama as criaturas irracionais por amor de concupiscência, porque de nada precisa, além de si mesmo; e nem pelo de amizade, que não pode existir em relação aos irracionais, como está claro no Filósofo2. Logo, Deus não ama todos os seres.

4. Demais. — A Escritura diz (Sl 5, 6): Aborrece a todos os que obram a iniqüidade. Ora, nada pode ser ao mesmo tempo odiado e amado. Logo, Deus não ama todos os seres.

Mas, em contrário, a Escritura (Sb 11, 24): Tu amas todas as coisas que existem e não aborreces nada que fizeste.

SOLUÇÃO. — Deus ama tudo o que existe, porque tudo o que existe, na medida mesma em que existe, é bom; pois, o ser mesmo de qualquer coisa, assim como qualquer perfeição sua, é um bem. Ora, já demonstramos3 que a vontade de Deus é a causa de todos os seres. Donde resulta necessariamente, que um ente tem o ser, ou qualquer bem, na medida mesma em que é querido de Deus. Logo, a cada ser existente Deus quer algum bem. Por onde, o amor não sendo senão querer bem a alguém, é claro que Deus ama tudo quanto existe. Não porém como nós. Pois, longe de ser causa da bondade das coisas, a nossa vontade é movida por essa bondade, como pelo seu objeto. O nosso amor, pelo qual queremos bem a alguém, não é a causa da bondade desse ser; mas, inversamente, a bondade verdadeira ou suposta do ser, a quem queremos bem, provoca o nosso amor, que nos faz querer que tal se conserve o bem que possui e se lhe acrescente o que não possui; e para isso cooperamos. Ao contrário, o amor de Deus infunde e cria a bondade dos seres.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O amante, transferindo-se para o amado, exterioriza-se a si mesmo, enquanto quer o bem para o amado e obra, pela sua providência, como se o fizesse para si próprio. Por isso, diz Dionísio: Devemos ousar dizer, que é verdade que a própria causa de tudo, por abundância da bondade amante, se exterioriza a si mesma, pela providência para com tudo o que existe4.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora as criaturas não existissem abeterno senão em Deus, contudo, por terem nele existido desse modo, Deus as conheceu abeterno nas suas naturezas próprias. E pela mesma razão as amou. Assim como nós, pelas semelhanças das coisas que em nós existem, conhecemos as que existem em si mesmas.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Só pode haver amizade para com as criaturas racionais, capazes de retribuir o amor e de participarem das obras da vida. E às quais é próprio suceder bem ou mal, conforme a fortuna e a felicidade; assim como também lhes é própria a benevolência. Mas, as criaturas irracionais não podem chegar a amar a Deus nem à participação da vida intelectual e feliz, que Deus vive. Portanto Deus, propriamente falando, não ama as criaturas irracionais, por amor de amizade mas, como por amor de concupiscência, ordenando-as às racionais. E mesmo a si próprio; não que delas precise, mas, pela sua bondade e para nossa utilidade. Pois, nós desejamos alguma coisa tanto para nós como para os outros.

RESPOSTA À QUARTA. — Nada impede que, a uma luz, amemos, e, a outra, odiemos a uma mesma coisa. Assim, Deus ama os pecadores enquanto têm uma certa natureza; pois, como tais, existem e provêm de Deus. Mas enquanto pecadores não existem, mas, têm o ser falho; e, como isso não lhes vem de Deus, são, como tais odiados dele.
1. Dionysium, De div. nom, cap. IV, lect. X.
2. Ethic., lib. VIII, lect. II, XI.
3. Q. 19, a. 4.
4. De div. nom, loco cit.